O cantautor norte-americano Kevin Morby dá hoje início a uma invulgar experiência em terras lusas: secundado por um ensemble da Escola Profissional de Música de Espinho, o autor de This is a Photograph dará outras vestes a momentos cuidadosamente seleccionados do seu reportório. O périplo tem início esta noite no Teatro das Figuras, em Faro, e conclui-se nos próximos dias 24 e 25 de Novembro com dupla apresentação na “casa” dos músicos que o acompanham, o Auditório de Espinho Academia. Pelo meio haverá ainda tempo para passagens pela Culturgest, em Lisboa (já amanhã, dia 21), pelo Theatro Circo, em Braga (sexta-feira, dia 22), e pelo Teatro Viriato, em Viseu (dia 23). Nestes concertos, Morby irá interpretar canções cujos arranjos foram escritos por Nuno Peixoto de Pinho e Francisco Ribeiro.
Morby assoma do lado de lá do ecrã com boas cores — confessa-nos que acabou de chegar de uma sessão de jogging —, com uma colorida sweatshirt e um trucker hat da Otherworld, em modo “americano típico”. Só que, sob muitos aspectos, nem Morby é um americano típico, nem o dia em que nos “recebe” em casa tem nada de corriqueiro — o músico atende a videochamada do Rimas e Batidas a 5 de Novembro, provavelmente o dia em que a história do mundo mudou para sempre…
Hoje é um dia especial. Ansioso?…
Sim, um pouco ansioso. Fui correr só para, bem, para tentar destilar alguma da ansiedade. Tenho estado a ver televisão, um pouco, e até acolho com ânimo estas entrevistas que tenho para fazer hoje porque me vão obrigar a pensar noutras coisas. Vou tentar trabalhar um pouco na minha música e mais logo então vou acompanhar a divulgação dos resultados, à medida que forem chegando.
E este momento particular da vida americana já inspirou alguma canção nova? A ansiedade também pode ser um estímulo criativo…
Nem por isso [risos]. Penso que os percalços da América neste momento são algo em que eu não quero pensar demasiado.
Bem, pode começar por nos explicar como nasceu este projecto? Quem teve esta ideia de o cruzar com músicos portugueses?
Na verdade, a ideia e o desafio vieram do André Gomes, meu amigo, que programa o Auditório de Espinho. A ideia foi dele e foi ele que tomou a iniciativa de me desafiar. Devo dizer que é algo que eu queria fazer já há muito tempo. Ao longo da minha carreira fui várias vezes assaltado por esta vontade de tocar com uma orquestra, por isso estou muito feliz por poder agora fazer isso. E ainda por cima em Portugal.
Muito bem. Como decorreu o processo de escolha de reportório e de arranjo das canções?
Bem, acho que decidimos a setlist em conjunto — o arranjador, o André e eu mesmo —, com todos a sugerirmos canções que achávamos que resultariam bem neste projecto. Eles foram-me mandando as canções, os arranjos podem ser planeados usando MIDI, o computador. E foram-me enviando tudo isso. Devo dizer que não fiz grandes reparos: isto é a visão deles e na verdade tudo me soou muito bem desde o início. Por isso, acho que posso dizer que o processo foi bem simples e ágil. Estou entusiasmado por poder tocar algumas músicas que não toco normalmente e outras que toco com frequência, mas que vão merecer um novo tratamento.
Recebeu alguns vídeos de ensaios?
Não, não. Fui apenas ouvindo gravações áudio das partes em MIDI, algo a que eu estou já habituado: é um método que uso nos meus álbuns também, porque o esforço financeiro que implica trabalhar com um arranjador e meter todos os músicos de uma orquestra num mesmo lugar e ao mesmo tempo pode ser muito elevado. Por isso o MIDI oferece uma solução mais prática e económica. Isso permite visualizar o trabalho final e ir acompanhando cada passo. Provavelmente, a primeira vez que vão ensaiar tudo isto será já comigo, alguns dias antes do arranque da digressão.
Certo. Então e pode adiantar alguns dos temas escolhidos para receberem estes arranjos?
Bem, se eu os revelasse já não seriam uma surpresa, não é? [Risos] Bem, eu cheguei a este ponto da minha carreira em que toco algumas canções de cada um dos meus discos, talvez as “grandes” canções de cada um — os “hits“, vá lá. Mas para estes concertos acho que vou um pouco mais fundo, em busca das pérolas em cada um dos discos, não necessariamente os temas mais conhecidos. E isso é algo entusiasmante, algo que de certa forma é novo para mim. Mesmo quem me possa ter visto muito nos últimos anos será bem capaz de se deparar com temas que eu não toquei, pelo menos em anos mais recentes.
Há um par de meses um amigo comum falava-me de um livro que estava prestes a sair — Taste in Music: Eating on Tour With Indie Musicians — e contava-me como num dos capítulos o Kevin partilha uma história que está intimamente ligada ao nosso país. Pode adiantar-nos de que trata essa história?
Claro. A história que eu partilho nesse livro aconteceu em Espinho, num restaurante que fica mesmo ao lado do teatro em que o André trabalha. De certa maneira, foi uma espécie de situação análoga ao que está a acontecer agora, pois aconteceu logo após a primeira vitória de Trump. Vínhamos de uma digressão muito longa e árdua na Europa e sentíamo-nos tristes pelo estado da política na América — soubemos dos resultados quando estávamos na Europa, longe das nossas famílias, e o Dia de Acção de Graças, no final de Novembro, calhava no dia em que íamos tocar em Espinho. E nós nessa noite fomos ao tal restaurante bem perto do Auditório, tivemos uma excelente refeição, num ambiente reconfortante. E, sabe, não estávamos em casa, as famílias estavam longe, o país estava a atravessar um mau bocado, mas aquele momento simples de certa forma confortou-nos. Foi um momento especial.
Bem, vocês, os americanos, até têm ditados que consagram esta ideia, não é? “A nossa casa é onde decidimos que nos sentimos bem”, algo assim, certo?
Sim, “a nossa casa é onde pousamos o chapéu”.
Exactamente. Bem, e a sua relação especial com o nosso país é algo que cuida de sublinhar sempre que por cá se apresenta ou sempre que fala com a imprensa portuguesa. O que é que encontra cá que lhe dá esse conforto de que fala?
Penso que qualquer americano espera sempre encontrar na Europa um mundo mais… Não sei… Algo mais do domínio dos sonhos, algo que não se encontra na América. E eu acho que sinto algo assim em alguns sítios na Europa, mas por alguma razão essa sensação é mais forte em Portugal. Há algo que passa pela combinação do clima, do tempo, das pessoas, da comida. Há um certo calor e uma sensação de sonho em Portugal que eu senti logo da primeira vez que aí fui e que reencontro sempre que aí regresso. Houve momentos em que pensei: “Bem, já passei demasiado tempo em Portugal e devia experimentar descobrir outro lugar”. Mas depois, quando vou a Portugal relembro-me sempre: “Pois, eu gosto deste lugar por uma razão, quero continuar a regressar aqui por isso”. Quando estou na Europa, é sempre em Portugal que me sinto mais em casa. É algo de inexplicável, mas a verdade é eu aí me sinto bem. Às vezes, a Europa pode parecer um sítio mesmo distante de casa. E claro que, geograficamente, Portugal também é distante de casa, mas a verdade é que me sinto à vontade aí.
Para terminar: esta mini-digressão de cinco datas, com uma pequena orquestra, é algo que nem muitos músicos portugueses podem gabar-se de já ter feito. Que tipo de trepidação sente em vésperas de embarcar numa aventura assim?
Bem, sinto-me mesmo muito abençoado por me ser dada a oportunidade de fazer algo assim. Tenho consciência de que não é algo usual e que pode ser raro até para os músicos portugueses. Sinto-me entusiasmado por ir visitar alguns lugares que ainda não conheço — porque, na verdade, estive sobretudo em Lisboa, no Porto e Aveiro. Os teatros em que vou tocar parecem ser lindíssimos. Portanto, antecipar estes concertos nestes cenários tão singulares é algo que me deixa profundamente animado. Sinto que é uma dádiva e um mistério, aquilo que estou prestes a receber. O mesmo que o público deverá estar a sentir, penso eu.