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Fotografia: Carlos Azevedo
Publicado a: 30/05/2022

A prosperar em tempos de crise.

João Mortágua: “Estou a tentar focar-me só no meu universo”

Fotografia: Carlos Azevedo
Publicado a: 30/05/2022

O nome pode ter chegado ao circuito mais mainstream em território português através da vitória na segunda edição dos PLAY – Prémios da Música Portuguesa (Dentro da Janela foi considerado o Melhor Álbum Jazz), mas João Mortágua já andava a criar ondas na cena que se alimenta de notas azuis há algum tempo.

Natural de Estarreja e residente em Coimbra, o saxofonista tem, mais recentemente, liderado (de uma forma cada vez mais democrática) o grupo MAZAM, que também conta com os préstimos do pianista Carlos Azevedo, do contrabaixista Miguel Ângelo e do baterista Mário Costa. Pilgrimage (revisto por aqui no início deste mês) é a ponta do fio que puxamos e que nos leva a outros sítios (a escolha do instrumento, a viabilidade de se ser músico de jazz em Portugal em 2022 ou o actual estilo de composição) numa conversa com quem se tem feito ouvir em alto e bom som por cá (e, ultimamente, com atenção a dobrar no Bandcamp Daily).



Vi que vocês têm sido alvo de destaques no Bandcamp Daily. Boa cena, essa.

Muito fixe. Já em Março, quando o disco saiu, tínhamos ficado todos contentes. Depois, em Abril, mais uma menção. Sempre bom.

Vamos começar esta entrevista exactamente por aí. Como é que estas atenções internacionais se estão a traduzir em termos de carreira ou notoriedade? Há gigs de MAZAM a aparecer lá fora?

Nós estamos na luta, a mandar vários e-mails, sobretudo eu e o Miguel Ângelo, uma vez que, por enquanto, somos nós a agenciar.

Não há nenhuma estrutura formal à vossa volta, neste momento?

Não há. A Clean Feed desbloqueia uma série de contactos. São mais de 500. Eles enviam as coisas para montes de malta, jornalistas… Mas estão a acontecer algumas coisas que nos estão a dar ainda mais urgência para criar coisas lá fora. Posso contar-te a mais fixe de todas, que foi com um jornalista de Nova Iorque e que nos deixou cheios de pica. Ele quis saber se tínhamos alguma coisa a acontecer lá nos States. Para nós, isso é muito mais inacessível do que os gigs na Europa. Mas, ainda assim, ficámos todos contentes, porque ele adorou o disco e está disposto a fazer a cobertura de um concerto nosso lá pela zona ou, quanto muito, em livestream. É um bocado inacessível, por enquanto, mas quem sabe… É uma porta que se abre, não por um promotor, mas por um jornalista creditado lá no meio.

Na perspectiva do jornalismo que vem do rock, uma banda é uma banda. É um conjunto de pessoas que trabalham em conjunto durante um longo período de tempo. No jazz, a ideia de banda é completamente diferente e um músico pode ter três, quatro ou cinco bandas paralelas. Tendo isto em conta, o que é que representa MAZAM no teu universo, neste momento?

MAZAM evoluiu exactamente para isso que tu falas e o exemplo do rock é pertinente. À semelhança do que aconteceu com outros projectos, cada vez ando mais interessado nesta ideia de banda. Já com os AXES isso surgiu, um bocado. Apesar de ser eu a assinar as composições, as coisas evoluíram para uma sonoridade de grupo desde cedo. Tanto que nem tenho o meu nome envolvido no grupo. O grupo chamas-se AXES.

MAZAM é uma outra coisa desde que editámos o segundo disco. No primeiro ainda era aquela coisa convencional de eu ter escrito música para ali e parte dos temas serem composições minhas. A outra parte já tinha um pezinho naquilo que estamos a fazer agora, que são as improvisações espontâneas feitas em estúdio. São várias. Nós vamos rebuscar as melhores e editamos takes inteiros. Isso deu origem ao novo conceito do segundo disco. Nós gravámos cerca de oito horas de música. Isso dá muita pica à malta, o gravar uma porrada de horas para depois ir ver que sumo é que há ali. É espremer o melhor e tentar criar uma narrativa a partir daquela música improvisada que está gravada. Sempre com algumas premissas: fizemos um X de improvisações longas e um X de curtas, para termos essas diferentes amostras; em algumas, partimos de ideias em torno de notas longas, outras temos imagens como referências — coisas extra-musicais, obviamente, como gigantes a caminhar, neblina… Tudo isso vai para o pote das gravações e toda a gente propõe ideias. Não foi uma coisa muito premeditada mas, por outro lado, já estava implícito, porque fomos para estúdio sem nada escrito, só para improvisar. De repente, percebemos que isto já não é a banda do Mortágua mas sim a banda da malta. É uma banda. O meu nome deixa de estar associado e a banda é dos quatro, em todos os sentidos, até na questão do agenciamento, como eu te falava há bocado. Estamos todos empenhados. Posso dizer-te que o Azevedo, por exemplo, fez mais a parte das edições. Ele propunha-nos uma selecção que tinha feito dessas oito horas. Poupou-nos o trabalho de estarmos todos a ouvir aquelas oito horas de música, que é algo cansativo e nos deixa cheio de dúvidas, porque não sabemos o que vamos escolher. O Azevedo poupou-nos esse trabalho. Se há ali alguém que tenha sido mais produtor do que os outros, foi o Azevedo. Encurtou-nos caminho. Também foi ele quem fez os cortes. Às vezes tens uma faixa de 12 minutos dos quais só queres aproveitar quatro ou cinco. Era ele quem fazia isso.

Há uma coisa que me intriga e me interessa bastante: quando tu chegas a uma sessão de MAZAM com composições tuas, como é que essas ideias são passadas ao resto do colectivo? Usas pautas? Mostras uma gravação no telemóvel daquilo que escreveste no dia anterior?

Essa é uma excelente pergunta, até porque nós começámos a ter esse dilema: o que é que é composto por cada um e onde é que termina isso e começa a liberdade para a malta seguir por onde quiser? Debatemo-nos de frente com isso. O que eu te posso dizer é que se a ideia for simples o suficiente para a transmitires com uma gravação de telemóvel — “olha aqui esta ideia”; mais tipo banda de garagem —, bora aí. Porque isso é cortar amarras com aquele processo do costume, de levar a partiturazinha com a melodia, a sequência de acordes…

Mas já fizeste esse trabalho, não já?

Já. Metade do primeiro disco eram temas que eu levava neste moldes, clássicos, do jazz.

Em papel?

Em papel. Melodia, grelha de solos… Não tem de ser apenas isto. Há músicas que podem ter mais partes. Mas, acima de tudo, levava a informação melódica e harmónica.

Se tu já determinavas esses parâmetros, não havia tanta liberdade.

Isto é um bocado transversal ao jazz mais “mainstream”, se lhe quiseres chamar assim. Existe uma progressão de acordes, mas tanto o pianista como o baixista têm liberdade para deturpar aquela progressão que ali está. O que há ali de mais definido, no fundo, é o número de compassos. A tela é aquela. Mas a partir da tela…

Pintas as coisas que tu queres?

É um bocado por aí. O que há de mais fixo é a duração. É a forma. Quando fizemos o segundo disco, todos propunham ideias. De repente, a forma esbate-se. Não sabemos para onde é que vai, não sabemos a duração que vai ter cada parte. Podemos definir um roteiro e apresentar uma ideia até dar uma coisa muito concreta.

O que eu sinto nesta música moderna é que já não é uma cena ultra-composta nem é uma cena ultra-livre. É um híbrido entre as duas coisas.

É um híbrido, sim. Quando a coisa corre bem e sacas um bom take, acontece quase por magia. Quando isso acontece, é uma sorte dos diabos. Mas é preciso insistir. Claro que, quanto melhor a malta se conhece, mais facilmente a coisa flui. Matreiramente, eu juntei-me a um trio que já estava bastante oleado. No fundo, eu sou o elemento que menos tinha tocado com os outros três.



Fala-me de cada um deles.

O projecto no qual eles se juntaram e que, se calhar, foi o que teve mais impacto foi o do Ensemble Super Moderne. Eles formavam a secção rítmica desse projecto, juntamente com o Eurico Costa. Há um mês estiveram no disco do Azevedo, em quarteto, mais o Miguel Moreira. Pelo meio, foram fazendo coisas juntos. Mas diria que estes dois projectos são os maiores marcos. Individualmente, o Costa tem tocado muito com franceses e teve a alegria de ser chamado para a banda do Émile Parisien, um saxofonista soprano, que lhe valeu um gig em que participou o Wynton Marsalis, outro em que participou o Michel Portal. Foi um pico na carreira dele e valeu-lhe alguns contactos para a Europa via França. Ele cresceu imenso como músico e está um gajo cada vez mais completo. É um baterista muito interessante. O Azevedo tem montes de trabalhos em orquestra e é o mais velho da banda. Tem trabalho como arranjador com fartura e sente-se cada vez mais — palavras dele — com vontade de tocar piano. Ele quis regressar às lides de pianista e voltar a fazer coisas. Daí ter lançado recentemente o CD dele em quarteto e tudo mais. Ele é uma referência.

Não é fácil ser pianista em Portugal, neste momento. Não há salas com pianos, não é?

É. E isso é uma grande limitação.

Há uns tempos fui fazer uma reportagem para o Expresso em Madrid, no Teatro Real. Isso permitiu-me andar lá pelos bastidores do teatro. Cada camarim do Teatro Real tem um piano vertical, não vá o pianista necessitar de exercitar os dedos ou coisa assim. Pensei, “há mais pianos verticais neste teatro em Madrid do que em locais onde se toca jazz em Portugal inteiro”. Eram, para aí, uns oito pianos. O facto de MAZAM ter pianista, é logo uma aventura, imagino.

É logo. E a versão eléctrica não nos preenche por completo. O Carlos gosta de ter o teclado ao pé dele, mas é um instrumento de recurso. A maioria dos temas que tocamos nos concertos são com piano acústico. É uma limitação. Nos concertos que demos, um foi num teatro, em Barcelos, que tinha piano. Na verdade, acho que foi alugado. O Hot Clube tem piano, felizmente. O Salão Brazil também tem um piano, embora um bocadinho escafiado [risos]. Eles estão a ver o que é que fazem com aquilo, porque aquele piano já foi muito caro.

Já me falaste no Costa e no Azevedo. Falta o Miguel Ângelo.

O Miguel Ângelo é do Norte, de Fiães. Foi lá que gravámos o primeiro disco. Se houver uma “casa” do grupo, é a casa dele. Ele tem um pequeno estúdio e é uma maravilha. Fica num sítio calmíssimo e suficientemente perto do Porto. Para além de músico, o Miguel dá aulas de informática. É muito orgulhoso dos seus alunos. Tem estado mais activo na música nos últimos 10 anos. Fez o seu disco a solo, o quarteto dele já gravou dois ou três álbuns. Ele tem essa experiência de estar num quarteto que já existe há algum tempo.

É viável ser-se músico de jazz em Portugal em 2022?

Não é o suficiente para teres uma vida folgada ainda.

Mas estavas a falar-me do Miguel ser professor de informática.

Ah, sem dúvida. Da mesma forma que eu sou professor e adoro sê-lo. Neste momento até tenho menos alunos, mas obviamente que é útil financeiramente. O Mário, por exemplo, decidiu não dar mais aulas e estava a contar ir para Berlim, há 10. Entretanto, a Ana Moura liga-lhe, o Miguel Araújo liga-lhe… E foi esse o trabalho dele nos últimos 10 anos. Deixou de ser músico da Ana Moura porque o projecto dela agora segue um conceito diferente, mas ainda hoje toca com o Araújo. A malta é super aberta a fazer esse tipo de trabalhos.

Isso faz-me lembrar os grandes actores do Teatro Nacional D. Maria II, que para sobreviverem tinham também de ir trabalhar para a novela. É um bocado a mesma coisa, não é?

Um bocado. Uns com as aulas, outros com os grupos pop, rock ou fado. Acabamos por ter esta necessidade para podermos viver de forma mais folgada. Ainda é uma realidade. Oxalá não tivesse de o estar a dizer nos dias de hoje. Mas ainda não existe uma estrutura boa o suficientemente para… Olha, eu posso dizer-te que os dois últimos anos me deram muito esperança. Deve ser estranhíssimo eu estar a dizer isto [risos].

Então? Conta lá! Como é que estes anos terríveis te deram esperança? [risos]

A malta acha que eu estou a gozar, mas não. Foram os meus melhores anos a nível de concertos. Tive mais concertos e melhor pagos. Acho que isso tem a ver com o facto de ter estado tudo parado e os promotores não quiseram arriscar em trazer bandas estrangeiras — tens dois ou três festivais que são um exemplo disso. Então, recorreram a bandas tugas. Coisa que, se calhar, não tinham feito muito antes. Isso deixou uma boa marca e parece-me que a tendência pode ser mais essa, a de haver mais representação portuguesa em determinados festivais de jazz.

O Jazz em Agosto afirma-se, este ano, como tendo três eixos de programação — Chicago, Nova Iorque e Lisboa. Ou seja, começamos a entender a nossa produção local como válida.

Válida e à altura do que vem de fora. Isso pode ser um passo em frente, sem dúvida. Foi nestes dois anos que eu comecei a pensar que, se calhar, já não ia precisar de dar mais aulas. O problema é que isto é tudo muito instável e, se calhar, este ano já vai ser pior. São escolhas. Também estou a trabalhar em muitas mais coisas minhas e a aceitar menos trabalhos de sideman. Estou a tentar focar-me só no meu universo. O que me dava jeito agora era um agente [risos]. De repente estou a fazer montes de coisas minhas. Mais do que nunca. Ou porque recuso convites ou porque começo a ser menos chamado, até porque há malta nova a aparecer e que toca bem.

Falemos sobre o teu próprio percurso. Ser saxofonista em Portugal em 2022 é uma profissão de risco?

É uma profissão de risco e que envolve coragem. Envolve, também, aceitar mais ou menos trabalhos. Por exemplo, há 10 anos era comum tocar em eventos privados.



Do género, uma empresa farmacêutica vai apresentar os relatórios de contas aos seus sócios e quer ter um saxofonista a tocar durante o jantar?

Por exemplo. Embora eu sempre tenha repudiado aquela coisa de usar o play along, que acho horrível.

O teres uma base sonora gravada e tu estás a tocar por cima, é isso?

Isso. Uma backing track. Sempre repudiei isso. No fundo, parece que estás a tentar mandar areia para os olhos de quem ali está. É do tipo, não há dinheiro para contratar uma banda, metes o CD a rodar e tocas por cima. Noutros contextos, isso não me incomoda nada — música electrónica, por exemplo. Aquilo é uma cena acessória que nós usamos para estudar ou dar aulas. Tem aquelas baterias desinspiradoras. De repente, faz-se do jazz uma música monótona e sem sumo nenhum. O que me faz estar no jazz mais livre mas continuar a curtir de tocar os standards perde-se quando usas uma máquina para te acompanhar. Pode ser desinspirador. Farto-me de dizer aos meus alunos: “usa esta ferramenta mas não abuses dela, porque tu tens é que tocar com gente”. Mas esses eventos privados foram uma solução financeira durante algum tempo. Muitos casamentos… Lembro-me que nós tocávamos só durante os aperitivos e depois íamos embora.

Eu já fiz DJ sets em casamentos e tenho zero problemas com isso.

Sem dúvida. Há músicos nova-iorquinos que nós idolatramos e que ainda hoje o fazem.

Qual é a tua visão sobre o que se passa actualmente na formação musical. Há mulheres a querer aprender a tocar saxofone? Chelsea Carmichael, Nubya Garcia… Há uma série de nomes a aparecer em Inglaterra — e também nos Estados Unidos — de mulheres a tocar saxofone. Em Portugal, o saxofone ainda é um instrumento muito masculino?

Diria que ainda é muito masculino, mas que, devagarinho, começa a mudar. Imagina, de seis alunos que terminaram o curso em Coimbra, uma é a Diana Sampaio, que está agora na Suíça.

Ela é de Coimbra?

De Nelas.

Isso é incrível.

Ela está na Suíça a trabalhar noutra área. Espero que ela não esmoreça, porque é uma saxofonista muito interessante. Acabou a ESMAE e fez-se à vida…

Mas porque é que achas que isto acontece? Porque é que não vemos mulheres a tocar saxofone, piano ou trompete? Vês nos violinos da clássica, no canto de jazz… Não há muito mais para as mulheres, não é?

Não há. Nós entrámos… As coisas estão, francamente, a mudar. Isso anima-me. Não faltam nomes de mulheres aí a surgir. Ainda assim, assumindo a minoria, claro. Mas, devagarinho, vai mudando. Acho que isto passa por termos entrado numa redoma um pouco machista do meio. Isso, possivelmente, era até intimidatório para alguns mulheres que se queriam aventurar. As mentalidades estão, felizmente, a mudar. Espero não estar a ser esperançoso de mais, porque é muito importante para o equilíbrio da sociedade. Sou apoiante de todos os movimentos que surgem nesse sentido. A Rita Maria, ainda em Abril, fez um festival só de mulheres. Estou super de acordo. Acho que isso tem de acontecer. Vejo isto com muito bons olhos. As bandas não eram exclusivamente só de mulheres, mas eram lideradas por mulheres e 80% dos músicos eram mulheres. O festival chama-se THEIA e foi no Centro Cultural Malaposta. Venham mais festivais desses para dar visibilidade às mulheres que já estão aí a fazer coisas — que já não são assim tão poucas. Parte dos nomes que poderíamos mencionar aqui estiveram nesse festival. Não todos, obviamente. Há que integrá-las.

Implica um investimento muito maior estudar-se saxofone em vez de canto. Um instrumento de entrada, básico, custa quanto?

O saxofone está na média dos outros sopros. Por menos de 600/1000 euros dificilmente consegues um instrumento razoável. Estamos a falar do mínimo dos mínimos, para ir fazendo alguma coisa.

E nós não temos uma estrutura que permita o acesso a saxofones por parte de famílias que não disponham desse tipo de capacidade financeira? O Estado não devia ter um papel nisto?

Devia. Há uma coisa sobre a qual todos os professores deviam de estar mais conscientes. É algo que eu defendo, ao contrário de alguma malta mais antiga — já tive algumas discussões por causa disso [risos]. É o facto da escola ter saxofones e esses saxofones têm de ser usados pelos alunos. Quando eles não têm possibilidade, usam os saxofones da escola. Não têm de começar pelo saxofone alto, podem começar pelo tenor. Ou seja, há mais do que um saxofone disponível, pelo menos aqui, na minha escola, felizmente. Acho que na maioria dos conservatórios — que não são assim tantos — os instrumentos existem e passa por colocarmo-los à disposição dos alunos.

O mapa nacional das filarmónicas continua a funcionar? Em tempos, eu acredito que foram motores importantes para formar músicos. Isso continua a ser real?

Continua. Era um outro aspecto que te ia falar: a melhor porta de entrada para solucionar esse tipo de limitações, bem reais, de não ter dinheiro para comprar o instrumento, continua a ser a das filarmónicas.



Que nunca são financiadas, não é? Tanto quanto sei, as filarmónicas existem por impulso das comunidades.

Pode-se dizer que é por filantropia. E é uma cena na qual tenho pensado muito, que as filarmónicas precisam de se renovar. Isso para por dois aspectos: quem as gere, pode ter uma maior abertura estética, musical, em relação àquilo que se pode fazer naquele seio; o segundo tem a ver com malta como eu, de uma nova geração de músicos ligados aos sopros, sentirem-se motivados a escrever para ali. Não digo que tenham de ser maestros — isso é uma coisa mais específica — mas que tenham a vontade de escrever para ali, de fazer workshops de improvisação… Começar a criar aqui pontes que ainda não acontecem muito. O aspecto financeiro de que falavas, da falta de apoios? É verdade. O Estado devia ajudar mais. Mas tão importante quanto isso é renovar e rejuvenescer as filarmónicas a nível artístico.

Alto, tenor, soprano, barítono. O que é que leva uma pessoa a escolher uma destas vozes? O que te levou a ti ao teu instrumento? É o instrumento que te escolhe a ti ou és tu que escolhes o instrumento?

É um misto. Eu não comecei numa filarmónica, mas comecei numa coisa parecida, uma orquestra ligeira em Estarreja. O processo é muito idêntico.

Chegavas lá e era o instrumento que estava livre?

Estava livre e fazia falta ali entre as fileiras.

“Estamos a precisar aqui de um…”

Exacto. “Mas antes do saxofone, precisamos mesmo é de um trompete”. Puseram-me o trompete nos lábios e aquilo, claramente, não é um instrumento fácil de se iniciar. Tive muitos colegas trompetistas e a coisa leva o seu tempo. Não houve muita persistência por parte do meu professor.

Que idade tinhas na altura?

Oito anos [risos]. Não dava. “Por acaso também estamos a precisar de saxofones. Bora aí”. Depois, há o facto da empatia, claro. Eu não fui obrigado.

Não houve aquela cena do “este som apela-me mais do que aquele”?

Na altura, isso fez alguma diferença. Não pelo som que eu conseguia emitir, porque aquilo ao início-

Mas o que é que te levou ao alto e não ao soprano, por exemplo? É uma lotaria ou houve determinação e tu sentiste “esta é a minha voz”?”

Pensando na maneira como tu formulaste inicialmente a perguntar: o instrumento escolhe-te a ti, em certa medida. Mas isso tem a ver com o factor físico. Eu tinha oito anos e o tenor e o barítono seriam grandes de mais, fisicamente. O soprano, por ser demasiado pequeno, com uma embocadura muito fechada, também não era o mais fácil para iniciar. O alto acaba por ser, mais consensualmente, o melhor para iniciar no saxofone. Mas o tenor também é extremamente viável. Aqui pesou o facto de eu ser muito pequenino e ter oito anos.

Ser saxofonista é um bocadinho como ser-se vocalista, não é? É um dos instrumentos mais parecidos com a voz humana.

Ia dizer-te isso. A dada altura, apaixonei-me pelo barítono, lá para os meus 17/18 anos. Foi na transição, quando fui para o Hot e, depois, para a ESMAE. Tocava sempre barítono nas big bands das escolas e noutras paralelas. Em relação à ligação com a voz, o barítono é o que mais se assemelha à minha voz, que agora está um bocadinho mais grave das alergias. É o mais próximo da minha tessitura vocal. Já li algumas coisas sobre isso que me deixaram a pensar sobre essa questão. À partida, poderá ser aquele que me é mais natural de todos.

O que vem a seguir na tua carreira?

Tenho três discos na calha que foram fruto deste processo novo a que me submeti, idêntico ao dos MAZAM, no fundo. Um deles é o trio com o Mané Fernandes e com a Rita Maria, os Quang Ny Lys. É um trio que nos faz sair da nossa da nossa redoma estética e confluímos os três num terreno por explorar. Quando o grupo começou, era uma reinterpretação muito amalucada de alguns standards. Era o que nos unia desde os tempos do curso, na ESMAE. Fomos para o Arda Recorders gravar e, claramente, fizemos um pouco de tudo. O processo é o mesmo que te falei: temos oito horas de música, vamos seleccionar, fazer uma reunião por Zoom daqui a uma semana; depois triar, triar, até encontrar uma narrativa. Com o Diogo Alexandre, tenho o duo STAU, ao qual agora juntámos três convidados, numa sessão que fizemos em Agosto, em Leiria. São o Pedro Melo Alves, o João Carlos Pinto e o Daniel Martinho. O duo com o Diogo já não é bem um duo. É mais uma plataforma para chamar malta e o disco vai ter estes cinco intervenientes. O plano é lançar o isto até ao final do ano.

Ambos os projectos?

Sim. Quang Ny Lys e STAU até ao fim do ano. O duo com o Carlos Azevedo, ao contrário destes que te falei até agora, vai consistir numa sessão de gravação uma hora. O Fernando já o misturou e está pronto para sair. Estávamos contentes com aquilo, mas estamos só a mexer na ordem dos temas e a mudar a narrativa. Mas vai sair na íntegra a sessão que fizemos. Esse também é um projecto no qual quero investir. Poderá não ser já este ano. No máximo, 2023. Vamos beber muito à estética mais erudita, se assim lhe quiseres chamar. Tem uma abertura para esses campos, da música de câmara, saxofone e piano, tudo acústico, sem electrónicas. Embora tenhamos feito a versão eléctrica, estamos mais inclinados para a versão acústica. Por último, há um projecto que já está pendurado há algum tempo, que vai acontecer em moldes mais convencionais e para o qual estou a escrever música. É o Hexagon e será editado no início de 2023, no máximo. E espero não me estar a esquecer de nada… Estava sim: disco a solo gravado no Convento de S. Francisco. É um projecto muito fixe e estou super entusiasmado. Sou eu a solo, sem electrónica nenhuma, e fui de sala em sala, dentro do convento, com diferentes acústicas. O conceito é juntar o passado — a história toda daquilo, não tanto enquanto mosteiro, mas como fábrica de tecidos e tudo o mais. Sempre com o mesmo processo que te falava: seleccionar a partir das sessões de improviso.

Quem vai editar isso tudo?

Quang Ny Lys saem, em princípio, pela Roda Music. STAU não tem editora. Talvez falemos com a Clean Feed, para ver se eles estão interessados. Para o projecto a solo não faço ideia. Só me falta a componente visual. Será feito por um artista plástico e um grande amigo de Coimbra, o João Vasco Paiva, que morou em Hong Kong durante muitos anos e agora está de volta, por enquanto. Ele está a tentar traduzir em vídeo estas ideias todas. Vai de sala em sala, dentro da estética dele, minimalista, sacar pormenores da sala e traduzir em vídeo e imagem. Vem assinado por HOLI — o meu nome a solo — e GEO — um nome que o João já tinha, só que eu não sabia e sugeri por coincidência [risos].


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