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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 13/08/2021

Numa missão.

Vado Más Ki Ás: “Foi preciso muito para as pessoas verem o rap crioulo a vencer”

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 13/08/2021

Nasceu em Portugal, cresceu no Bairro 6 de Maio, na Amadora, é descendente de pais cabo-verdianos e foi por isso que começou a rimar em crioulo cabo-verdiano que, diz, é bem diferente do guineense, por exemplo. Vado Más Ki Ás não é estranho à vida difícil de um bairro precário e é, claro, um produto desse ambiente: viu o irmão mais novo ser condenado a 13 anos de cadeia e, ainda na adolescência, perdeu a mãe, mas também foi aí que, segundo o próprio, descobriu um rap crioulo carregado de negatividade a que agora tenta dar um lado mais luminoso.

Depois de mixtapes, um álbum e vários singles, Vado trouxe-nos Processo: um EP, “pensado faixa a faixa”, cujas canções têm sido reveladas uma a uma até ao lançamento de “Fora da Lei”, que marcou também a conclusão do projecto. Cada vez mais aportuguesado e ligeiro nos temas que trata (sem nunca se afastar das suas experiências), o rapper tem tentado trazer a expressão artística em crioulo para o grande público numa missão que, defende, tem sido auxiliada pelo sucesso de Julinho KSD ou Dino D’Santiago.

Ao Rimas e Batidas, Vado Más Ki Ás fala do EP, das colaborações, da infância complicada que o apresentou à música e do espaço do crioulo no panorama português.



Fala-nos sobre o teu EP Processo. Que ideias tinhas para o trabalho quando arrancaste?

O EP começou mesmo num processo. Em vez de serem os processos judiciais num tribunal, do crime, é o processo na música. Queria transmitir a minha realidade na música tentando não trazer o tema da criminalidade. Podia ir pelo caminho do crime e ter processos à vontade, mas não: quis os processos da música.

O teu mais recente single, o “Fora da Lei”, foi produzido pelo Tom Enzy, que até há alguns anos era um nome conhecido na música electrónica. Mas tu és já o segundo rapper que entrevisto (depois do Achero) que o tem na lista de créditos como produtor de uma batida para um álbum de rap. Como é que surge o Tom Enzy?

O Tom Enzy faz um pouco de tudo, é um génio. Tem uma cabeça muito aberta no mundo da música e tenho aprendido muito com ele desde a primeira música que gravámos juntos, a “I Gotch U”, que lançámos só no Spotify e chegou ao milhão de views. Foi gratificante sentir a evolução na música e na sua construção, na masterização e na mistura. Aprendi um bocado desse lado profissional com o Tom Enzy. Ele fez a diferença na minha música, além de ser um óptimo DJ é um grande produtor.

Tens várias colaborações interessantes no teu álbum, desde logo o Djodje. Houve algum critério para estas escolhas ou simplesmente chegaste à conclusão de quem querias convidar através das melodias?

As colaborações foram surgindo na ideia e na minha vida. Acho que tudo está ligado ao brilho de cada pessoa e as coisas estão destinadas. As faixas em que chamei, por exemplo, o Pragga Donzalla, um ícone no rap crioulo, dos Nigga Poison, senti que devia trazer a essência que estou a tentar passar e também aprender com a essência dos mais velhos, de trás. A ideia era misturar a essência deles com a do people do presente.

Foi a minha ideia: posso estar a fazer as minhas coisas como eu quero, mas também preciso de saber com quem estou e vou caminhar, e isso levou-me a escolhas muito positivas como o Pragga Donzalla, o Djodje, mesmo o Gang, que faz parte da família. Gosto muito da sua música. Eu sinto e vivo as suas músicas e inspiro-me também nas músicas deles. O Pragga e o Djodje é desde pequeno. Foram artistas que sempre ouvi e de quem sempre me alimentei. Mesmo em casa, as minhas cotas, cunhadas e as minhas primas sempre curtiram do kizomba do Djodje, por isso cresci com essa cultura musical também.

Parece-me gratificante fazer música com as pessoas de quem és fã.

Ya! Eu trouxe esses ícones para o meu EP e para o meu processo porque senti que seria uma evolução também para mim, e mesmo para a geração de rappers mais nova e para a cultura.

Tu já cá andas há uns anos e só agora é que lanças o teu primeiro EP: porquê só agora?

Porque tudo é um processo, irmão, e tudo tem de ser bem feito. Eu comecei primeiro nas mixtapes com a Longa Caminhada (2014) e Lições da vida (2016), que foram as duas primeiras mixtapes logo no início da minha carreira, com 11 e 10 faixas, respectivamente. E depois parti para o meu primeiro álbum, já depois mais crescido, a ultrapassar a fase de adolescente, que vai bater com o Vitórias & Privilégios (2019), o meu primeiro álbum. Já estou adulto, já estou com uma consciência melhor na música, já sei os passos a tomar, já sei qual é a lógica e como é que se fazem as cenas. Foi o meu primeiro impacto a fazer um álbum e depois tive de partir para um EP, passo a passo e faixa a faixa — para perceber o meu público e perceber o que tenho de lhes dar realmente.

Gostava que nos acompanhasses faixa a faixa pelo teu álbum. Qual é a base dos temas, quem participa, por aí…

O “Química” foi o primeiro single que lancei depois de assinarmos com a Sony. Teve um grande impacto e uma óptima aceitação do público por ser um estilo um bocado diferente do que costumo fazer. Metemos um R&B e um rap, que não costumo fazer muito. Hei-de fazer mais para mostrar a diferença e provar que sei nadar em vários mares. Foi o meu primeiro single com o Gang, que também veio com um estilo novo e diferenciado, com uma cena mais UK e com dicas novas. Vem com menos negatividade, porque sinto que antes o rap crioulo era muito negativo.

Essa negatividade era algo que queria alterar?

Ya, tinha isso na cabeça. Consumia muita música e sentia que a nossa malta sentia uma pressão tão forte por viver num quadrado com tanta criminalidade e tantos problemas sociais e de comunicação… Falávamos muito do crime, “estou a passar isto, a ser julgado por causa daquilo”… O rap crioulo não tinha muitas vitórias, irmão. Era mais falar do problema em si, então, depois de passar pelos problemas, quis falar de uma cena que estou a viver, a construir, a vencer, a conseguir… estou a ver o brilho!

A minha segunda faixa é o “Godzilla”. A ideia era mostrar a “rijura”. Sou Godzilla, sou a casca! Não vou desistir por nada, posso ir trabalhar na Telepizza… deu-me aquela cena para fazer a música com mais amor e disciplina. 

Depois a “Mudjer Africana”…

Ya, trazer o power da mulher africana, da nossa mulher batalhadora que trabalha muitas horas para dar de comer aos filhos e aos netos, que vai buscar água logo de manhã para poderem tomar banho e fazer o comer… Quis meter um bocado da nossa cultura e da realidade cabo-verdiana e, ao mesmo tempo, enaltecer a força da mulher africana, com a participação do Pragga Donzalla.

A quarta música é o “Vida Louca”. Há muitos jovens a viver uma vida louca, mas com um sentido diferente, o de conseguir e ser bem-sucedido. São pessoas que não tiveram muitas oportunidades, muitos jogadores de futebol na zona que não singraram, pessoas que tentaram lutar para alguma coisa e não conseguiram. É um tema para pessoas que tentaram algo e queriam vencer, não o fizeram só pelo desporto. E, quando vens de um sítio mais desfavorecido estas pessoas passam por muito, levam com muito racismo, discriminação, abuso policial… Mataram muito manos meus no bairro… Essa é nossa história de que não nos podemos esquecer — é essa a nossa “Vida Louca”.

Não é uma vida louca de copos e festas, portanto.

Não, irmão. Os Racionais quando falam de vida louca não é beber copos e andar à pancada. Para eles, vida louca é saúde, liberdade e paz para todo o mundo: “Vamos brindar o dia de hoje que o amanhã só pertence a Deus, a vida é loka”, diziam eles.

Depois trouxemos o “Tribunal” com o Andrezo, aquele beat maluco. É um grande produtor também, e um rapaz que observei o trabalho antes de poder trabalhar com ele. Curtia bué dos projetos que ele estava a fazer com a nova malta e aquelas melodias boas. Tinha algo que chamava a atenção, um brilho particular. Depois, no estúdio, tivemos aquela ligação especial a ouvir beats e a trocar ideias. E o “Tribunal” saiu na hora. Chegámos ao estúdios, ligámos o PC e metemos o mic a gravar e saiu uma cena muito pesada, com uma mensagem para os manos que não querem conhecer o lado da lei com as suas penalizações. Estamos a dizer, no fundo, que já não queremos esse lado, é essa a mensagem do tema dirigido até aos prisioneiros que ouvem a minha música.

Isso já te aconteceu? Teres gente dentro que sabes que está a ouvir a tua música?

Muitas vezes. Eles ligam para mim, às vezes. O meu produtor, o Doctor Délio, esteve dois anos preso e agora está na rua, graças a deus, a fazer música e os meus beats. Ainda tenho o meu irmão mais novo, com 22 anos, que está preso, ele levou 13 anos de prisão por causa de crimes… Sinto um peso e uma missão, que é passar a mensagem e a minha visão da vida para os meus também.



Depois do tribunal ainda tens o “Magia”

Com o Djodje, exactamente. Foi também uma viagem e uma música sem tabus para as mulheres e para a juventude que gosta de experiências e de saber o que é conhecer um mundo novo sem tabus ou complexidade, sem apontar o dedo ao que se pode ou não pode fazer. Todos na vida vamos fazer algo de errado. Então eu digo à miúda da música para ela vir comigo, que vamos fazer isto e aquilo, experimentar… e o Djodje traz aquele amor e aquele verso de segurança. Então juntámos aquelas duas bases e deu esta “poção mágica”. Esta faixa teve mais de um milhão de visualizações no espaço de um mês, é muito gratificante. 

E encerras o EP com o “Fora da Lei”, que também está a render, imagino.

Está a render sim senhor, e só tem três dias mas já está a subir aí nas tendências. Foi um tema que eu fiz em casa com um pensamento mais focado naquilo, num mundo novo. Imagina uma pessoa a viver num mundo sem leis mas em que toda a gente se respeita. Seria um mundo com paz e liberdade, mas amizade também. Esse seria um mundo com vários caminhos, onde vamos aprender várias coisas, sempre sem lei, livre para fazeres o que quiseres e de pensares o que quiseres. Sabemos que no meio do escuro vamos encontrar aquela luz, é isso o “Fora da Lei”.

Tens sentido uma boa aceitação? O feedback é positivo?

Enorme! Em meses consegui dois milhões de streams só com o Processo. É inédito para mim. Bem aceite, bem recebido, bem consumido faixa a faixa. As pessoas perceberam qual é o meu caminho, qual é a minha ideologia e qual é a minha pessoa, que é o mais importante. Não é só meter o hit e dizer que é um hit.

As pessoas já não veem o meu som só como um hit. O meu som fica na cabeça e na alma, sinto isso também. Acordo feliz todos os dias por causa disso.

Lembro-me de ouvir alguns temas teus mais antigo, quase 100% em crioulo. Mas a tua música tem vindo a mudar, e parte dessa mudança é a língua. Cantar mais em português foi algo pensado? Como e porque é que fizeste esta transição para o português?

Foi uma evolução. Como eu digo, tudo é um processo, tudo é uma caminhada e tudo tem um trilho. Para fazer música em português não acordei uma manhã e disse: “vou fazer música em português”. Não aconteceu assim, posso-te dizer que não estava estudado.

E sentes-te mais confortável a escrever em crioulo ou em português?

Nos dois. Mas antes não. Só tentei escrever em português depois do meu som “Respeito”, que foi o meu primeiro em português (do Percurso de 2018). Aí é que comecei mesmo a escrever em português com a ajuda do meu “irmão” João Viola. Na altura estava a viver em Rio de Mouro e ele estava-me a ajudar enquanto eu fazia as minhas cenas em casa. Já estava a fazer a “Lições da Vida” e surgiu uma cena, aquela conversa de fazer crioulo e alargar o meu espaço na música portuguesa, porque a malta começava já a ouvir a minha música e eu sentia que tinha de dar algo em português.

As pessoas precisavam de perceber um bocado a minha vida e aquilo que eu passei, porque eu cantava em crioulo e os manos portugueses não sentiam… Ou melhor, sentiam a música mas perdiam muita coisa. Depois ficavam a achar “ele tem ganda métrica e ganda flow, mas gostava de perceber melhor a visão dele”, e isso fez-me escrever em português de obriga. Senti que tinha essa obrigação: eu sou português, nasci aqui, então tenho que erguer essa bandeira e levar isso para a frente.

É que o rap crioulo está a entrar no mainstream, parece-me legítimo afirmar isto. Temos dois artistas, e isto é uma interpretação minha, que estão a levar o crioulo às rádios. Sentes que isto é benéfico para ti?

É benéfico, claro, é uma evolução. É o rap crioulo a entrar no mercado artístico e a gerar dinheiro Antes o rap crioulo não era visto assim, foi preciso muita batalha e muita luta para as pessoas verem o rap crioulo a vencer. E todos os dias tem uma batalha para ver o rap crioulo a vencer: a língua. 

Há uma barreira linguística…

Ya. E a nossa batalha é essa. É fazer a língua ficar e crescer dentro das pessoas até que a pertençam. E estou a falar do crioulo cabo-verdiano, mas há também o crioulo guineense. Mas tento fazer isso também com o português, porque há muitas palavras que derivam do português, então tento juntar essas duas bases: o português que aprendi na escola com o crioulo que aprendi com os meus pais. Junto esses dois e tento fazer algo brilhante na música que seja arte. O crioulo tem que ficar.

Sentes que é esse o caminho, misturar crioulo e português no mesmo tema?

Ya, eu acho que é isso. As pessoas vão crescer, vão aprender e vão se informar para ficar a perceber, como [fazem com] o inglês, por exemplo, ou o francês.

E achas que há espaço no mercado musical português para isso?

Há espaço. A língua é o ritmo e isso é universal. A nossa voz é um instrumento. Eu vou para África e vou ouvir manos com um flow incrível a falar cenas que eu não percebo, mas eles têm um ritmo e uma essência e se eu for aprender a língua deles vou perceber aquilo de que falam e vou conseguir perceber a realidade deles. A língua há-de chegar onde nós queremos, e o objectivo é chegar às pessoas.


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