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Fotografia: Lisanne Lentink, Jelmer de Haas & Maarten Mooijman
Publicado a: 24/11/2023

Intenso e transformador.

Le Guess Who? Le Guess Who’23!

Fotografia: Lisanne Lentink, Jelmer de Haas & Maarten Mooijman
Publicado a: 24/11/2023

Em 2007, quando se realizou pela primeira vez o Le Guess Who?, o festival holandês estava longe de adotar os critérios curatoriais que o caracterizam na atualidade. Alguns dos aspectos originais, como o foco exclusivo em artistas canadianos, dissiparam-se, enquanto outros se uniram para moldar o evento como o conhecemos hoje. O certame, cujo nome dá tanta fama ao icónico ponto de interrogação, tornou-se tema de conversa e curiosidade em toda a Europa. Ao ouvirmos falar dele em Portugal, a curiosidade fez-se despertar e a força de visitar falou mais alto. 

Atualmente, o Le Guess Who? apresenta uma programação abrangente, que engloba diferentes espaços e oferece uma variedade de performances, concertos, exposições e conferências. Realizado em Utrecht, berço de uma das mais antigas universidades da Europa, o festival exerce uma influência transformadora sobre a cidade que, ao chegar novembro, abre as suas portas para acolher todo um leque vasto de artistas e entusiastas da música para aquela que é uma “celebração do som”.

Apesar da programação estar dispersa pela cidade, o epicentro do festival é o TivoliVredenburg, onde a essência do evento se materializa e transforma cada uma das suas salas no universo aparentemente paralelo do Le Guess Who?. Tal como numa das obras mais famosas do artista (também) holandês Escher, este lugar parece desafiar as leis da gravidade. Onde a arquitetura cria um centro para uma comunidade idílica, abrimos portas e janelas para outros édens, onde de forma intensa e assoberbante nos deparamos com variadas opções de música à la carte, por vezes até difícil demais para escolher.  

Se expandirmos esta ideia e aquelas que deverão ser as intenções de um espaço cultural, conseguimos compreender a importância da curadoria deste festival e como esta resulta numa experiência tão densa. Atualmente, o Le Guess Who? conta também com a programação ao cargo da sua plataforma Cosmos, que se dedica à globalização da ideia de disseminar uma comunidade musical e, em torno de performances, filmes e conversas, faz expandir (e intensificar ainda mais) as suas opções. 

Num local onde o ponto de interrogação é emblemático, as exclamações foram, de facto, o que mais se destacou. Após quatro dias de música e performances, o Rimas e Batidas sublinha alguns dos pontos altos do festival.


[Rəhman Məmmədli]

Foi numa das salas mais altas em que uma das maiores surpresas do festival se deu. A cargo de nenhuma expectativa e muita indecisão face a todas as escolhas possíveis, na sala Cloud Nine um dos mais aclamados guitarristas do Azerbeijão fez-se acompanhar de teclas e percussão para encher o público dos sons mais ou menos autênticos que uma guitarra elétrica é capaz de entregar. Rəhman Məmmədli, conhecido também como o homem “com dedos que cantam”, usa a harmonia e o ornamento próprios com uma mestria que almeja encontrar a libertação — ao distorcer sonoridades conta-nos uma nova história, um oásis sonoro, o mais distante possível dos conflitos do qual foi testemunha. Durante pouco menos que uma hora brindou com um público entusiasmado e desorientado, criando um cenário onde a noção espacial pouco importava e evocando as odes de um oriente por nós tão pouco conhecido. Não será fácil encontrar forma de ouvir a sua arte fora da performance, por isso, a todos os que conseguirem ver Rəhman Məmmədli ao vivo, não percam a oportunidade.


[Marta Salogni + Valentina Magaletti]

Foi até uma das salas mais distantes do ponto nevrálgico do festival que a caminhada se fez num ápice. Dentro do Stadsschouwburg, a fila já acusava a lotação esgotada, reflentido-se numa das poucas frustrações do festival — a maior parte das pessoas não conseguiram estar presentes em alguns dos momentos mais importantes. Marta Salogni, génio da gravação e da engenharia do som que guarda consigo vários prémios e colaborações que tem vindo a acumular na sua carreira, trouxe até ao festival uma performance acompanhada pelo compasso de tempo de Valentina Magaletti, somando à programação do dia um momento fulcral na história da memória. Ao compreender uma narrativa que cruza o som e o passado, Salogni e Magaletti acompanharam-se dos seus trabalhos para recontar algo que o público ainda não sabia. Cautelosamente coordenadas entre as gravações que Salogni nos fazia escutar espaçadamente e a bateria de Magaletti, a experiência sonora provou-se holística e distinta pelas texturas que uma batida em contra-tempo geram num discurso amestrado pela mão humana.


[Tom Skinner]

Para quem se deixa deliciar pelo vanguardismo “jazzírico” de Sons of Kemet, o nome Tom Skinner surge como base para todo esse capricho sonoro. Baterista fundador de duas bandas inglesas que incorporaram o ecletismo do género e o futuro da música nas bocas do mundo (uma vez que também faz parte da banda The Smile), Skinner lançou no ano passado o seu primeiro trabalho a solo, Voices of Bishara. No Le Guess Who? ouvimo-lo ao lado de outros músicos (contrabaixo, baixo, saxofones e flauta) e demorou breves segundos a lotar a sala Pandora. Ao evocar a ideia de jam, o baterista coordenou com a maior destreza o ritmo de um concerto que viajou pelo seu mais recente trabalho, dando protagonismo ao jazz e ao improviso, elementos constantes na sua carreira musical.


[Backxwash] 

O epíteto do horrorcore misturado com o rap mais vanguardista da atualidade tem um nome atrás do qual se esconde Ashanti Mutinta. A elevar o grito e a batida industrial ao ativismo subjacente na força de que é feita, as suas raízes partilhadas entre o Canadá e a Zâmbia não chegam para descrever o poder que de si emana. Numa das maiores salas do Le Guess Who?, Backxwash atropelou vocalmente, energeticamente e politicamente o público do festival, deixando-nos a todos perplexos com o que aconteceu. Por entre batidas de dubstep e breakbeat, Ashanti repôs um lugar que era seu por direito, onde evocou vozes de pessoas que se tornaram imprescindíveis numa luta que também é a sua — por entre o nevoeiro cantou-nos alguns dos seus raps mais famosos, mas foi através do olhar que derramou “sangue na água”.


[Wayne Phoenix]

Numa das igrejas mais icónicas de Utrecht, sentado ao piano e virado para o lado oposto do público, as costas de Wayne Phoenix tinham em si escritas “Awaken the Real You” — estas palavras, apoiadas nas asas de uma fénix, serviam de tela pintada a nome próprio, cenário que acompanhou todo um concerto ao abrigo do seu piano, de um violino e de um violoncelo. Por entre o suspense e a teatralidade musical inerente ao seu trabalho, o músico e compositor contou ao público do Le Guess Who? a “história da sua vida”, encantando e desencantando de uma forma poética e envolvente.


[The Good Ones]

Introduzidos por uma mensagem, em jeito de desabafo, que pareceu inquietar o público para a sua recepção, The Good Ones viram-se abraçados por uma sala preenchida de vontade e respeito por aquela que tem sido a sua missão nos últimos anos. O grupo de Ruanda chegou até nós apenas em formato duo e, depois de todas as dificuldades pelas quais passou para conseguir chegar a Utrecht, anunciou aquela que pode ser a sua “última performance durante os próximos tempos”, para provar que a partilha é possível seja de que forma for. Munidos de apenas uma guitarra e percurssão (usando até um par de botas para marcar o ritmo), os músicos sobreviventes ao genocídio de 1994 contaram a sua história ao abrigo de uma esperança profundamente alegre e imortal. 


[Caterina Barbieri + Space Afrika & MFO]

Depois de ter circulado tanto rumor sobre o concerto de Caterina Barbieri e Space Afrika no passado Outubro, a curiosidade tornou-se catalisadora para a ansiedade em perceber o que é que a música italiana, o duo inglês e o artista audiovisual alemão MFO tinham preparado para este momento no Le Guess Who?. Desviando-se ao início do seu sintetizador, Barbieri fez-se acompanhar do dub idiossincrático de Space Afrika para surpreender o público com a sua voz e guitarra. Todo o concerto pareceu estar dividido em diferentes fases ou cenas, quase como se um momento teatral se tratasse. Porém, quando chegou o clímax a artista voltou-se para o seu instrumento musical mais habitual e, ao surgirem as projeções na sala, o momento foi interrompido por um alarme que, apesar de parecer integrado na performance, era apenas a consequência de toda a névoa de fumo que se tinha instalado na Sala Principal do TivoliVredenburg. Irrompendo pelas cadeiras onde o público permanecia sem saber se haveria de ficar ou ir embora, as palavras enunciadas por Weber apareciam escritas “I can feel your heartbeat”, “I know you carry some kind of secret”, “you are the plot twist”, “the indigo child”, “wake up nature”. A performance continuou e não se deixou abalar pela confusão gerada — se a mensagem conturbada sobre o futuro e o ponto de interrogação eram uma vontade menor, o oposto acabou por acontecer, tornando-a protagonista do início da penúltima noite do festival.


[Soft Break]

Rosto por detrás de AMPFEMININE, um dos colectivos feministas mais importantes da club scene europeia na atualidade, Soft Break levou até ao Basis o aquecimento necessário para uma noite fria de inverno na Europa. A trazer para a pista de dança a noção de memória, espaço e tempo, a DJ captou toda a energia possível e tornou-a corpo físico — por entre o afrobeat, tarraxo, house e as batidas mais quentes da música de dança, Soft Break misturou e mexeu connosco de forma exímia, colocando o seu trabalho e a sua comunidade de Roterdão num destaque necessário e urgente.


[Nala Sinephro]

Em 2021, através de Space 1.8, a Warp deixou o mundo deslumbrar-se pela elevação e aura musical que brota de Nala Sinephro. Em 2023, foi a vez da música belga-caribenha falar por si mesma e trazer até nós uma performance que ocupará a mente e os sonhos mais experimentais de quem se propôs escutá-la. Sinephro usa a sua harpa, os teclados e o sintetizador modular para expandir a ideia de fractalidade e suspender por completo a noção de tempo. A idade precoce com que se debruçou de forma transversal sobre o seu trabalho — compondo, produzindo, gravando e masterizando de forma autónoma — levanta a questão da genialidade como poucos artistas o fazem no momento. No Le Guess Who?, tratou de inebriar a audiência, utilizando os padrões sonoros e o ritmo descompassado da bateria para nos trocar as voltas e permitir um total desapego evocado para a compreensão da sua noção estética. Apesar de ter dividido o palco com três músicos, entre si e a destreza da bateria pouco espaço restou para prender o olhar. A música que Nala Sinephro compõe é o exemplo perfeito daquilo que o jazz significa na atualidade.


[Pedro Ricardo]

Pedro Ricardo é um cidadão do mundo que pára em cada lugar para onde escapa para guardar música em si. Somada a toda a experiência o facto de ser melómano e colecionador de sons que o mundo tem para nos oferecer, no último dia do festival tinha chegado o momento do Le Guess Who? ser presenteado com o seu trabalho. Quando o cansaço começava a falar mais alto, o músico e produtor português ocupou o foyer da sala Pandora para impedir que o fim acontecesse. Quase como que maestro dos corpos que diante de si se erguiam, Pedro Ricardo permitiu e permitiu-se entrar num estado de transe para dançar livre e desconcertadamente sobre as batidas mais “groovícas” que o funk e o jazz nos podem trazer. Autor de Soprem Bons Ventos, o músico português fez um DJ Set memorável que nos colocou a dançar e a apreciar a alegria do fim para o começo de uma nova fase — despedimo-nos do Le Guess Who?, deixando no ar o desejo indiscreto de retornar para a próxima edição.

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