A música como estímulo emocional que conduz ao pensamento. Seja talvez esse um dos maiores interesses em darmos ouvidos aos manifestos sonoros que o Jazz em Agosto tem programados. Esta edição contempla essa mesma evocação dos manifestos artísticos, assumida em alguns casos concretos, a que chegaremos daqui a uns dias, e outros revelados uma vez desfrutando da música. O último dia do primeiro dos dois fins-de-semana do festival teve duas propostas que abrem lugar à poesia implícita dos sons.
No Anfiteatro 2, que para muitos frequentadores do festival se assume como o palco das melhores revelações — como numa câmara escura para fotografia. Essa maior penumbra permite uma maior concentração no som e intimismo com as imagens reais ou mesmo imaginadas que daí resultam. A música do duo Ava Mendoza & Gabby Fluke-Mogul transporta-nos quase de imediato para um espaço empoeirado onde se levantam súbitos redemoinhos da matéria fina que se pisa, vórtices ascendentes e que levam as partículas pelos ares. Mendoza faz a sua terceira prestação de palco na presente edição do Jazz em Agosto em dias consecutivos, e fá-lo sempre com a sua guitarra, fisicamente e também musicalmente. A linguagem é própria, e dos diálogos que estabelece com as cúmplices resulta a versatilidade do seu guitarrismo. Neste duo é condutora, tem o papel do tempo nas mãos e a ida às cordas mais graves é mais frequente e utilitária, mas é simultaneamente melódica e não abdica da lírica das suas malhas. Fluke-Mogul que faz a sua estreia por cá — no festival e cremos que também por estas paragens territoriais —, é uma violinista que merece toda a apresentação que lhe cabe. Do violino de Fluke-Mogul constam registos que inscreveu em combinações de improvisação que vão desde outros duos com a percussão de Nava Dunkelman em Likht (2023), ou junto do violino e viola de Joanna Mattrey em Oracle ao mais recente solo em Love Songs, ambos lançados em 2022 pela Relative Pitch Records. Também registou o som do seu violino em formações com mais músicos como em Death In the Gilded Age onde consta Matteo Liberatore em guitarra, Joanna Mattrey e Ava Mendoza, editado em cassete pela canadiana Tripticks Tapes em 2021.
O que se vai ouvindo em palco são temas por editar, são “AM/FM”. Inéditos que fazem do momento uma oportunidade irrepetível, mas além disso estas composições são de caudal livre ainda que entre margens definidas. O começo “Ride or Die” remete-nos de imediato para o mote autoral de prática pela vida, como a trompetista jamie branch (de Fly or Die) o fez neste mesmo palco em 2022, voando junto a Jason Nazary. É colocarmos logo no lugar do súbito percalço, no risco da queda. Soa a vertigem esta conjugação de violino áspero e guitarra suja, onde pelas investidas de ambas espreitamos a profundidade do abismo. Mas segue-se numa “Amazing Grace”, numa graciosidade num abstracto esplendor do violino em explorações sónicas que encontram na guitarra deslizante em modo slide uma passagem para uma melodia descritora da passagem campestre do velho oeste. Depois há o solo que Fluke-Mogul apresenta no fio da navalha, que ali é literalmente manejada nas cerdas (fios) do arco, num percurso sonoro que a leva até ao tampo e costas do violino na ponta humedecida do indicador para procurar a vibração contagiante. A dela e a nossa, que nos leva ao momento de queda — umas quantas passadas descuidadas e… já foste! Mas para quem já se deixou cair em modo protegido (paraquedas ou asa-delta) entenderá melhor a sensação — é de libertação, e neste caso pelo som. Ouve-se o violino, como se ouve a voz também a soltar satisfação em êxtases nuns “ah… ahhh!”, atingindo o ponto certeiro da combinatória com oportunas apogiaturas. O amparo no final da queda vem com o tema dócil que se ouve de “Country Lull”, como na definição da palavra o tal momento curto de calma em que pouco acontece, e serve para acomodar o que resta. Importante mais que a queda é o modo como se cai. Entra-se no domínios do já vivido com o solo de Mendoza, há momentos de déjà vu, o que é deveras gratificante. Voltam a ser duas em “Delta” e “Spin The Dial”, entre os blues desenhados da guitarra, complementados em poesia das arcadas desferidas no violino. Neste concerto foram mais em palco, com a presença do lenço keffiyeh entre elas. Entre elas e nós houve lugar para a sobrevivente resistência palestiniana — que a tornará livre!
Referimos manifestos e aí estão eles. Os primeiros dos que hão de ter palco, estão subentendidos na manifestação de diversidade sonora e de ideias de que é composta a música de Lucas Niggli Sound Of Serendipity Tentet. Agosto de 2023 ficaria marcado, nos campos da música criativa, pelo lançamento de Play! pelo selo Intakt Records. Um registo de 8 movimentos, que o pianista e compositor Alexander Hawkins descreve nas liner notes como: “Por um lado, ouvimos uma composição que soa como uma expansão do carácter musical de Lucas Niggli: mercurial, altamente detalhado, incrivelmente sensível aos outros, sem medo do groove. E, no entanto, por outro lado, suspeito que o ouvinte familiarizado com os intérpretes individuais na gravação sorrirá para si próprio com a forma vibrante como as características individuais desses intérpretes são postas em relevo pelo jogo de Niggli”. Esta diversidade de idiossincrasias surge literalmente baralhada pelo exercício de tocar sob as instruções indicadas em cartas que se distribuem a cada músico antes de cada movimento ter tido lugar.
Desde logo porque são dez músicos a tomar lugar com muitas instrumentações disponíveis. Estão em meia-lua aberta ao público, da esquerda para a direita, Peter Conradin Zumthor na bateria, Christian Weber no contrabaixo, Tizia Zimmermann no acordeão, Marina Tantanozi para a flauta transversal e flauta baixo amplificada, e electrónica, João Carlos Pacheco na bateria e vibrafone, Joana Maria Aderi na voz e processamentos de electrónica, Silke Strahl no saxofone tenor, Marc Unternährer na tuba, Dominik Blum no órgão Hammond e Lucas Niggli na bateria, melódica e no gongo de grande diâmetro.
Como em disco, também em palco há o tal baralho de cartas. É pedido a 8 pessoas voluntárias da plateia que baralhem os 8 baralhos e distribuam 4 cartas a cada músico. Dessas cartas resultam os modos combinatórios de músicos, quem dirige o ensemble, quem é solista e solista sombra ou o modo da música, nos aspectos melódicos, de ritmo, textura, etecetera. As regras do jogo estão lançadas e o improviso é deixado no campo da sorte e do azar. Formas de aleatoriedade na composição musical exponenciando as possibilidades do novo e irrepetível. Também outros usaram métodos baseados nas cartas da sorte como forma de impulsionar a criatividade. Brian Eno e o artista multimédia Peter Schmidt, publicaram em 1975 um método a que chamaram Oblique Strategies, em que cada carta tem uma função de “restrição desafiadora” no processo criativo. Também Blixa Bargeld dos berlinenses Einstürzende Neubauten desenvolveu um método de escrita aleatória — Dave — baseado em frases inscritas em cartas, cuja sequencia resulta num texto original. Anda-se na esfera dos métodos colectivos criadores dos Cadáveres Esquisitos dos surrealistas de André Breton.
A sorte das cartas ditou que no palco o concerto seria começado pelo trio do vibrafonista Pacheco, da saxofonista Strahl e da tuba de Unternährer, num arranque a teremim. A música evolui de pronto para a diversidade instrumental do trio e dá a conhecer a natureza dos sons, muito apontando para elementos dialogantes de música contemporânea, com enorme textura. O ensemble volta a alargar-se convocando como primeira maestrina Joana Maria Aderi. Ouve-se uma amálgama criativa modernista no emprego maquinal e cuja matriz que acelera o tempo evoca nas ideias — Temeritá, Velocitá — despertas de Marinetti — Manifesto del Futurismo, 1909 — em que o advento traz à cena outro fundamental impulso em 1913, com Luigi Russolo em L’arte dei Rumori, que alude aos músicos do futuro com o advento da electrónica na música para “substituir a variedade limitada de timbres que a orquestra possui atualmente pela variedade infinita de timbres dos ruídos, reproduzidos com mecanismos adequados”. Niggli e companhia trazem esse espírito ao espaço sonoro, corporizam as ideias que se sorvem desde então, que tantos outros compositores da música contemporânea foram perpetuando até aos dias de hoje. Há em palco uma construção que se inscreve na música dos sons, numa representação do real, e que nos mantêm cativos em redobrada atenção que se prende na expectativa da surpresa e de ver de que é feito o som. A segunda condução do ensemble passa para as mãos e gestos de Christian Weber, e com isso passamos a ter uma expressão vocal na música. Aderi com dois microfones, um de sinal limpo outro processado, vai deixando palavras ditas que assumem a forma de pequenos manifestos — dela ouvem-se partes como “Test your limits to succeed”. A sonoridade inscreve-se nos contextos da música concreta com os instrumentos musicais como fonte, mas onde volta a pairar a ideia da orquestra futurista de Russolo — das “seis famílias do ruído”. Destes músicos ouvem-se rugidos, rugidos sibilantes, estrondos, silvos, sopros, rangeres e zumbidos. Novo trio, em novo interlúdio, entre a formação com maestro reformula-se pela aleatoriedade das cartas. Agora Niggli em bateria que dispensa baquetas e usa a palma das mãos é acompanhado pelas flautas de Tantanozi e o acordeão de Zimmermann. No que resulta de um dos melhores momentos da prestação sonora mais orgânica descolando-se do ímpeto maquinal, como num acaso objectivo. O terceiro e derradeiro maestro designado pelas cartas foi Marina Tantanozi. Com ela o ensemble voltou-se para o espectro da música dos sussurros, dos murmúrios, em que a cadência do ritmo veio das baquetas reco-reco de Zumthor em desenhos sonoros circulares intervencionados com sinistro pelas teclas do Hammond de Blum que cede sucessivos espaços à melódica de Niggli e à voz de Aderi.
Até que Niggli levanta o braço — pede para intervir — num gesto de viragem, impõe o desvio da norma, há uma batida, uma e outra, surge o som da mudança. O groove que Hawkins refere de que Niggli não tem medo. Batida da bateria junto ao tempo da tuba para a voz processada de Aderi, numa matriz hip hop futurista que nos lembra a passagem de Damon Locks nas palavras ditas da Exploding Star Orquestra de Rob Mazurek. Pacheco entre os elementos conta com um pedaço de esferovite que traz a subtileza final dos sons, de um ranger e raspar — outros dos fundamentais 6 ruídos da música posta em manifesto.