Com três Grammys Latinos acabados de conquistar, o brasileiro Jota.pê veio a Portugal gravar um fado com Teresinha Landeiro. Pelo meio, ainda arranjou tempo para participar numa sessão de composição na casa de Dino D’Santiago, na qual escreveu canções e colaborou com Soluna. Por fim, conversou com o Rimas e Batidas sobre o seu trajecto artístico e o álbum que lhe valeu os importantes galardões, Se O Meu Peito Fosse O Mundo.
Aos 31 anos, Jota.pê é um herdeiro directo dos grandes mestres da MPB (música popular brasileira), citando referências incontornáveis como Gilberto Gil e Djavan. Mas o músico tem horizontes alargados, explicando nesta entrevista como Mayra Andrade, Emicida e Tom Misch foram essenciais para inspirar o seu segundo disco; e como tem interesse em explorar sonoridades mais electrónicas na sua jornada musical.
Parabéns pela conquista dos Grammys latinos. São prémios que ainda são muito importantes? Obviamente também são o reflexo do reconhecimento que qualquer artista pretende alcançar.
O Grammy é a maior premiação que a música tem, foi muito especial ter ganho este prémio. Ainda por cima três… Quando aconteceu, acho que nem entendi muito bem o tamanho daquilo. Um Grammy já é incrível, mas ganhar três é realmente especial. Se não me engano, já há 20 anos que um artista brasileiro não ganhava três Grammys na mesma noite. É realmente bem raro. E fiquei muito feliz e agora estou a entender a diferença que isto faz, já senti diferenças na minha carreira, de ver possibilidades e portas a abrirem-se por causa do que aconteceu.
Há mesmo consequências positivas quando se ganham prémios desta dimensão, é isso?
Exacto, festivais no Brasil… Há festivais marcados para Setembro do ano que vem e já estou fechado no cartaz. Mais convites de artistas… Muita coisa boa a acontecer.
E tem tudo a ver com o álbum que lançaste, porque, no fundo, os prémios distinguem este projecto, mesmo que de várias formas. Obviamente, passaram vários anos desde o teu primeiro disco em 2015 [Crônicas de um Sonhador], apesar de teres feito muitas coisas pelo meio e outros projectos. Para ti, era importante que este segundo álbum fosse marcante? Às vezes também há muito a questão de o segundo álbum ser desafiante porque as pessoas já têm uma ideia em relação ao artista… Como é que abordaste este segundo álbum?
Sinto que no meu caso foi um bocado ao contrário… Porque fiz o meu primeiro disco sem entender o que estava a fazer. Ainda estava na dúvida se iria trabalhar só na música ou não, então gravei um disco que eu queria gravar sem entender como é que funcionava, como é que era o processo de gravação, quanto tempo iria demorar… Estava muito no começo ainda. Tanto que considero o meu início de carreira como o dia em que lancei o disco. Foi quando desisti de todas as outras profissões e disse que me ia focar na música. Com o tempo, ouvia o meu disco e pensava: é um disco que, na época, eu gostava, mas sabia que não era o que eu queria representar artisticamente. Mas também não sabia o que é que queria fazer. Passei estes anos todos entre o primeiro disco e o Se O Meu Peito Fosse O Mundo tentando descobrir que tipo de artista é que eu queria ser, como é que eu queria que a minha música soasse… O mais próximo que estive de definir isso foi no EP Garoa, de 2021. E mesmo sendo o segundo disco, considero o Se O Meu Peito Fosse O Mundo como o primeiro, porque é o primeiro em que tenho consciência do que estou a fazer, que escolhi a equipa a dedo, que entendi o tempo que ia demorar, que sabia todos os processos que envolviam gravar um disco…
E quanto tempo antes do lançamento começaste a trabalhar no disco?
Três anos. Foi quando comecei a montar a playlist de referência, a encontrar os músicos…
Havia coisas que já sabias, à partida, mesmo antes de teres iniciado o processo, que querias ter? Certos músicos, certas estéticas ou temáticas?
É, há uma artista que mora aqui em Lisboa que mudou completamente a minha vida: a Mayra Andrade. Quando conheci o trabalho dela e descobri o que ela fazia, fiquei com mais vontade de pesquisar sobre o que ela tinha como referência… Através dela descobri a Cesária Évora, a Sara Tavares, até o próprio Dino D’Santiago. E fui pesquisando outras coisas, de música africana também. Mas o jeito que ela especificamente faz música mexeu muito com o jeito com que eu queria compor. Há pelo menos umas quatro músicas no disco que, se a Mayra não existisse, eu não teria feito.
Mas é algo específico nas canções dela?
Sim, o jeito que ela monta o ritmo da parte vocal, os ritmos que ela escolhe que têm muito a ver com os ritmos de Cabo Verde… Lembro-me de assistir pela primeira vez a ela ao vivo no Rock in Rio, no Brasil, participando do show do Crioulo, e o ritmo que ela fazia, que a música tinha como batida, comecei a anotar na cabeça e gravei um áudio para depois tentar pegar naquele ritmo e tentar tocar violão com aquele mesmo ritmo… Isso aconteceu com algumas músicas dela. Então há muita coisa do jeito que ela balança nas músicas que quis levar para o meu som. Percebi que queria uma guitarra que tem a ver com o jeito cabo-verdiano de se tocar guitarra, e aí encontrei o Chibatinha, um guitarrista baiano, que tinha essa onda. Então tinha de ser esse cara a tocar guitarra no meu disco. Há muita coisa da obra da Mayra que, por causa dela, comecei a querer ter no meu álbum. Claro que, além dela, tinha mais dois artistas que foram essenciais para este disco, que são o Emicida — o álbum dele AmarElo, que inclusive também ganhou um Grammy, foi muito importante para a construção do meu álbum; e há o Tom Misch, que tem um disco chamado Geography, que também mexeu muito com o meu som. Estes três discos — da Mayra refiro-me ao Manga — foram essenciais para eu construir o Se O Meu Peito Fosse O Mundo.
Interessante, porque também são três referências diferentes entre si.
Exactamente.
E também sentes que, ao longo do tempo, e também evocando aquilo que dizias sobre a Mayra Andrade ter sido tão inspiradora para ti, também te foste aproximando das tuas raízes africanas na música?
Concerteza. Porque, obviamente, no Brasil temos muitas referências. Gilberto Gil, Djavan, essa galera toda já traz isso em si e a própria música nativa do Brasil como um todo… Mas o que me encantou muito em Cabo Verde e no trabalho da Mayra é que tem muitos ritmos que lembram os ritmos brasileiros, mas não são os mesmos. É uma referência que, por motivos históricos, não chegou exactamente como é ao Brasil. E foi o que me deu mais curiosidade ainda, de ir pesquisar, e através disso descobri muitas outras coisas, ritmos e possibilidades de se fazer música, de África como um todo, que não chegaram dessa maneira ao Brasil. Então, realmente, foi uma novidade para mim.
E também é interessante porque as três referências que enumeraste acabam por ter uma música mais electrónica do que a tua, que é mais acústica e vem mais desse legado grande da MPB.
É, e a minha ideia era juntar isso… Por exemplo, especificamente o Emicida, que é um rapper que tem beats, quis muito juntar esses universos. Como é que faço para trazer um pouco dessa ideia do beat para dentro do meu trabalho? A Mayra também o tem bastante. Então gravámos muitas coisas de bateria, mas depois somámos sons electrónicos para ficar junto, para dar um pouco mais de peso. Tenho faixas como a “Quem é Juão” ou como a “Um, Dois, Três” que tem isso bem nítido. Nos shows também mesclamos bastantes coisas de electrónica a rolar junto com a banda e gosto muito dessa mescla. Foi esse lugar que trouxe dos discos deles para o meu.
E acredito que te sintas um herdeiro dos grandes nomes brasileiros que muitos de nós crescemos a ouvir. Sentes que é, desta forma — no teu caso, mesclando um pouco com outras coisas, mas também criando novas canções, que se perpetua e se mantém o legado da música popular brasileira? Mantendo a cultura viva com novas abordagens e ideias, contribuindo para um cancioneiro colectivo?
Os artistas que mais admiro, quando paro para analisar o que eles têm de especial e que os tornaram tão grandes… Às vezes nem conseguimos explicar, mas um exemplo que eu uso muito é: ninguém escuta o Djavan porque acha o Djavan melhor do que o Gilberto Gil; a gente escuta Djavan porque há alguma coisa que só tem ali, que às vezes nem sabemos o que é mas que é especial naquele artista. O Gil e a Mayra a mesma coisa. Então, desde o começo que sempre tentei fazer, dentro das minhas possibilidades e do artista que eu consigo ser, o que é que consigo ter de especial e único no meu trabalho? Não é sobre ser melhor ou pior, é sobre achar um jeito meu de fazer as coisas. Então, sempre tentei achar o meu jeito de tocar violão, de compor, e como é que as obras desses artistas se misturam com a minha, e interpreto isso de um jeito novo a partir do que imagino. O que sempre tentei fazer com as minhas composições, com o jeito como monto os arranjos, foi isso. E acho que isso perpetua, como você disse, a música brasileira, que é sempre tão inventiva e cheia de possibilidades.
Tão rica, não é? Sei que pode ser desafiante, mas como é que descreverias o teu jeito único, que tentaste ir buscar e aperfeiçoar com os anos, à medida que ias fortalecendo uma identidade e alcançando uma maior maturidade artística?
É difícil… Quando me perguntam no Brasil o género que toco, eu digo que toco MPB. Não é que eu de facto acredite nisso. Mas quando vejo o Gilberto Gil, por exemplo, percebo que na obra dele há reggae, samba, rock… Ele pode fazer tudo, diz que é MPB e ninguém contesta.
A MPB é um chapéu grande…
É, cabe muita coisa. Mas, no fim, ele só faz música — e eu acho que é isso. Eu gosto de música, não acho que música boa tenha género. Acho que funk é bom, rap é bom, samba é bom… E são muitas possibilidades.
Que cada vez se misturam mais.
Exactamente, e gosto disso, de poder brincar com as possibilidades que a música tem, de fazer a música que me dá vontade na hora. Acho que definiria desse jeito, mas na verdade não defini [risos].
Claro, no fundo não te queres prender a géneros nem categorias.
Exacto, quero brincar com as possibilidades.
Só o próprio Brasil já é um país continental, no sentido em que é gigante e tem um mercado enorme, e toda a influência da música brasileira no mundo é notória. Não só nos países que falam português, mas em muitos outros, sei lá, até na forma como o hip hop norte-americano foi samplar a música brasileira ao longo de décadas… Sentes, também enquanto representante de uma nova vaga dessa música, que falta algum tipo de reconhecimento ao Brasil nesse sentido? Ou já está tudo um bocado conquistado e o que falta são novas pessoas aparecerem e fazerem os seus caminhos distintos?
Acho que é isso, nos Grammys confirmei que de facto a música brasileira se tem renovado muito. Há muitas coisas novas que têm surgido e ganhado destaque. Ao meu lado, a concorrer comigo numa das categorias estava o Yago Oproprio, um rapper; a Melly; Os Garotin que também ganharam… Há a Liniker que de certeza que, para o ano que vem, vai estar a concorrer e a ganhar muitos prémios; a Luedji Luna… Há muita coisa nova e muito boa a surgir no Brasil. E estar nos Grammys mostrou-me que na América Latina como um todo, em vários outros países, há muita coisa nova a acontecer. Enfim, a música tem-se renovado muito e estou muito feliz com esse movimento. É especial saber que, de certa forma, faço parte dele.
Sei que não é bem o teu campo, mas uma das grandes forças musicais que têm surgido internacionalmente vindas do Brasil é o funk.
Concerteza, e o trap brasileiro.
Exacto. E são músicas com raízes exteriores, apesar de o funk ter obviamente uma natureza muito brasileira, mas que também têm tido uma forte influência internacional. É outra maneira da cultura brasileira se expressar e chegar a outros sítios?
Sim, eu acredito que um compositor fala sempre sobre aquilo que vive, sobre o que experiencia como vida.
E há muitas vidas diferentes num país tão grande.
E é por isso que temos o funk mas também o forró, que vem do Nordeste. São tudo possibilidades que têm a ver com as vidas que temos, com as pessoas com quem convivemos. Então, sim, também acredito que é uma forma de colocar a cultura brasileira lá fora, porque também consigo perceber a diferença do trap feito no Brasil para o trap feito nos Estados Unidos ou noutro lugar. Há sempre uma coisa rítmica, ou mesmo de texto, por a vida das pessoas ser diferente…
Há algum género, alguma estética que ainda não tenhas explorado muito mas que sintas vontade?
Tenho vontade de brincar um pouco mais com as possibilidades que o pop tem de se misturar com ritmos electrónicos. Porque experimentei algumas coisas, mas foi bem de leve, estava bem raso. Tenho vontade de experimentar um pouco mais com isso. Vou fazer alguns lançamentos nessa onda. E foi muito bacano vir a Portugal para gravar um fado, algo que nunca pensei fazer.
Com a Teresinha Landeiro.
Exactamente, foi muito especial e bonito. É uma música que sempre amei muito, mas não me achava capaz de cantar, porque é muito difícil cantar fado.
Mas cantaste à tua maneira, suponho.
Sim, à minha maneira, mas foi muito bonito gravar um fado. Lá está, as possibilidades estão sempre aí e estou bem animado para todas elas.
E como surgiu esta colaboração?
Temos a sorte de termos a mesma editora. O convite veio através da editora e dela, que ouviram o meu trabalho e convidaram-me para fazer esta parceria. Eu aceitei na hora, porque vi a artista incrível que ela é, com uma das vozes mais lindas que já ouvi na minha vida. Canta mesmo muito bonito. E é uma pessoa maravilhosa também. Foi realmente muito especial fazer essa gravação.
E há alguns pontos de ligação entre o fado…
Sim, com o samba, o chorinho, as guitarras…
O estado de espírito do fado é que, habitualmente, é mais triste.
Verdade [risos], mas há algumas semelhanças com alguns lugares da música brasileira. Mas nunca pensei ser convidado nem que eu fosse gravar um fado. E foi muito bom, ainda bem que aconteceu.
E também estiveste em estúdio com o Dino D’Santiago, com a Soluna, o Sir Scratch e uma data de outros artistas… Isso foi para outra música ou, na verdade, ainda não está nada definido?
Na verdade, fiquei de encontrar o Dino aqui em Portugal quando eu viesse, e calhou ir para casa dele. Ele está a fazer um camp de composição e acabei por ajudar. Fizemos uma música lá. Ajudei a fazer algumas outras, mas fizemos o princípio, meio e fim de uma, que está pronta, e achei muito bonita, inclusive, modéstia à parte… Mas não sei do que vai ser dessa música, só a fiz e vou descobrir depois. Diria que é uma mistura de MPB com pop, uma composição que fiz com a Soluna, meio que escrevemos a letra juntos, com a ajuda de todos, mas fomos mais nós dois. A letra ficou em espanhol e em português e foi muito legal. Foi a primeira vez que compus com alguém fora do Brasil.
Falamos todos a mesma língua, mas muitas vezes não existem assim tantas pontes ou oportunidade para existirem colaborações… Obviamente, os artistas brasileiros vêm cá tocar muito, o contrário é muito mais difícil.
É, mas sinto que falta um pouco a interacção. Mesmo havendo muitos brasileiros a tocar cá, sinto que não há muita colaboração. Não vejo muitos artistas portugueses a participar dos shows de artistas brasileiros aqui. Por isso, sim, sinto essa distância. Já vi alguns artistas portugueses no Brasil: a MARO, o Zambujo, o Salvador Sobral… Mas são casos isolados. E ainda menos existe a interacção de compormos juntos, de cantarmos juntos… Espero que isso realmente aconteça mais, porque tenho conhecido cada vez mais a música portuguesa e tenho descoberto artistas incríveis. Acho que seria enriquecedor para todos se nos juntássemos um pouco mais.
E tendo tu a Mayra Andrade como uma inspiração directa, ela também representa um filão de artistas dos PALOP que estão muito ligados a Lisboa e a Portugal mas que também têm algum distanciamento em relação ao Brasil. Há todo esse mundo para explorar.
Exactamente. Com a Mayra cantei no Brasil, foi lindo, e acho que esta união de artistas de países diferentes, especialmente nestas relações Portugal-Brasil, Cabo Verde-Brasil, é algo que precisa de acontecer mais.
Quais são os próximos passos para ti?
Vai acontecer uma gravação ao vivo, o repertório do disco em modo show e, provavelmente, mais algumas coisas inéditas. E no ano que vem quero fazer muitas parcerias. Estou muito empolgado para me misturar com outros artistas justamente para testar coisas antes de escrever um próximo disco. Quero expandir um pouco a cabeça e descobrir novas possibilidades antes de começar a preparar um disco novo.
E esses inéditos que mencionaste vêm na linha deste álbum ou já são coisas de outros caminhos sonoros?
A primeira música que temos pronta, que não sei quando vai sair, é uma música que foi toda feita com beat, electrónica e tal, fiz uma parceria com um duo do Rio de Janeiro. Essa já está pronta. Há algumas coisas que vou querer mesclar, a linguagem que já tenho no disco com outras coisas, mas é isso, estou aberto e disposto a testar coisas e ver o que acontece.
Só mesmo para terminar: em relação às letras e aos assuntos que abordas nas músicas, obviamente cada álbum representa uma fase na vida de um artista, as suas experiências reflectem-se na sua arte. Já estás a escrever coisas diferentes, tendo em conta as coisas que aconteceram nos últimos anos?
Este disco acaba a falar muito sobre mim. É muito sobre eu a olhar para coisas diferentes, mas é uma visão muito directa e pessoal. Estou a olhar mais para fora, a querer explorar outras coisas além de mim nos próximos trabalhos. Vou tentar. Ainda não tenho uma conclusão exacta sobre o que é que quero dizer num próximo disco, mas estou a querer tirar um pouco o foco de mim nos próximos trabalhos.