Quando ao entrar para segunda noite de concerto da mais recente formação de Ken Vandermark nos cruzamos com muitos dos que na noite anterior ali tinham estado e voltavam, sentia-se o melhor dos presságios para o que haveria de acontecer. A música imagina-se irrepetível para quem volta à plateia e imperdível para quem escolheu a derradeira das duas noites possíveis. A formação Edition Redux de Ken Vandermark, no saxofone tenor e clarinete, conta com Erez Dessel no piano e teclado sintetizador Nord, Beth McDonald em tuba e electrónica, e Lily Finnegan na bateria. Trazem na bagagem Broadcast Transformer para apresentar, tocado e reconfigurado nas possibilidades que oferece, tal como anunciam para a digressão europeia em curso. Um disco lançado no dia 2 de Novembro e que se vai podendo escutar apenas em palco ou depois do placo como modo único de obtenção. Vandermark que não visitava esta cidade há muito tempo, depois das passagens marcantes logo no ano de estreia do Jazz ao Centro – Encontros Internacionais de Jazz de Coimbra, em 2003, com LKV Trio, junto a Paul Lytton e Kent Kessler. Depois, em 2006, para tocar e gravar o inesquecível 4 Corners para a Clean Feed, com Adam Lane (contrabaixo), Magnus Broo (trompete) e Paal Nilssen-Love (bateria). Ainda voltou a Coimbra em 2011 para apresentar a formação Platform 1, num elenco de músicos com Joe Williamson, Magnus Broo, Michael Vatcher e Steve Swell. Deixou-nos neste hiato até esta presente dupla data de Novembro, por tudo o que nos deu a ouvir mas, sobretudo, pelo compromisso da sua música com o que há agora para revelar.
Em conversa, franca e descontraída no pós-concerto, disse-nos que nos Estados Unidos da América não há clubes como este — Salão Brazil —, onde se pode tocar com estas características, que garantem integralmente os recursos necessários. Uma casa do jazz. Razão assumida em concerto para esta dupla passagem, para estar confortável em plena digressão e num antes de seguir viagem. Uma casa de boas memórias para Vandermark, mas como assumido, passou demasiado tempo desde a última vez. Este regresso traz uma nova formação do músico e compositor do moderno jazz de Chicago de onde tem inscrito a sua música em importantes formulações como The Vandermark 5, FME, The Territory Band, The Resonance Ensemble, Made To Break e Marker. Mas este Edition Redux surge como uma depuração, que na ideia de Vandermark começou a desenhar-se com mais instrumentos, em que a inclusão de um teclado sintetizador e uma tuba era um ponto assente.
O concerto fez-se de quatro suites, umas mais longas que outras, mas todas elas plenas de recursos estilísticos que inscrevem esta música num cardápio multiverso. Há acelerações, liberdade de expressões funk, olhares em volta, subidas e descidas, recortes de música contemporânea e, sobretudo, muita condução certeira, feita de um seguro balanço, um groove aglutinador. A agitação cativante das palhetas postas em vibração por Vandermark já nos são familiares e por si identitárias, ainda que tragam efeitos do lugar onde cabem renovados entusiasmos. Agora, neste seu Edition Redux, o mentor dá a conhecer três novos músicos que o acompanham em palco e muito mais na dimensão da sua música. Nas mãos de Erez Dessel há uma assombrosa condução do sintetizador Nord, uma mirabolante roupagem ao piano de onde traz em temas centelhas cristalinas, para noutros melodias que remetem para um piano envelhecido entre um jogo de pés condutores nos pedais. Um poderoso pianista, diversificando e, além disso, intensificando a música composta por Vandermark. Dessel que se mudou da Georgia para a cena intensa de Chicago, e que tem na cassete None Define Roar um capítulo para conhecer a solo a seu processo criativo e único. Na outra ponta do palco ouve-se e avista-se uma sumptuosa tuba e a genialidade que traz Beth McDonald, que se vai revelando concerto adiante como um factor de surpresa nas ornamentações e texturas, além do pilar de força e tempo que garante ao conjunto. Da campânula sai um cabo condutor, que vem da captação do profundo interior e leva às electrónicas que os seu hábeis pés manipulam. McDonald em largos momentos intervém cheia de significado sem soprar ao bocal, tal são os recursos que o dispositivo permite. Podemos ouvir nos recentes syanite and sodalite e the new moon’s out of the way a as ideias que também a fizeram juntar, há dez anos, à cena criativa de Chicago. Já da bateria de Lily Finnegan há para contar uma condução destemida do ritmo, capaz de acelerar e estancar sempre que a melodia o indica e também ir no além das peles e címbalos, fazendo de outros recursos disponíveis campo de diálogo. Lembramo-nos bem do entusiasmo trazido entre os aros dos tímbalos e as caleidoscópicas emanações da tuba. Um dos muitos diálogos escutados no léxico inscrito deste Edition Redux. Finnegan que tem no disco Throw It In The Sink uma dupla efectivada com a música da violinista Gabby Fluke-Mogul, vertiginosa maga do arco das cerdas que demos conta na passagem junto a Ava Mendoza, no último Jazz em Agosto.
Das suites de Broadcast Transformer, recombinadas em palco, começou-se por escutar “Autochrome” dedicado a Faith Ringgold, pintora, artista multi-dimensional e activista interseccional recentemente perecida. Tema directo ao funk neste jazz livre e moderno que serviu de base em tantos outros momentos da noite. Também noutra suite retomaram “Shinkansen Dream” que dedicam a Akira Sakata, o nipónico biólogo marinho e saxofonista de free jazz. Um alinhamento feito de temas encadeados e que passam nas dedicações, que em detalhe se revelam no disco, muitas das referencias de Ken Vandermark. Invariavelmente haveria de estar uma das mais próximas na arte dos sons e bem próxima no lugar de criação. “Five Dollars In a $3 World” dedicado a Lester Bowie, fazendo a devida vénia ao enorme legado que é essa instituição chamada Association for the Advancement of Creative Musicians e um dos seus melhores derivados, o Art Ensemble of Chicago.
Para todos e todas que ainda hoje possam estar na Galeria Zé do Bois em Lisboa, a noite trará algo desta forma. Façamos, de uma outra maneira, uma América (de Chicago) algo grande outra vez. Na música, como esta, haverá sempre essa possibilidade.