Karyna Gomes adoptou a música como principal ocupação há alguns anos e, desde então, editou já dois álbuns em nome próprio com sonoridades ligadas à terra que a viu nascer, Guiné-Bissau. Precisamente por isso, os trabalhos que lançou têm vindo a ser catalogados como “world music”, um termo chapéu recorrente na indústria musical e enviesado pela perspetiva anglo-saxónica — “aquilo a que chamamos “world music” em Portugal na Guiné pode ser só música”.
Defensora da teoria de que África é não só o berço da humanidade, mas também da expressão artística, Karyna tem lutado contra os rótulos que lhe são impostos e, citando Toty Sa’Med, explica-nos que a utilização do termo “afropop é redundante porque a música afro sempre foi pop”. Com isso em mente, o novo longa-duração não foge às raízes e preserva mesmo instrumentos como a tina (uma cabaça utilizada como instrumento de percussão) e uma sonoridade próxima do último álbum, embora “mais electrónica”. Mas se em relação a Mindjer a imprensa foi capaz de desvendar uma técnica e um historial comuns ao que passa na rádio mainstream, N’na não deixa margem para dúvidas: o que estamos a ouvir é um álbum assumidamente pop.
No intervalo das gravações da sua próxima live session, que decorreram nos Atlântico Blue Studios, em Paço de Arcos, a artista falou ao Rimas e Batidas sobre o novo álbum – naturalmente –, mas também sobre a importância da utilização do crioulo e da crescente representatividade africana na música consumida em Portugal.
Com a ascensão da expressão crioula na música comercial portuguesa, o caminho tem sido desbravado por nomes como Julinho KSD ou Dino D’Santiago que, em poucos anos, mudaram a percepção do público e aguçaram o apetite dos produtores nacionais pelos ritmos da região. Ainda assim, no que toca às letras, essa representatividade na música baixa substancialmente quando o foco muda do crioulo cabo-verdiano para o guineense, que é cantado por Karyna.
É o trabalho de um artista escavar, investigar e recolher exemplos, inspiração e ideias para os seus próprios projetcos. No caso de Karyna Gomes, esse processo foi facilitado pelo intercâmbio que experienciou ao longo da vida. Nascida na Guiné-Bissau, filha de mãe cabo-verdiana, estudou no Brasil e vive em Portugal há 10 anos. Foram estas as paragens que a moldaram a ela e, sem dúvida, também ao seu trabalho.
Um dos melhores exemplos dessa recolha está num dos instrumentos centrais da música de Karyna Gomes, que tem como base uma simples cabaça. A tina é um instrumento tradicional com uma história rica e originador do seu próprio movimento assente na cultura feminina do século XVII das primeiras cidades coloniais estabelecidas na Guiné-Bissau.
Do blues ao afropop, Karyna recusa rótulos na música e evoca as razões certas. A principal sendo que parece ter-se sentido mal aconselhada quando, no processo de escrever e editar Mindjer, a editora a empurrou para o chavão da indústria musical que é a “world music”. Sete anos mais tarde, e depois de se ter sentido validada pela crítica musical, Karyna traz-nos o que diz, sem rodeios, tratar-se de um álbum de pop africana.
Conta-me um pouco sobre ti, o teu trabalho e as tuas origens.
O meu trabalho é de vanguarda porque comecei a cantar desde cedo num coro gospel. Cantava hip hop, porque o gospel tem hip hop devido ao facto das igrejas afro-americanas estarem baseadas em bairros dos subúrbios, maioritariamente, e tem por isso grande influência da música feita pela comunidade negra. Comecei com esses ritmos: o gospel nas suas várias vertentes desde o o gospel negro espiritual, ao hip hop, o soul, o r&b, o funk original americano…
Isto aconteceu no Brasil, para onde fui estudar vinda da Guiné e onde ouvia música de todo o mundo nas discotecas, desde a pop norte-americana de Michael Jackson, Whitney Houston, Madonna, entre outros, e muito soul e jazz que ouvia desde miúda.
E música local também ouvias, imagino…
A música local é intrínseca. Ela está em tudo desde os casamentos aos momentos menos bons, do nascimento à morte. E todos os eventos têm música local, tanto local urbana como local tradicional ou folclórica, digamos. Isso é interessante porque quando me debruço mais sobre a música e coloco o jornalismo e a comunicação em segundo plano observo que a música que se faz na região onde a Guiné-Bissau está localizada, que é a Costa Ocidental Africana, é berço. Eu toquei uma música agora que é a versão tina do “Summertime”, quando começo a tocar sinto muita coisa da minha raiz musical africana e típica daquela região. E quando vou aprofundar e estudar um pouco mais descubro que a raiz do jazz e da soul saíram dali, com os escravos.
Uma das coisas que se diz que perpetua da música africana nos estilos de todo o mundo são as percussões. Sentes essa ligação aos tambores e à percussão africana na música actual?
Sem dúvida. Há ritmos e padrões que eu oiço tocar em vários géneros, dos mais latinos aos anglo-saxónicos, que são claramente de base africana. Daí eu concordar com várias teses de que África é a matriz cultural mundial, não só na área da música mas em todas as áreas. Se observarmos as coisas com um olhar mais crítico vamos observar traços africanos em tudo!
O teu disco foi gravado entre Moçambique e Portugal, mas tu és guineense e já percebemos que viveste no Brasil. Fala-me um pouco sobre ti.
Eu vivo em Portugal há 10 anos e a minha mãe é cabo-verdiana mas foi para a Guiné com três anos e ficou lá, por isso ela considera-se guineense. Mas eu tenho uma raiz muito vincada cabo-verdiana e cresci a ouvir mornas, coladeiras, etc. O interessante é que a minha mãe introduziu-me na música através dos sons cabo-verdianos e, depois, por viver na Guiné, convivi com outra vertente. Mas eu depois fui estudar para o Brasil e foi quando comecei a cantar. Depois voltei para a Guiné e fui procurar as minhas raízes musicais e decidi vir para Portugal gravar um disco depois de, pelo meio, ter recolhido muitas influências pop.
As críticas que tive ao primeiro álbum por parte da imprensa foram exactamente centradas na minha vertente pop e urbana. O Nuno Pacheco [jornalista do Público] foi logo o primeiro reparo que me fez: “a tua musicalidade tem a guiné no crioulo mas é de uma vertente muito pop”, e eu não queria fugir a essa minha essência e quis ser fiel à minha musicalidade e àquilo que eu realmente sou musicalmente, por isso o meu novo álbum tem esta vertente mais electrónica, mais pop e bastante mais actual.
E que temas exploras, quais são as sonoridades que procuraste transmitir? É que tu acabaste por cair numa categoria chapéu utilizada para fins meramente comerciais que é o da “world music”. Pelo menos o teu último trabalho vinha conotado dessa forma.
Eu não gosto de rótulos. Quando a minha antiga editora sugeriu que afunilasse o meu trabalho para a world music, como uma rebelde eu consegui mostrar que a minha vertente era mais pop e os jornalistas perceberam e falaram disso, o que me deu força para fazer o N’na.
O N’na é um disco de pop africana. Como diz o Toty Sa’Med, que é um artista angolano que faz música pop e é um dos expoentes máximos da música nova angolana, o termo afropop é uma redundância porque a música afro sempre foi pop, sempre foi popular. Daí eu não gostar de rótulos e preferir fazer aquilo que eu sinto. Eu sou uma cantora de música urbana, de soul, jazz… e o afro está intrínseco nesses dois géneros musicais porque não tem como dissociar o afro do soul ou do jazz, e muito menos da pop porque a música pop também tem muito a ver com África.
O meu disco também fala sobre a modernidade. Eu gosto muito de abraçar causas sociais: a questão da migração, da equidade e do equilíbrio de género, o disco chama-se N’na que, numa língua africana, é uma designação para mamã e fala dessa matriz como base, mas tem vários ramos e folhas. Então sentes a raiz guineense, o crioulo e um pouco do que se faz em África actualmente, mas também alguma latinidade. Sente-se um pouco de zouk de Guadalupe porque nós ouvíamos muito zouk em miúdos lá em África. E agora há essa fusão entre o zouk e o afrobeats nigeriano ou serra-leonês e do Gana. É um disco de pop africana.
O teu disco saiu há pouco tempo, há cerca de duas semanas. Tens tido feedback?
As coisas mudaram muito nos últimos tempos. Antes gravavas um disco físico e fazias uma tour pelas lojas da Fnac onde as pessoas iam e davam feedback imediato. Agora o feedback que se tem são as visualizações dos videoclipes, os comentários… mas confesso que tenho tido grandes feedbacks nas redes sociais. As minhas contas estão a crescer a um ritmo assustador porque acho que os meus seguidores já tinham percebido uma certa inovação no meu disco anterior. Nunca nenhum guineense tinha ido tão longe em termos de produção discográfica e foram utilizados instrumentos que nunca tinham sido utilizados num disco guineense. Isso deixou a camada mais jovem a pensar “o que é que vem aí?”. Depois lanço um disco de pop africana… ficou tudo ao rubro.
O sentimento já era esse no primeiro single que lancei em feat com um DJ para um mercado mais específico. Depois, o “Gustu Di Mel” foi para um mercado mais “palopiano” e já recebi feedback de Moçambique, África do Sul, Angola… estou a conseguir ir gradualmente para o público que queria, que é um público mais jovem e mais consumidor de afropop e concertos!
Os festivais ficam logo interessados e posso-te dizer que já tenho alguns interessadíssimos neste novo trabalho.
Tu já participaste em, pelo menos, dois festivais em Portugal. Curiosamente eram ambos de “world music”: o FMM Sines e o MED. Gostavas de poder pisar palcos maiores?
Gostava de continuar a participar nestes festivais porque são incríveis, sobretudo em termos de intercâmbio. Mas gostava também muito de ir a um Rock in Rio, vou já ao Sol da Caparica, que é mais pop, e vou também ao Nossa Lisboa. É que os meus músicos são excelentes e a minha música é justamente para esse público, mais jovem e transversal.
Ali no estúdio disseram-me que te estava a ver tocar uma cabaça. Acertaram?
Era uma tina! A cabaça, na verdade, é uma coisa tão transversal… tens cabaças no Alentejo, por exemplo, mas têm outros formatos. A cabaça da tina é um instrumento que foi descoberto ali no final do século XVI/XVII por mulheres que ao lavar a roupa — diz a lenda –, viraram a cabaça no rio e descobriram aquele som incrível. A partir daí criou-se toda uma musicalidade em torno do som da cabaça. Ou seja, passou da tina, metade de uma pipa com água e a cabaça invertida, para um estilo de tocar e uma maneira de dançar. É instrumento, um género musical e uma dança.
É quase uma cultura!
É isso mesmo. É um movimento! E fundado por mulheres nas novas cidades coloniais num ambiente mestiço, e por isso não é próprio de nenhum . Outra coisa muito curiosa é que, apesar de vir da Guiné, os artistas de lá vão ouvindo a música e observando os padrões e chegamos à conclusão de que a nossa tina encaixa em quase tudo. É uma das razões pela qual trago esta versão do “Summertime”.
É um elemento que possamos ouvir mais vezes no teu álbum?
Neste álbum só tenho esta versão do “Summertime” em que sou eu que toco a tina. Mas no álbum antigo [Mindjer], todos os takes de percussão de bombo foram feitos com a tina.
Tu cantas em crioulo guineense. O crioulo tem vindo a crescer na música portuguesa e tens dois ou três nomes como o Julinho KSD, o Vado Más Ki Ás, o Apollo G e, claro, o Dino D’Santiago, que estão a desbravar esse terreno e a conseguir levar o crioulo na música a quem não percebe nada de crioulo. Mas o crioulo que eles cantam é crioulo cabo-verdiano. Gostava de saber o que achas disto e se o facto de trazeres um dialecto diferente tem barreiras maiores ou, pelo contrário, usufrui das vantagens de um crioulo estabelecido no mercado nacional.
Eu acho que o trabalho que os operadores culturais e musicais cabo-verdianos têm feito há mais de 20 anos com o surgimento e a mundialização da Cesária Évora, por exemplo, tem dado uma abertura não só à musica cabo-verdiana mas também à música crioula. Tenho falado muito disto com o meu amigo Dino D’Santiago a propósito de um projecto que se chama Lisboa Crioula e estamos a pensar criar um movimento crioulo que abarque o crioulo cabo-verdiano e o crioulo da Guiné. É que o crioulo de Santiago é muito parecido ao da Guiné e dá para nos compreendermos. O de São Vicente, no Barlavento, é que difere um bocadinho.
Mas esta pergunta é interessante. Eu venho para Portugal desde miúda e percebo que, realmente, o crioulo está a ser visto como uma língua, uma expressão e uma filosofia que não deixam de ser crioulas, porque há uma maneira de ser e estar em crioulo, mas também de pensar. É interessante trazer isso para a música porque o crioulo é tão português quanto o português, e digo isto porque a base lexical do crioulo é portuguesa. O crioulo só aconteceu depois dos portugueses terem ido para África, surgiu dessa tentativa de comunicação. Acho interessante esta apropriação do crioulo, até porque é uma língua com uma fonética muito bonita.
Eu agora canto também em português em dois temas do meu novo álbum e um deles fala exactamente desta mistura e desta Lisboa e deste Portugal que estão incríveis em termos de multiculturalidade e acho realmente que que esses interlocutores cabo-verdianos na música estão a abrir caminho para os músicos na Guiné. E já tive a oportunidade de falar com alguns colegas da pop guineense como o DJ Burumtuma, que estão agora a evocar autores guineenses pop da juventude, e isto tem tudo para gerar um movimento crioulo muito interessante. Está-se a desenhar um caminho muito bonito.
Uma das últimas conversas que tive foi justamente com o Vado Más Ki Ás, ele é um rapper que rima em crioulo aqui em Portugal e, com base na experiência, contava que o rap crioulo tinha uma conotação muito negativa e associada à criminalidade porque eram esses os primeiros temas das canções. Mas nos últimos anos temos visto a música crioula em Portugal seguir numa direção que não tem nada a ver, em tons muito mais alegres, que estará certamente muito mais de acordo com esta “filosofia crioula” que falavas.
E em termos de representatividade é interessante porque somos milhares de imigrantes de Cabo-Verde e Guiné-Bissau em Portugal, que estamos para aí na quinta geração, falam crioulo e, de repente, começámos a sentir que há representatividade porque os músicos acabam por ser porta-vozes de milhares de pessoas que se sentem mais integradas através dos seus artistas.
Claro, porque depois a música vai ter impacto em matérias de discriminação e muito mais. E sentes que o teu trabalho vai contribuindo para isto?
Sim, e não foi pensado. Eu, quando vim gravar o meu álbum a Portugal, vim com o sonho de fazer música e levar a minha mensagem, que assenta também na ideia de espalhar o crioulo, claro, e a própria tina.