Julian Sartorius vai fazer o que tem feito a vida toda: tocar bateria; e Mathew Herbert, para não destoar, vai igualmente fazer o que sempre fez: moldar o som à sua maneira. Mas os dois artistas — o suíço e o britânico — não vão estar isolados num estúdio, imersos em modo laboratorial. Vão, ao invés, partilhar o palco e improvisar os discursos com que vão comunicar nesses encontros — amanhã, dia 22, sobem ao palco da Culturgest, em Lisboa; na quinta-feira, dia 23, vão até Braga para assinarem um concerto no gnration; e a 24 apresentam-se na Auditório de Espinho. Três encontros e, certamente, três resultados muito diferentes com o originalíssimo baterismo de Sartorius a submeter-se ao processamento em tempo real de Herbert.
O baterista suíço, que o Rimas e Batidas viu e ouviu ao vivo num entusiasmante concerto no festival Ultima, em Oslo, explora avançadas noções de ritmo através da minuciosa repetição, extraindo do seu kit — e dos objectos algo “cageanos” com que a prepara e altera — sons tão envolventes quanto, por vezes, inusitados. Tudo isso será passado pelo crivo electrónico de Herbert e devolvido às plateias da Culturgest, gnration e Auditório de Espinho como uma hipnotizante música onde o pulsar repetitivo, o espaço dub e a estética electrónica se envolvem para tecerem um novo mundo sónico.
Numa ligação Zoom a partir do seu caseiro espaço de trabalho, Julian Sartorius dissecou o seu método de trabalho e o seu conceito de criação.
Começo por te perguntar como é que se iniciou este teu projecto com o Matthew Herbert?
Essa história é bem longa. Nós começámos a colaborar em 2010 ou 2011. Foi um trabalho para um cantor, Merz, em que eu gravei bateria para o álbum dele e o Matthew era o produtor. Depois disso, o Matthew continuou a pedir-me para tocar bateria em certos projectos. Nós só comunicávamos por e-mail. Era sempre assim. “Olá. Podes gravar para isto?” Eu gravava e enviava-lhe. Trabalhámos assim durante muitos anos. Também trabalhei em alguns discos dele, em remisturas para ele… Mas nós nunca nos tínhamos conhecido [risos]. Era sempre por e-mail. E eu estava, para aí, nuns 4 ou 5 projectos dele sem nunca o ter conhecido. Nós conhecemo-nos, finalmente, em Londres, porque fomos ao mesmo concerto e tivemos a oportunidade de apertar as mãos. Mas continuámos a nossa relação laboral da mesma forma, até que ele, uma vez, teve a ideia de fazer um disco em duo. Nós gravámos o álbum Drum Solo e, depois, tivemos um convite para tocar no festival Rewire, em Haia, enquanto dupla. Esse foi o nosso primeiro concerto juntos. Em Portugal vamos dar 3 concertos, mas isto de estarmos os dois no mesmo palco ainda é uma coisa muito nova. Nós gravamos muitas coisas, mas sempre de forma remota. Por isso, esta vai ser uma ocasião muito especial.
E logo com três concertos de seguida, o que é maravilhoso. Como é que vocês se organizam em palco? Vão estar os dois presentes?
Sim. Eu toco bateria acústica e o Matthew toca as electrónicas. Ele também consegue receber sinais directamente da bateria e mudar-lhes o som, julgo eu.
Eu pergunto se vão aparecer os dois em palco porque, ao escutar este disco, fez-me recordar uma formação ao estilo do dub, em que a banda está no palco e o engenheiro de som está por detrás da uma mesa de mistura a mixar o que os músicos estão a tocar. No vosso caso, estão ambos em cima do palco. O que é que me podes contar sobre o resultado final do álbum? É bem abstracto e contemporâneo ao mesmo tempo. Que tipo de reacções têm tido?
O processo foi muito interessante, porque houve muita improvisação no momento. Acho que só gravámos durante uma tarde. Foi do tipo: encontrámo-nos de manhã, fizemos o soundcheck e gravámos à tarde, tudo de improviso. Ele samplou coisas minhas, recebia sinal directamente daquilo que eu tocava. Foi tudo muito improvisado. Depois disso foi o estarmos a escolher as melhores partes, misturá-las e terminámos. Nós entrosámo-nos mesmo bem, foi muito espontâneo, directo. Isso foi uma das coisas de que eu mais gostei. Eu sou, maioritariamente, um improvisador, e o Matthew também gosta disso. Gostei que o disco ficasse assim, cheio de vida, ao mesmo tempo que está espontâneo e me soa refrescante. Tenho tido muitas reacções positivas ao disco. É interessante, porque quando o promotor do festival de Haia me contactou, ele disse: “Gostei imenso do álbum com o Matthew, mas vocês não conseguem tocar isso ao vivo, pois não?” E eu tive de explicar que sim, que conseguimos, até porque ele foi gravado ao vivo [risos]. Ele não soa a isso, mas foi mesmo gravado ao vivo. O que escutas no disco foi exactamente o que nós tocámos, apenas com uns ajustes na mistura, mas sem overdubs ou edição. É muito cru. É quase como uma cena de jazz.
Dois tipos numa sala a improvisar é uma cena típica do jazz, de facto.
E a coisa funciona muito bem em palco, também. Nós temos a mesma atitude que adoptámos no disco.
Tu não és um músico novo, mas és um nome que os meus leitores provavelmente não conhecem ainda. Por isso, quero perguntar-te sobre como se deu o teu início na música. Acho muito interessante aquela ideia da urgência que um artista tem em se exprimir, e penso sempre nesta questão: poderá alguém tornar-se, por exemplo, num saxofonista apenas porque calhou ter acesso a um saxofone, em vez de se tornar pintor porque não tinha pincéis e tinta? Como é que aconteceu contigo? Como é que percebeste que a bateria seria a tua ferramenta principal?
Para mim foi sempre claro desde o início — desde quando vim ao mundo, mesmo. Eu não tenho memórias sem a existência da bateria. A minha mãe conta-me que, aos 2 anos, eu estava sempre com vontade de percutir em tudo — coisas da cozinha, panelas, talheres… Aos 5 anos tive mesmo essa vontade de ter aulas de bateria. Foi nessa altura que tive o meu primeiro kit. Por isso, para mim, isso sempre existiu… Não te sei explicar porque é que fui para a bateria, mas senti-me atraído por ela desde o primeiro momento. Daí dizer-te que não tenho memórias de existir sem uma bateria. Andei em busca de mais coisas e também tive algum interesse em aprender a tocar guitarra, mas fiquei-me sempre pela bateria. Também desenhava muito. Mas a bateria, de alguma forma, foi aquela coisa que sempre ficou, independentemente de tudo o resto. Aos 16 anos pensei que talvez pudesse estudar bateria a sério, ao ponto de fazer disso a minha profissão. É claro, muita gente me disse que ser músico era bem difícil. E sim, é legítimo dizerem isso, mas eu queria mesmo e persegui esse caminho.
Os estudos que tu tiveste de bateria, quão formais foram? Seguiste por essa via ao nível do ensino universitário?
Sim. Eu estudei na Lucern School of Music e de há um ano para cá também lecciono lá. É muito especial. Tenho uma pequena porção de estudantes e direcciono-os em estudos de bateria e improvisação.
Eu estive em Oslo este ano e, quando te vi tocar, fiquei sempre com a ideia de que deves ter um cérebro matematicamente muito avançado. Parecia que estavas a resolver problemas complexos através da bateria.
Eu não me sinto dessa forma [risos]. Eu não estou assim tão virado para a matemática. É claro que eu sei em que tempos estou a tocar e assim, mas não é assim tão complexo para mim. Não me meto a pensar se tenho de tocar neste ou naquele tempo, simplesmente é uma coisa que… Sei lá, as coisas saem-me de ouvido. Eu não penso em demasia quando estou a tocar bateria.
É curioso, porque soa muito exacto e preciso, quase como se existisse ali uma máquina.
Entendo. Mas isso vem muito daquilo que eu ouço ou da estética que eu procuro. Eu não penso, na maior parte das vezes, em matemática. Talvez, em algumas vezes, com os poli-ritmos, eu tenha de pensar um bocado, mas não é assim tão complexo.
Eu li algumas entrevistas tuas e tu já mencionaste que passaste muito tempo a transcrever beats de música electrónica. Podes dar-me um par de exemplos? E dentro disso, transcreveste coisas do hip hop — J Dilla ou algo do género?
Eu até te digo que a maior parte dos beats que transcrevi eram de hip hop. Eu adoro isso e é algo que ainda hoje tem uma enorme influência no que faço. Mas, nessa altura, eu estava mesmo focado nos beats do Timbaland, o produtor da Missy Elliott. Transcrevi alguns beats da Missy Elliott, produzidos pelo Timbaland, e depois alguns beats do Busta Rhymes — muitos mesmo — mas não me lembro de quem era o produtor. Eu transcrevia essas coisas e, às vezes, tentava tocá-las na bateria. Lembro-me de outro: sabes quem é o Dizzee Rascal?
Sei pois.
Eu transcrevi alguns beats do primeiro álbum dele nessa altura, talvez por volta de 2006. E eu não só transcrevia os beats, como tentava imitar os sons. Lembro-me de um do Dizzee Rascal que tinha um som agudo, tipo um “beep”, mas não sabia como fazê-lo na bateria. Então fui a uma loja de brinquedos à procura de algo que fizesse esse som e eles só tinham um urso de peluche enorme que fazia esse som [risos]. Eu não tinha como tocar um urso de peluche daquele tamanho, logicamente [risos]. Disse-lhes que apenas precisava do som e não do urso. Então disseram-me para experimentar ir ver nos brinquedos para cães, algo mais pequeno que dê para os cães brincarem. Foi ai que encontrei algo mais pequeno que fazia esse “beep” quando se apertava. Então, com isso, conseguir realmente imitar o beat do Dizzee Rascal com bateria acústica. Foi muito importante para mim pegar em beats de electrónica e conseguir tocá-los numa bateria acústica, porque eu sempre gostei de sentir o toque dos materiais com que toco. Gosto de ter uma baqueta, tocar em algo e sentir que o som veio mesmo dali, não de estar a carregar nos botões de uma máquina. Também gosto de tocar em concertos com bateria sem microfones, porque é muito interessante ver como o som ressoa. Também gosto de sentir como posso moldar os sons com as minhas próprias mãos, sem ser necessário recorrer a um controlador. Portanto, eu gosto do som acústico, mas gosto também de expandir a variedade de sons que consigo alcançar. Uma bateria vai sempre soar a uma bateria, mas eu gosto de tocar beats que venham de uma bateria acústica mas que não soem como tal. A música electrónica inspirou-me imenso, mas eu preciso de sentir os materiais, não de estar a mexer num controlador — uma MPC ou algo assim.
Seria demasiado fácil gravar os sons todos da bateria e tocá-los através de sinal MIDI?
Não é só isso. Eu quero mesmo tocar, sentir a bateria. É por isso que escolhi esta combinação.
No teu espectáculo que vi em Oslo, achei impressionante a forma como incorporas diferentes objectos no teu kit de bateria e os usas para alterar o seu som. Deves ter um par de boas histórias interessantes em alfândegas de aeroportos, de te mandarem abrir as malas e teres de explicar o porquê de todos aqueles objectos [risos].
[Risos] Sabes que eu guardo todos esses objectos na mala que vai no porão. Mas quando ela fica muito pesada e preciso de distribuir algumas coisas pela minha mala de cabine, aí pode tornar-se muito complicado. Às vezes tenho de lhes estar a explicar que eu uso mesmo aqueles objectos para tocar, porque se não eles não me permitiam levá-los. Mas há certas coisas que não dá para levar de todo na mala que vai na cabine.
Nas tais entrevistas tuas que estive a ler, há uma palavra que aparece muitas vezes nas tuas respostas, que é “liberdade”. Dizes querer ter liberdade para fazer escolhas musicais, para não te fechares em ideias pré-concebidas, etc.. Mas é engraçado como a liberdade desempenha um papel tão importante na tua arte e, ao mesmo tempo, tu estás a limitar a tua liberdade quando trabalhas com locked grooves, presumo.
Sim. O que eu gosto dos locked grooves é o encontrar liberdade dentro daquele pequeno loop, que dura entre 1 e 2 segundos. Ao início sentes-te mesmo muito limitado. Depois trabalho naquilo e consigo encontrar a liberdade dentro desse pequeno frame. Eu aprofundo muito isso. E também aprendo imenso ao fazê-lo. E quando saio desse groove para fazer outra coisa, sinto-me ainda mais liberto. Eu gosto muito de desse jogo, de me restringir e procurar liberdade dentro desse contexto, através de variações de uma coisa que é muito curta. Acho que é quando como tu pegas num objecto, olhas e dizes “ok, isto é isto.” Mas se tu o estiveres a observar durante uma hora, vais notar certos pormenores, começas a reflectir e a coisa fica mesmo muito interessante. Se vires bem, também existe liberdade nisso. Também pode ser visto como um desafio que imponho a mim mesmo. Até porque, de qualquer forma, nunca somos totalmente livres quando tocamos um instrumento. Eu tenho dois braços, duas pernas e é isso. Não posso fazer crescer um terceiro braço para fazer ainda mais coisas — mas talvez no futuro isso venha a ser possível [risos].
Se fosses aquele inimigo do Spiderman, o Doctor Octopus, podias fazer mais coisas, de facto.
Mas eu vejo diversão nisso, de estar limitado e ter de aprofundar ainda mais as coisas. Gosto de me sentir privado de algumas coisas e procurar soluções.
Tu tens essa abordagem, de te privares de algo, quando tocas sozinho. Mas como é que lidas com as situações em que tens de estar a tocar com outros músicos?
Eu diria que é semelhante. Não sei. Essa pergunta é interessante. Eu acho que a minha abordagem se mantém a mesma, mas eu passo a ter de escutar outras pessoas, então isso transmite-me algo — dá-me inspiração, faz-me querer reagir a algo. Eu gosto muito de trabalhar com outras pessoas também. Gosto muito de trabalhar sozinho, mas também gosto de trabalhar com mais gente. Poder fazer ambos é uma experiência muito boa. Se eu apenas trabalhasse sozinho, eu estaria a perder algo. Ao mesmo tempo, se só trabalhasse com outras pessoas, também estaria a perder algo. Para mim, a combinação dessas duas formas de trabalhar é perfeita. A tua questão é mesmo muito interessante. Eu diria que a minha abordagem é sempre a mesma, mas não sei…
O que me podes contar sobre o que planeias para 2024? Tens novos projectos ou colaborações na calha para o próximo ano?
Sim. Eu terminei um novo disco, que sairá em Março. Não sei se sabes, mas eu tenho um álbum chamado Hidden Tracks: Basel – Genève, em que eu uso o caminhar como um instrumento e tenho comigo apenas uma baqueta e um gravador. Percorri mais de 200 quilómetros e gravei padrões, sons e outras coisas com o que encontrei enquanto caminhava. Então, quando escutas esse álbum, consegues escutar o meu caminho de Basel até Genebra, enquanto vou tocando em objectos. Eu não alterei o som, mas adicionei diferentes camadas. Cada paisagem soa diferente. Agora vou fazer uma nova entrada nessa série. O próximo Hidden Tracks sai em Março e nesse álbum fui de Domodossola, uma cidade italiana, a cerca de 200 metros de altitude — muito baixa, portanto — e subi até aos 4000 metros, para perceber como os sons e os materiais se alteram com a altitude. Fui com as minhas baquetas e o meu gravador. Em Domodossola gravei plástico, metal — tudo o que consegui encontrar nas ruas. Depois, ao entrar pela floresta, já encontro muita madeira, ervas, pedras… Até que no pico é só gelo e pedras. Portanto, os sons mudam muito. Esse é o disco que lanço em Março. Estou muito contente com o resultado e esse vai ser o meu foco para 2024.
E vais editá-lo sozinho?
Sim, com um carimbo da Everestrecords.
Quero terminar por te perguntar: vais trazer material teu para ter à venda após os concertos em Portugal?
Vou, sim. Mas talvez não leve muita coisa, porque também estou um pouco limitado ao nível do espaço. Tenho muita percussão para levar.