Uma produção de JPEGMAFIA pode conter múltiplas possibilidades: trap processado, espectros de vozes soul, batidas gangrenosas, versos corrosivos, humor cáustico. I LAY DOWN MY LIFE FOR YOU, o mais recente álbum do rapper e produtor de Baltimore, alarga este arsenal de vozes e ritmos processados até à medula e acrescenta-lhe mais uma dimensão: o som pesado das guitarras heavy metal. É com elas que nos deparamos desde logo em “I scream this in the mirror before I interact with anyone”, tema que inaugura o novo disco do autor de Veteran, lançado de surpresa no passado mês de julho.
Como em muitos dos seus trabalhos, o risco continua a servir a bússola principal de Barrington DeVaughn Hendricks, homem de muitos nomes (Devon Hendryx, DJ Snitch Bitch, Peanut Butta Thug) e que o mundo preferiu tratar por Peggy. As coordenadas não se alteram, mas há muito por desvendar em I LAY DOWN MY LIFE FOR YOU. O sucessor de LP!, álbum editado em 2021, é muito mais do que um espelho dos seus antecessores, quebrando com o laboratório de ensaios de outrora sem afetar a natureza errática de uma música completamente desalinhada.
Com uma ponta de veneno e outra de humor, I LAY DOWN MY LIFE FOR YOU é mais uma declaração de independência de um artista singular que nem sempre fez as decisões mais acertadas: os créditos de produção em quatro dos temas que compõem VULTURES 1, o primeiro de três volumes assinados por Kanye West e Ty Dolla $ign, são manchas que não se esquecem tão facilmente. O álbum, que inclui alguns dos versos mais virulentos de um repertório já por si contundente, tem sido apontado como o seu trabalho mais pessoal, colocando o verbo no centro e a alma no topo de uma produção em contra-corrente com o padrão instituído. A coisa não é para menos: SCARING THE HOES, o esforço conjunto com Danny Brown editado em 2023, foi um sismo de magnitude rítmica alucinante, juntando num mesmo disco (mais uma coleção de outtakes) duas das mais idiossincráticas figuras do hip hop deste século. A aproximação a figuras transformadoras como Denzel Curry (que contribui com poderosas barras no tema “JPEGULTRA!”) e BROCKHAMPTON ajudaram a cimentar a posição de JPEGMAFIA na dianteira do hip hop underground.
A vontade de romper com o cânone e o despeito pela ortodoxia maioritária fizeram dele um agnóstico do género, abjeto a rótulos de categorização fácil. Em I LAY DOWN MY LIFE FOR YOU, Peggy é um artista confortável na zona de desconforto, imune a leituras simplistas e atento às convulsões políticas e sociais do exterior. Essa urgência manifesta-se em temas como “Exilitary” (“Blowing up like I’m IDF, Netty warrants ain’t stoppin’ shit” escuta-se num dos seus versos mais provocadores). “SIN MIEDO”, um dos singles de apresentação, incorpora a gramática do rock, com um solo infinito de guitarra e um sample galvanizador a ditar o choque surrealista da justaposição. “it’s dark and hell is hot” é uma visita ao livro de estilo de São Paulo, com o funk viperino de DJ RaMemes a dominar um fundo rítmico exíguo. “JPEGULTRA!” reacende a batalha pública com Freddie Gibbs e em “New Black History”, uma colaboração com Vince Staples, Peggy entra no jogo e deixa recados a Drake.
São todos versos de uma mesma moeda. Peggy pode não ser um astro ou uma figura mobilizadora como Travis Scott ou Ye, mas é igualmente confrangedor e não tem medo de colocar o dedo na ferida quando necessário. I LAY DOWN MY LIFE FOR YOU é um caso ímpar de inventividade e ambiguidade, perdendo na lubricidade de All My Heroes Are Cornballs o que ganha em espessura e força galvanizadora. Um caminho feito por linhas tortas, desenhado por um arquiteto perito na arte de nunca se repetir.