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Fotografia: Manuel Abelho
Publicado a: 24/09/2021

Num balanço tão periférico quanto perfeito.

Julinho KSD: “Vem tudo da minha cabeça. Ninguém me impingiu ou obrigou a fazer nada”

Fotografia: Manuel Abelho
Publicado a: 24/09/2021

Cada vez mais ponderamos o futuro dos jovens portugueses ao mesmo tempo que comprovamos que quem já está de pedra e cal no mercado de trabalho parece não ter bem a ideia das dificuldades com as quais os novatos se deparam. Processos de recrutamento exaustivos, condições desonestas, salários deploráveis ou chefias que parecem ter perdido a noção de que, antes tudo o resto, estão a liderar equipas formadas por outros seres humanos. Imaginando que conseguimos fintar tudo isto e até estamos minimamente confortáveis com o posto que ocupamos, há uma outra questão que surge logo em seguida: que perspectivas existem de subirmos na carreira nos próximos 5, 10, 20 anos?

Nunca foi tão inteligente como agora sermos donos e senhores das nossas carreiras e há um termo que está bastante em voga para isso — empreendedorismo. Com toda a consciência do que isso envolve, Julinho KSD juntou-se não há muitos anos com um grupo de amigos para formar os Instinto 26. Começaram da estaca zero e num país onde “o ordenado não dá para nada”, conforme revelou durante uma longa conversa com o Rimas e Batidas. “É muito difícil para as pessoas conseguirem juntar dinheiro e comprar equipamentos. Até mesmo pagar para ter um videoclipe ou algo do género, porque as pessoas querem ser profissionais e evoluir. Nós gastámos muito dinheiro nisso.”

“Profissionalização” e “evolução” são dois conceitos que o grupo teve de levar muito a sério para chegar onde chegou num curto espaço de tempo. Basta-nos traçar a curva qualitativa que vai de “Básico“, tema de estreia de Agosto de 2017, a qualquer uma das faixas presentes em Sabi Na Sabura, o álbum de estreia de Julinho, hoje editado pela Sony Music Entertainment Portugal. Em menos de quatro anos, a música que mostra ao mundo deixou de ser um hobby dispendioso e já lhe dá retornos. O jovem rapper do Casal de São José, em Mem Martins, teve visão para rentabilizar a sua voz. E não quer ficar por aqui: “Agora quero explorar o empreendedorismo no máximo de áreas possíveis. ‘Olha lá, tu não és aquele cantor?’ ‘Não, não. Sou empreendedor!'”, atira entre sorrisos.

Embora ainda dentro da música, há uma importante série de passos nesse sentido que estão neste momento em marcha. Tudo começa com uma loja alugada não muito longe do bairro onde cresceu, que desde Janeiro deste ano funciona como estúdio e foi o local onde nos recebeu para escutar o seu disco e trocar várias impressões. Apesar de estar munido apenas das ferramentas essenciais, os melhoramentos das divisões acontecem de forma orgânica e consoante as necessidades. Quando lá chegámos, por exemplo, o calor daquela tarde tinha acabado de motivar mais um upgrade — uma ventoinha.

Os presentes nesse espaço naquele dia não serão, no entanto, os únicos a tirar proveito das sucessivas actualizações da sala. Julinho está com um olho nos estádios da primeira divisão, focado na sua carreira, mas mantém o outro centrado naqueles que ainda estão a jogar as primeiras peladinhas. “Alguns dos rapazes já vieram aqui ao estúdio. Já gravei cá um tropa meu chamado Guru, que também é lá do bairro. Também já gravei o Rubinho, que era um gajo que fazia parte dos Instinto 26, no início, e que quis sair para fazer a cena dele. Mas ele sempre se continuou a dar connosco. É nosso tropa na mesma. Também recebo aí bué rapazes que só vêm mesmo para brincar. Fazemos um beat de funaná, metemos a tocar a começamos a gozar com as mães uns dos outros [risos]. São cenas feitas por brincadeira.”

Ao mesmo tempo que providencia aos outros as condições que não teve no início da sua jornada, o autor de “Sentimento Safari“, o mais inesperado dos hits nacionais de 2019, não se desleixa naquilo que é o seu crescimento artístico, que eventualmente o há-de levar a um ponto de auto-sustentabilidade musical. Na ficha de créditos de Sabi Na Sabura, o seu nome surge associado à produção de 11 das suas 20 canções, um número incrível para quem ainda há bem pouco tempo apenas se dedicava a cantar. Pode-se dizer que a pandemia pode ter dado uma mãozinha, mas nunca retirar-lhe o mérito da disciplina que impôs a si mesmo. O seu despertador biológico faz levantá-lo da cama todos os dias por volta das 7 horas da manhã — “Levanto-me porque já não consigo dormir mais. A partir daí, começo logo a fazer qualquer coisa. Posso ir para o estúdio, por exemplo, e começar logo o dia a fazer música”. E nem a conclusão do tão esperado álbum o levou abrandar. Se lhe perguntarem se vai a estúdio todos os dias, um “ya!” entoado de forma enérgica faz-nos perceber que estamos perante um verdadeiro workaholic. “Já temos bué sons novos gravados entretanto. Gravamos a toda a hora. Por dia fazemos um ou dois temas. Se for necessário, chegamos aos três ou quatro. Tem de ser. É mesmo rotina”. Feitas as contas, a sua gaveta já tem, “tranquilamente”, o equivalente a “mais dois álbuns”. Hipotéticos para já, claro. Até porque nem as edições acontecem ao acaso no universo dos Instinto 26.

Numa altura em que as trajectórias de Yuran, Trista e Kibow também vão dando os seus frutos a solo, ficou-nos aquela sensação agridoce de nunca ter chegado a escutar os quatro comparsas em disco, conforme nos haviam antecipado em Outubro de 2019, na primeira entrevista para o Rimas e Batidas. É normal. Estavam no centro de um turbilhão ascendente que ainda há pouco tempo os tinha levado a assinar pela Sony. Mas os anos de “atraso” — porque nunca é tarde de mais quando o assunto é enriquecer a nossa cultura — vão certamente compensar. Até porque o formato com que sonham apresentar-se nesse registo — seja LP ou EP — é deveras promissor e vai reflectir à letra a evolução que o quarteto tem tido até aqui. Julinho levanta um pouco o véu à reformulação do grupo, que neste momento é não apenas um projecto musical mas também algo que caminha para os contornos de uma editora:

“Somos ambas as coisas. Nós vamos ser uma espécie de editora muito lixada. Ainda não o conseguimos fazer, daí eu te estar a dizer que ainda o vamos ser. Como grupo, havemos lançar projectos. Posso dizer-te que isso está a ser trabalhado. Ainda ontem fizemos um som muito dangerous [risos]. Somos nós a fazer os instrumentais e a cantar neles. Neste momento só eu é que mexo na produção mas eles estão todos a aprender a fazer isso também. O Trista, por exemplo, está até a aprender a trabalhar num programa diferente daquele em que eu mexo. Por isso, tudo o que ele aprender depois vai-me ensinar. Tal como aquilo que eu já sei, também lhes ensino. Gravar, gravamos todos. Todos já sabemos como gravar.”



[Sabi Na Sabura]

Em vez de chorar o tempo de palco que a pandemia lhe roubou, o rapper meteu mãos ao trabalho durante o primeiro confinamento. O plano foi arrojado e certamente lhe trará frutos a dobrar agora que tudo se encaminha para a normalidade do pondo-de-vista dos espectáculos. Sabi Na Sabura nasce de uma espécie de residência artística improvisada por Julinho, que reuniu numa casa alugada alguns músicos e produtores para o ajudarem a delinear o seu primeiro longa-duração.

“Não comecei a fazer o álbum logo na altura [em que lancei os primeiros temas]. Foi algo que só aconteceu com o desenrolar do tempo. Comecei a trabalhar nele na quarentena, como uma forma de fugir da situação em si. Porque se não eu ia estar toda a hora a pensar, a bater com o crânio por não ter actuações. O álbum serviu para eu escapar a essa realidade e eu gostei bué de o fazer. Acho que deu certo.

O início deu-se no estúdio da DirtyDoc com o Fumaxa, o Migz e o Rubik. Começámos a organizar ali umas coisas, a falar com certos músicos. Só que nós já estávamos fartos de lá estar, sempre no mesmo estúdio. Era sempre o mesmo spot e sentíamos que já não íamos conseguir criar mais nada diferente. Então tivemos esta ideia: ‘vamos alugar uma casa e vamos para lá todos produzir este álbum’. Fomos para lá e chamámos mais alguns músicos. Até gravámos lá um videoclipe para uma das faixas do disco, só que acabámos por não lhe dar seguimento. Mas foi lá que fizemos o álbum e correu bué bem.”

Confessa ter feito “umas 45 ou 50 faixas” no total durante essa jornada — “e estou só a contar com aquelas que nós escrevemos e gravámos”, sublinha — tendo a maior dor de cabeça sido a escolha de umas em detrimento de outras. Enquanto percorre mentalmente tudo aquilo que teve de deixar de lado, vem-lhe à memória um desses êxitos que ainda só ele conhece mas que conta dar a conhecer ao mundo no seu devido tempo: “Há uma delas que há-de entrar no meu próximo projecto e… Meu deus, está muito quente [risos]. Doeu-me que ela não tenha entrado neste disco.”

A vida ensinou-nos a desconfiar de quem se gaba. Aquilo que não nos foi dito é que do outro lado, a proferir tal auto-elogio, podia estar alguém que em apenas um par de anos passou de desconhecido a ícone nacional e que pelo caminho limpou mais distinções do que muita gente com décadas de correria. Não há como duvidar de quem apresenta um historial destes. Se, nos singles, Julinho já disparava banger atrás de banger, o alinhamento escolhido para o seu álbum de estreia não fugiu a essa mesma regra. Ter um trabalho direccionado desta forma, ultra-dançável, alegre e pleno de batidas exuberantes “foi sempre a intenção”. A única excepção vai para “16 de Abril”, a segunda faixa a surgir na tracklist e provavelmente a mais autobiográfica de todas, que no entanto, ao vivo, parece não vir a ter escapatória possível — “vamos meter bué pedrada nisto”, soltou enquanto a música ecoava no seu estúdio naquela tarde.

É o próprio quem assume as regras do seu jogo e toma todas as decisões finais. “Vem tudo da minha cabeça. Ninguém me impingiu ou obrigou a fazer nada”. Nem mesmo quando, no quadro, passa a constar também o símbolo de uma editora major. Mas dentro do seu círculo há quem o ajude a orquestrar o rumo das coisas: “O Migz é o meu ouvido direito. Eu confio muito na intuição dele. Se houver algo de que eu estou a gostar muito e ele não, eu vou tentar perceber o lado dele e ele vai tentar perceber o meu. Se ambos não chegamos a um consenso, vamos ter de tentar trabalhar a coisa de uma outra maneira. Mas o Migz era mesmo o maestro daquelas sessões. Ele estava sempre a gerir o mambo. Eu dou-lhe o controlo das coisas. Ele ia ao estúdio do Here’s Johnny para ver como estava a ficar a masterização. Era ele quem estava com o Ariel a toda a hora a tratar das guitarras. Ele pedia ao Fumaxa mais não sei o quê. A toda a hora ele assumia a organização das cenas.”

Apesar da magnitude de toda esta operação, o processo de composição dos temas não deixa de ser curioso: tudo começa com a procura de beats na Internet aos quais aplica letras e melodias de voz; a ideia segue para junto dos seus produtores, que tentam criar uma base 100% original a partir dos acapellas dessas maquetes. E as frases que escreve a sós, sejam elas introspectivas ou de maior grau de efusividade, não são mais do que relatos de capítulos que residem no seu íntimo:

“É na música que eu liberto os sentimentos e emoções que tenho cá dentro. Aquilo que eu gravo tem de ficar mesmo assim. Porque se eu for tentar escrever de uma outra maneira, já não vai soar a mim e vai soar a uma outra cena qualquer. Apenas deixo os sentimentos me levarem. Talvez seja por isso que as pessoas se identificam [com o que faço]. Eu sou como elas. Nem todos os dias estou super bem. Há dias em que também estou mal. E as pessoas, se estiverem tristes, vão querer ouvir essas músicas mais calmas. Se elas estiverem mega alegres, numa grande drena, vão querer ouvir aquelas cenas mais mexidas. Eu tento só tocar nos sentimentos das pessoas. E a música que eu faço depende dos dias.”



[Os convidados]

Algo que faz de Sabi Na Sabura um projecto ainda mais especial é a escolha cirúrgica — poucos, mas bons — dos convidados. Uma dessas colaborações foi dada a conhecer logo no início deste ano como banda sonora para o Dia de São Valentim. Em “Hospedeira“, Julinho contracena com duas das vozes que mais se têm destacado no panorama rap e r&b português, Deezy e T-Rex.

“Eu já os ouvia. O Deezy, então, já o ouvia há bué tempo. Do T-Rex também estava a par do trabalho dele. Por acaso, nunca tinha pensado em vir a colaborar com eles, mas quando comecei a fazer este tema… Olha, estou agora a lembrar-me: eu estava em casa, no corredor, quando comecei a escrever esta cena e estava por lá a cantá-la; até tenho um vídeo em que estou a curtir o som com a minha mãe. Pensei, ‘se calhar meto o Deezy aqui. Isto tem uma grande vibe, é um som de amor e ele é o rei do amor. Vou chamá-lo”: Chutei-lhe a ideia e ele disse ‘ya, por mim ’tá-se bem, bro‘. Quando ele apareceu aqui para trabalhar, eu chutei-lhe a outra ideia, ‘baza meter aqui mais um elemento’. E ele, ‘estás a pensar em quem?’ Disse-lhe que curtia bué do T-Rex, porque o gajo rasga com grandes rimas e era fixe ter aquela cena de começar com um verso mais calmo e, depois, vir outro verso mais nervoso, com aquelas barras a deslizar de cima a baixo. Ele era a pessoa certa. Entrei em contacto com ele, juntamo-nos e fizemos acontecer o mambo. Já o beat é do Lazuli e ele trouxe logo umas quantas ideias na base do instrumental. As guitarras foram adicionadas depois. O Ariel saiu de lá com os dedos todos queimados, porque aquele gajo nunca pára. Ele experimentava a toda a hora. O Migz dizia ‘não. Não. Não. Ainda não acertaste’. E ele ia tentando, tentando, até que acertou naquela.”

No lote das faixas inéditas que só hoje são mostradas ao público mora uma outra colaboração orelhuda, “Don’t Lie”, que coloca Richie Campbell e Julinho novamente juntos, eles que já tinham ajudado a abrilhantar “The City is a Jungle”, importante single de estreia em nome próprio por parte de Fumaxa.

“Ele esteve connosco no estúdio. Nós fizemos o projecto juntos. Só não sabíamos, na altura, se o som iria parar ao álbum. Acabou por entrar. Mas o objectivo, inicialmente, era só o fazermos um som juntos. Não sabíamos com que finalidade o íamos fazer. Entretanto, também aparece a colaboração com o Fumaxa, na ‘The City is a Jungle’. Esse até foi o primeiro som a ser feito entre nós. Depois existiu uma outra sessão, em que o beat da ‘Don’t Lie’ passou e ele começou a cantarolar essa frase. Nós sabíamos que se não fosse naquele beat íamos acabar por fazer um som noutro beat. Mas aquele ficou logo a soar bué bem.”

Embora num registo mais técnico, o toque de Here’s Johnny surge como um trunfo que ajudou a manter todo o produto coeso. É o homem-forte da Superbad quem ficou responsável por praticamente toda a mistura e masterização de Sabi Na Sabura, ele que, como é já um hábito seu, teve também luz verde por parte do jovem artista para poder alterar e/ou adicionar elementos aqui e ali um pouco por todo o LP.

“Ele adicionou algumas batidas. Ele é uma pessoa que consegue perceber o que é que falta. Se eu tivesse três ouvidos, um era meu, outro era do Migz e o outro era o dele. ‘Mano, achas que consegues meter aqui mais qualquer coisinha?’ É que depois kuia bué o que ele faz! Ele navega bué nos projectos. Consegue tirar as vozes de um sítio, colocar no final, dar-lhes um reverb e às tantas aquilo já soa quase a um outro instrumento qualquer. Esse wi é mágico. Foi uma pessoa muito importante. Eu já acompanhava os trabalhos dele para a Superbad e todos nós sentíamos que ele era um dos gajos mais lixados da tuga. E nós queremos ter os mais lixados na equipa. Fomos buscar o gajo para este projecto. O Janga [com quem vinha a trabalhar] também é um gajo muito lixado, mas eu queria experimentar uma cena vinda de fora desta vez. Trazer algo de novo. Curti.”



[As origens e influências]

Em Março de 2020, Julinho colocava os holofotes sobre a sua progenitora no singleMama Ta Xinti“, uma bonita demonstração de apreço pela mulher que o trouxe ao mundo e lhe deu a educação necessária para conseguir vingar, tarefa que teve desempenhar sozinha quando o pai do rapper partiu para França em busca de um salário melhor que pudesse proporcionar outro tipo de condições à família, tal como pinta em “16 de Abril”.

“A única palavra que consigo usar para descrever o que ela significa para mim é ‘tudo’. Ela é tudo! Até aos meus 12/13 anos fui criado pelos meus dois pais. Eventualmente, tal como acontece em muitas das famílias lá do bairro, os pais têm de emigrar para ver se conseguem arranjar uma vida melhor para os filhos que ficam cá. A vida melhor nem é para eles. Eles até podem estar a viver nas piores situações. Mas querem dar melhores condições aos que ficam cá. Nessa altura o meu pai foi para França e, a partir daí, fui sendo criado só pela minha mãe. Mas o meu pai sempre esteve presente e eu por vezes ia a França para estar com ele.

O papel de cada filho é vingar na vida em nome dos seus pais. Eu estou a conseguir vingar na vida e agora posso dar algumas coisas à minha mãe com as quais ela sempre sonhou. Por enquanto são apenas algumas. A cena que eu quero mesmo muito dar-lhe é um cubico. Eventualmente, também darei um ao meu pai. Mas eu creio que eles se vão voltar a juntar. Eles estão separados mas isso aí é brincadeira [risos]. Hei-de comprar uma casa para eles os dois lá em Cabo Verde. Esse era o sonho deles e só aí é que eu vou ficar mesmo descansado.”

Foi precisamente dos pais que lhe chegaram os primeiros contactos com aquelas que viriam a ser as suas referências musicais do arquipélago africano, uma bandeira que hasteia lá bem no alto em Sabi Na Sabura, cujo arranque se dá ao som dos Ferro Gaita, samplados pelo próprio Julinho em “Panha Mau” — “Pensei logo em fazer a intro desta forma. Porque é uma cena bué tradicional e vai ao encontro das minhas raízes. Esta faixa é mesmo para rebentar, seja no início do álbum ou no começo de um espectáculo.”

“Ouvi Jorge Neto, Gil Semedo… Há o Gilyto, que houve uma altura em que eu ouvia bué. A minha mãe curtia bué de Kino Cabral. Eu fui muito influenciado por esses sons porque eram as músicas que a minha mãe ouvia. O meu tio gostava bué de piratear CDs, que trazia do Luxemburgo para a tuga para mostrar à minha mãe. Ele deixou bué CDs lá em casa e eu ouvia. Sempre gostei dessas músicas mais antigas de Cabo Verde, porque eram as coisas que o meu pai e a minha mãe gostavam. A minha mãe era mais de sentimentos, de Jorge Neto e assim. O meu pai era mais Ferro Gaita. Quando íamos de carro era sempre Ferro Gaita.”



[Rap crioulo]

Confessa nunca ter prestado muita atenção à música cantada em português no passado, sendo que até mesmo as frequências nacionais que lhe passavam nos ouvidos eram maioritariamente servidas em crioulo. Allen Halloween e Valete são as duas excepções que nos aponta, embora reconheça nunca ter divagado muito pelas suas discografias e se ter limitado a escutar apenas as faixas mais emblemáticas que ambos assinaram no passado. “Também houve uma altura em que ouvia reggae”, lembra, antes de passar a enumerar alguns dos MCs que mais o marcaram: “Acho que o que eu ouvia mais era Loreta, Landim, Né Jah, o Puto G… Também havia os Da Blazz, que eram um grupo do qual eu curtia bué. O Ghoya. Era por aí que eu andava.”

Julinho acompanhou de perto aquela que foi a primeira grande vaga do rap crioulo, muitas vezes olhada de lado no circuito da música em Portugal. Felizmente o caso tem vindo a mudar e o autor de Sabi Na Sabura surge como cabeça-de-série numa nova fornada de artistas que estão a trazer o dialecto de Cabo Verde para a camada mais mainstream e aponta agora os factores que podem ter contribuído para este revolução sonora no nosso país.

“Eu acho que nós antes éramos mais fechados. Era uma cena mais de street. Agora temos todos mais cabeça, estamos mais abertos à exploração. Os artistas começam a aperceber-se de que têm voz para fazer algo. Um pode dar no afro, outro pode ir ao drill, outro pode alinhar numa morna. Basta só arriscar e explorar. No bairro, por exemplo, as pessoas estão a aperceber-se disso, que o crioulo pode ser usado para fazer qualquer tipo de música. Há quem tenha voz mais grossa ou mais fina que a minha mas que sabe cantar. Há quem nem precise do auto-tune. É só uma questão de explorar e eventualmente hão-de descobrir qual o rumo a seguir.

Sinto também que os portugueses estão mais interessados em perceber as outras culturas, neste caso de Cabo Verde. Têm cada vez mais curiosidade. Gostam das palavras. As expressões estão a começar a soar-lhes bem e, por isso, ouvem mais. Isso faz com que também queiram aprender mais sobre a cultura que está por detrás. Mas, no meu caso, aquilo que tentei fazer foi misturar um bocado de português. Acho que foi por isso que consegui entrar mais facilmente no circuito da música em Portugal. Apesar de eu considerar que aquilo que eu faço é rap maioritariamente em crioulo. Mas, para mim, rap crioulo e rap português são a mesma coisa. Muitas pessoas é que ainda fazem essa distinção. Tens o exemplo de algumas playlists, que ainda fazem a distinção entre rap tuga e rap crioulo.”



[“Sentimento Safari”]

Quando toca o tema que o catapultou para o estrelato, nota-se um brilho especial nos seus olhos. Num tom sereno e que denota uma certa gratidão com tudo o que se sucedeu, acaba por soltar um “esta faixa mudou a minha life. Mesmo!” Na altura os beats eram sacados da net e, tal como aconteceu com “Vivi Good” ou “Hoji En Sa Tá Vivi“, foram parar ao álbum de estreia tal e qual tinham sido lançadas. O mais incrível é que nem destoam do produto original que foi cozinhado de propósito para o disco. É esta a sua forma de reconhecer de onde veio e das condições que tinha então ao seu dispor.

Curiosamente, o tema foi lançado para a Internet para tapar um buraco de última hora e logo a meio de uma das pouquíssimas viagens a Cabo Verde que Julinho teve a oportunidade de fazer. Coincidências?

“Já fui a Cabo Verde duas vezes. Uma em 2008 e outra em 2019. Em 2019 foi engraçado: tinha acontecido um problema com um som do grupo, dos outros rapazes [dos Instinto 26], e o nosso manager ligou-me a dizer, ‘Julinho, temos de lançar alguma coisa porque já tínhamos avisado os fãs todos que ia sair um novo som. Então temos de lançar o teu [‘Sentimento Safari’] porque esse já está ready.’ Eu disse ‘lança!’ Ou seja, quando esse som saiu, eu estava em Cabo Verde. Quando eu cheguei à tuga… Estava famoso [risos]. Tínhamos actuações marcadas e tudo.”

Em relação à recepção da sua música pelos cabo-verdianos, o rapper não consegue, para já, ter a completa noção da verdadeira dimensão. “Não sei o quão conhecido eu sou lá neste momento, porque entretanto não tive a oportunidade de voltar. Mas já me mandaram snaps de lá bué vezes. Por isso não sei. Acho que a minha música passa lá na rádio e na televisão, porque já recebi mensagens das minhas tias a dizer ‘ah, estás na televisão’ [risos].”


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