O estado norte-americano do Texas e a cidade portuguesa de Espinho não costumam conviver na mesma frase, mas na noite desta quinta-feira (21 de Novembro) até partilharam um palco. Kevin Morby, cantautor indie e folk de espírito rock n’ roll, juntou-se a um ensemble da Escola Profissional de Música de Espinho para uma pequena digressão nacional que agora passou por Lisboa.
Foi no auditório da Culturgest que este encontro fortuito se deu. Como explicou em entrevista ao Rimas e Batidas, Kevin Morby foi desafiado por um amigo feito noutras vindas a Portugal, André Gomes, programador do Auditório de Espinho, para realizar esta pequena tour em modo sinfónico. Nuno Peixoto de Pinho e Francisco Ribeiro trataram dos arranjos, aprovados à distância pelo norte-americano, sem grandes indicações ou alterações a pedir.
Trata-se, portanto, de um espectáculo com uma espinha dorsal bastante portuguesa — que não seria igual se tivesse sido feito noutro sítio; até porque provavelmente nem teria acontecido, a não ser que outro programador europeu próximo de Morby tivesse tido a mesma ideia, de o juntar a um ensemble sinfónico. Mas na mesma entrevista é possível perceber o quão especial Portugal se tornou para o norte-americano, que o descreve como o seu refúgio na Europa.
Durante quase uma hora e meia, Kevin Morby foi tocando canções dos seus vários discos — algumas mais conhecidas, outros são temas valiosos que não tiveram um grande destaque mas que resultam bem com estes arranjos — acompanhado pelos jovens músicos portugueses, 11 instrumentos de corda e um vibrafone/percussões.
De algum modo, parece uma contradição, pois há uma fricção neste encontro entre dois mundos distintos. As canções e toda a aura de Kevin Morby transportam-nos para o imaginário do faroeste americano, das grandes planícies desérticas, das cidades de beira de estrada, das igrejas e diners, para as vivências do Texas que nos habituámos a experienciar através do cinema. As suas letras são bucólicas, sonhadoras, parecem pertencer a uma lente poética que ultrapassa as fronteiras do real.
O seu espírito livre e inquieto pareceu de alguma forma mais contido ao ser amparado por todos aqueles instrumentos, que pertencem a outro mundo musical, a outra forma de encarar a arte, que a trazem para um lugar menos fantasioso. Mas é precisamente nessas tensões e colisões entre realidades que se abre espaço para vislumbrar o novo, para dar azo a novas possibilidades, e daí a importância destes projectos distintos e, em particular, desta feliz digressão que Kevin Morby resolveu aceitar fazer.
Pelo meio, o músico foi tocando alguns temas apenas à guitarra, despidos da carga dramática dos violinos e violoncelos, do ritmo definido pelo vibrafone; o que ajudou a equilibrar o espectáculo, que começou morno — a Culturgest e a sua ampla plateia sentada carregam um peso que inevitavelmente se sente em palco — e foi aquecendo ao longo das canções, culminando numa performance progressivamente mais livre e desprendida, com vários apontamentos bem-dispostos pelo meio.
Foi um concerto particularmente coeso, mas saltaram à vista interpretações como a cadência acelerada e urgente de “This Is A Photograph”; a vibrância de “Five Easy Pieces”; a plenitude de “Harlem River”; ou a harmonia espiritual de “Beautiful Strangers”, a faceta religiosa que também percorre a música de Kevin Morby. O artista interpretou ainda “Texas When You Go”, uma cover de John Callahan, o célebre cartoonista paraplégico que também ousou umas incursões pela música.
Entre a música de conforto e a fricção da novidade, a mestria autoral de Kevin Morby e o profissionalismo irrepreensível dos músicos de Espinho possibilitou-nos uma viagem entre a América e Portugal, lados opostos do Atlântico mas em comunhão nestas noites de grandes canções, sobretudo quando o americano encontra deste lado do oceano um abrigo seguro, numa época obscura para o seu país e para o mundo, como fez questão de sublinhar. Que seja apenas mais um capítulo desta história de muitos encontros e tours.