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Julinho KSD

Sabi na Sabura

Sony Music Portugal / 2021

Texto de Gonçalo Oliveira

Publicado a: 06/10/2021

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“Artista exclusivo, eu trabalhei”, reconhece Julinho KSD em “Sabi na Sabura” tema que encerra e partilha o título com o álbum de estreia que editou há pouco mais de uma semana pela Sony Music Entertainment Portugal e que esteve na base de uma grande entrevista com o Rimas e Batidas. Não são os carros, as jóias, as mulheres ou as festas que definem o valor de um artista. Este é mesmo o maior flex de todos que um artista pode exibir musicalmente: enaltecer a discográfica que lhe ofereceu a oportunidade de se profissionalizar sem esquecer que foi preciso largar sangue, lágrimas e suor para agora “estar bem na vida”, como indica a expressão em crioulo cabo-verdiano que resume as 20 faixas do disco.

Ser-se artista por si só, “dependente” ou independente, não é tarefa fácil e Julinho destaca-se ainda mais dentro deste capítulo porque teve de o aprender a ser sozinho. Não houve propriamente um processo evolutivo que nos ajudasse a perceber todos os passos que deu para chegar onde chegou. Não partilhou estúdio com pares já estabelecidos, não teve nenhum outro nome de artista sob o qual pudesse ter mostrado versões mais cruas de si mesmo, fintou o formato de mixtape, uma espécie de “requisito mínimo” na cena rap da Linha de Sintra… Em suma, esteve sempre entregue a si mesmo e as únicas conexões que estabeleceu em início de carreira foi com os amigos de longa data dos Instinto 26 que, no máximo, sabiam tanto como ele.

Toda esta “inocência” em relação à forma como funciona a indústria musical tornam a história da sua escalada ainda mais cristalina. Certamente que se “Sentimento Safari” fosse um tema conduzido em estúdio por Branko e Carlão, por exemplo, os autores saberiam logo à partida que estavam com um dos maiores êxitos nacionais dos últimos anos nas suas mãos. Para Julinho, o tema não passava de uma vibe e a fama que alcançou à sua pala foi tudo menos equacionada. É mera consequência dos standards que se conseguem atingir quando alguém se mentaliza de que o tempo gasto em estúdio deve de ser levado tão a sério como quando se trabalha durante aquelas oito horas num qualquer outro local e com a garantia de um determinado rendimento previamente combinado.

É aqui que entra um certo peso de responsabilidade. Criou-se uma expectativa em torno daquilo que viria a seguir. E mesmo sem ter uma ideia completa de quais seriam os próximos passos a dar, o jovem artista foi adoptando uma postura de ultra-regularidade durante uma caminhada de vários singles. De repente, a sua vida parece ter entrado num longo e intenso Inverno, já que não mais parou de lhe chover distinções pela performance comercial dos temas que lançou no entretanto. A “Sentimento Safari” juntam-se “Vivi Good”, “Hoje N’Ka Ta Rola”, “Hoje En Sa Tá Vivi”, “Conclusão” e “Stunka” na lista de canções que faziam de Sabi na Sabura um dos trabalhos mais premiados de sempre em solo nacional ainda antes da sua edição. E isso é muita fruta. “Sou tendência até com o tópico”, uma das frases que canta em “Vou”, em referência ao canal gerado automaticamente para a distribuição via YouTube, é daquelas dicas que nem todos se podem dar ao luxo de escrever.



Com tantas revelações que nos foram sendo feitas ao longo dos últimos dois anos, Julinho nunca quis entregar ao seu público um álbum que soubesse mais a uma compilação de êxitos. Com pouco mais de uma hora de música, o disco goza do privilégio de conter o dobro das canções já dadas a conhecer, havendo por isso muitos inéditos para tornar a sua escuta ainda mais valiosa. E agora que os temos ao nosso dispor percebemos as dores de cabeça que poderão ter vindo do processo de escolha dos singles. “Don’t Lie” (com Richie Campbell) em nada fica atrás de, por exemplo, “Hospedeira” (com Deezy e T-Rex). Tal como o mel que escorre de “Vou” não é menos espesso do que aquele que nos havia sido dado em “Mistura”. O replay value de “É Ka Nada Dado” (com os Instinto 26) consegue ser tão forte quanto o de “Vivi Good” (com Yuran e Trista). E podíamos ficar o dia todo nisto.

Mais do que números ou medições de sucessos, Sabi na Sabura é um daqueles discos que a música portuguesa precisava urgentemente, numa altura em que a estética da canção pop cada vez mais tenta ir ao encontro das raízes de quem a cria. No caso de Júlio Lopes, português descendente de cabo-verdianos, a identidade da seu som chega-nos através da ginga rítmica, tão quente e suada, que absorveu da música que os seus pais escutavam. Nada que Dino D’Santiago não tenha também já colocado em prática, é verdade, mas é precisamente aqui que entra o papel do hip hop na equação: o artista de Mem Martins pensa nos seus versos com a perspectiva de um rapper, usa a ferramenta mais em voga no género, o auto-tune, como complemento para uma voz naturalmente sedutora e tem sempre um lado bairrista e urbano, influenciado pela vertente crioula do rap de rua, muito presente na forma como pensa e executa a sua música. O gap geracional faz também com que Julinho seja um produto mais relatable, não fosse ele mais novo que a própria Internet e ter, por isso, nascido em plena era de abundância de estímulos e informações.

Pondo a coisa numa perspectiva mais global, a música contida em Sabi na Sabura faz justiça à renovação estética da morna ou do funaná da mesma forma que C. Tangana e Rosalía ajudaram na reconstrução do flamenco e da música latina de foro tradicional para um modelo mais actual; ou da nova vida do reggaeton à boleia de fenómenos como J Balvin e Bad Bunny, tal como Wizkid e Burna Boy têm feito com as sonoridades da Africa Ocidental, como o afrobeat e o highlife, elevando-as ao estatuto de afro-pop. Multiculturais como somos, não nos bastava ter esse tipo de homenagens a ficarem-se apenas pelo fado ou pela música tradicional de certas zonas do país. É preciso ir a todas as raízes que nos tornam neste povo tão singular e essa caminhada tem também tido fortes contributos de Dino, Prétu ou Tristany. Mas isto é só o início e ainda há muito por explorar, até mesmo em continentes como a Ásia ou a América do Sul. Que o sucesso de Sabi na Sabura possa inspirar novas modas e enriquecer ainda mais esta nossa cena musical que nunca esteve tão fértil como agora.


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