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Fotografia: Kenji Yamao
Publicado a: 10/05/2024

Manifestação artística em movimento.

Jhon Douglas: “É preciso espalhar a utopia de que a gente se pode unir melhor, atacar melhor e não depender tanto do circuito”

Fotografia: Kenji Yamao
Publicado a: 10/05/2024

De que matéria é feito um Artista Chinelo? De muitos sonhos, romantismo e beleza, seguramente, mas também de choques frontais com o tempo frio de uma realidade que tem tanto de paixão, como de porrada e mal viver. De tudo isso e sem rodeios nos fala Jhon Douglas, músico e artista multidisciplinar, que acaba de editar o seu mais recente EP, um manifesto singular, poético e provocador, povoado pelas muitas vidas e vivências que o trouxeram até aqui. 

Formado nos encantos e riscos do mato amazónico, nesta entrevista viajamos até Rondônia, e mais propriamente a Vilhena, cidade erguida sob cemitérios indígenas, e cuja história de violência em tanto contrasta com a alegria do encontro com que o músico decidiu viver a sua vida. A identidade é uma escolha, e não apenas uma herança. E no caso de Jhon Douglas, não há como dissociar as suas múltiplas intervenções artísticas dos gestos que o aproximaram aos outros, de quem se foi abeirando, equilibrado no seu skate, esse objeto singular que lhe mudaria a vida. 

Pelo caminho foi-se entendendo como artista autodidata e independente, do desenho e do mural, do autocolante e da pichagem, do cartaz e da pintura, do vídeo e das máscaras, e, claro está, também da música, paixão que descobriu em Lisboa, algures num estúdio que também foi casa, no saudoso Ateneu Comercial de Lisboa. Como tudo na sua vida, também a música foi vivida intensamente, embora o romantismo com que partiu em busca de um espaço no circuito cultural português também tenha trazido o sabor amargo da realidade. Afinal, talvez as notícias de um Portugal realmente aberto à diversidade tenham sido manifestamente exageradas.

De tudo isto se fala em Artista Chinelo, um EP provador sem ser panfletário, poético sem deixar de instigar ao movimento. Para quando, como aqui questiona, um bloco de artistas numa manifestação em Portugal? A perguntar fica no ar, como quem planta uma ideia para o futuro, em jeito de balanço de uma generosa entrevista, abençoada pelo Sol que irradiava o Jardim Botto Machado, ali para os lados da Feira da Ladra.



Queria começar pela tua história e pelo caminho que te trouxe até este Artista Chinelo. Tu nascente no Brasil, em Rondônia, numa zona da Amazónia Brasileira, certo?

Sim. Nasci em Vilhena, uma cidade relativamente nova e que foi evoluindo a partir das questões agropecuárias. Tem muitos reis da soja, do gado e da carne. A cidade nasceu da emigração do sul, a partir de um plano do governo, no final dos anos 60, para a ocupação da Amazónia. Uma parte das pessoas inscreveram-se num edital e ganharam um pedaço de terra para construírem uma casa. Outra parte foram as pessoas que ficaram sabendo disso e foram desbravando terreno. Há 50 anos eram terras “novas” e estavam abrindo a estrada para chegar a um velho oeste amazónico.

E a cidade tinha quantos habitantes?

Quando nasci tinha em torno de 60 mil pessoas. Era uma cidade pequena para o contexto do Brasil, mas muito rica. Tem essas pessoas que foram para lá por conta dos editais, mas também foram selecionadas grandes personagens com muito dinheiro para comprarem terras lá. Há pessoas que compraram terras e que são donas de cidades. 

De quem era a propriedade dessas terras?

Era uma ocupação do governo, mas a história é bem triste, porque as casas da cidade foram construídas em cima de cemitérios de indígenas. Esses ricos compravam terras sem saber o que havia lá, e se lá tivesse comunidades indígenas eles exterminavam. Matando, chingando… As histórias são horríveis, não tenho nenhum orgulho disso, mas é a história da minha cidade. Ao mesmo tempo, são essas as pessoas que estão no comando até hoje. Os amigos que estudaram comigo são filhos dessas gerações de donos da cidade. 

A tua família chega à cidade nesse contexto?

Sim. O meu tio ganhou uma terra e toda a família foi, mas eram pessoas sem nenhum vestígio financeiro. Tentavam uma vida melhor e havia uma fantasia de um novo mundo da Amazónia, mas que era para poucos. Ainda continua a ser um velho oeste contemporâneo. Consecutivamente é uma cidade muito conservadora e sem muita oferta cultural. 

E como foi a tua infância lá? Na tua música sempre tiveste muitas referências líricas e sonoras ao mato e à natureza. Tiveste muita proximidade com a floresta? 

Foi uma infância amazónica maravilhosa. É uma cidade comum, com Ferraris e carroças, mas à volta é só mato. A quinze minutos de bicicleta estás num rio de água nascente no meio da floresta amazónica. Uma parte da minha família é muito do mato, sabem andar na floresta de noite e voltar no mesmo lugar, são caçadores, pescadores e alcoólatras profissionais [risos]. Eu sou criado nesse meio, junto com os bichos. Mas ao mesmo tempo era muito cagão e fui o primeiro primo que teve o vídeo game [risos]. 

E entre a natureza e os videojogos, foi o skate que revolucionou a tua vida. 

Completamente. Quando tinha onze anos vivi em São Bernardo do Campo, em São Paulo, e tive o meu primeiro contacto com o skate. Entretanto a gente retornou para Vilhena, mas esse encontro com o skate não teve mais volta, foi uma obsessão e afunilou qualquer outro interesse. Só que cidade de Vilhena está a 700 quilómetros de qualquer capital, está muito longe de onde estava a acontecer a revolução do skate. Não ter essa referência e esse acesso foi algo muito importante artisticamente, porque se cria uma ingenuidade de não ter comparação. E o skate é rua total, a gente tem acesso a amigo fodido e a amigo burguês, a tudo o que está na rua. Acontece que é do skate que vem a minha necessidade de aprender a tirar fotos, a filmar ou a editar. 

O skate é o catalisador para e entrada nas artes?

Sim. Aos 17 anos decidi que não queria mais estudar e fui trabalhar numa serigrafia, sempre como autodidata. Nesse tempo descobri como fazer camisetas, como desenhar vetores com CorelDRAW, comecei a editar fotos de skate com Photoshop. Tudo isso se tornou uma paixão e fui afunilando no mundo da imagem. Passado um tempo comecei a trabalhar como designer gráfico e fui aprendendo a fazer flyers, cartazes e cardápios. Depois trabalhei seis anos como diretor de arte em agências de publicidade já em Cuiabá. Eu não entendia nada desse sistema, porque eu não fiz faculdade disso, mas era bom no negócio de fazer as artes. 

Consegues racionalizar de onde vem isso? Não sei se na família tinhas alguém ligado às artes…

O meu pai mora no Paraguai, e trabalhou muito tempo como pintor de motos. Lembro-me que, em épocas em que ainda era tudo manual, as motos quebravam e não havia esse acesso a peças novas. Ele refazia a peça, pintava, e, por exemplo, se a mota era Suzuki, ele fazia à mão o novo autocolante. Acho que algo veio daí. E depois, voltando a Vilhena, lá não chegavam autocolantes de marcas de skate, da Vans ou da DC, então eu criava os meus próprios autocolantes. Depois veio a Internet, a arte digital, e fiquei maluco por cartazes. Acho que isso me deu uma abertura para entrar na agência de publicidade. Mas eu trabalhava que nem um cachorro na agência, você está produzindo numa demanda desumana. Ao mesmo tempo, me deu muita prática e rapidez. Entretanto sai da agência e nessa altura comecei também a pintar quadros, a desenhar as máscaras, e com isso já ia dando para a sobrevivência. Por essa altura comecei também a desenhar arabescos, umas coisas meio aguareladas, uns rostos, que não era muito uma identidade minha, era um processo. Mas aquilo ganhou fama na cidade de Cuiabá, sai num jornal e começaram-me a elitizar sem eu entender nada desses processos. Fui seguindo o fluxo, estava a ter convites legais para fazer live painting em festas… Só que de repente estava no mesmo lance de agência publicitária.

Outra vez numa linha de produção…

Sim. Tudo bem que tinha um dinheiro legal, as pessoas compravam quadros, mas não tinha nada a ver comigo. Nesse tempo dei uma assutada e comecei a fazer outras coisas que gostava. Acabei por aceitar fazer uma campanha para o governo estadual durante 3 meses, indo trabalhar todo o dia 8 da manhã e sem hora para sair. Era uma energia caótica, mas foi importante, porque como via de escape comecei a fazer tags das minhas máscaras na rua. Ia trabalhar e na volta ficava a pintar, com aquela adrenalina de ser algo novo para mim. Subia os prédios, pintava na rua, tudo isso me motivou. 

Durante o dia no governo, à noite pichando a cidade na clandestinidade [risos].

[Risos] Isso motivou-me de forma positiva e chamou à atenção porque a cidade de Cuiabá ficou repleta daquilo. Na época a Globo fez uma matéria comigo. Depois da reportagem e com o dinheiro desse trabalho fui embora e decidi ir pintar. Viajei por São Paulo, Curitiba, Paraná, estive no Paraguai, no México, e fui fazendo murais e exposições independentes.



Como é que essa viagem acaba em Lisboa?

Eu estava no México pintando, mas queria conhecer a Europa. Então vim para cá, porque tinha uns amigos que vivem aqui até hoje e que são como família. Comprei a passagem e cheguei aqui em 2015 como skatista, com algum dinheiro no bolso, mas sem conhecer quase ninguém. Só que Lisboa tem essa rasteira da paixão e pensei logo em morar aqui [risos]. 

Foi paixão à primeira vista?

A gente vê muito isso e também aconteceu comigo. Mas novamente o skate teve um papel muito importante. Quando eu vim conheci a Praça da Figueira, fiz amigos, na maioria portugueses, e voltei a andar de skate com a mesma paixão da adolescência. Para mim, skate, o grafitti ou a pintura sempre foram a chave para você escapar do rolê turístico. Entretanto aluguei um atelier no Ateneu Comercial de Lisboa, ao lado Coliseu, com um grande amigo, o André Costa, que também é artista. A questão da imigração e dos alugueres já era difícil em 2015, então acabei por morar no atelier. Ia ser provisório, mas fiquei 10 meses de forma meio clandestina. Dormia lá e vendia os meus trabalhos na Rua do Carmo. Essa experiência ficou tatuada na minha vivência aqui. Conheci Lisboa, as pessoas que vendem na rua, fiz muitos amigos e isso dá-te outra perspetiva da cidade. 

Nessa altura decidiste ficar a viver em Lisboa?

Sim. Encontrei-me por aqui, a vida estava boa, conseguia a sobrevivência com a arte. Andava de skate todo o dia e vivia uma outra Lisboa, ainda tinha a paixão em alta, era tudo muito maravilhoso. Isso foi marcante e me estruturou aqui. Claro que não foi tudo rosas, em algum momento tudo aquilo me saturou, as condições precárias…

Ia-te perguntar isso, porque em 2015 Portugal estava a sair do período mais duro da austeridade, respirava-se um pouco melhor, mas a cidade nessa altura já estava a mudar muito, com o boom turístico, o aumento da habitação e inclusive espaços como o Ateneu fecharam. Como foi viver esses processos e que impacto tiveram no teu trabalho que vive muito da cidade e do espaço público?

A independência tem as suas mazelas. Tinha um boom turístico sim, mas era favorável naquele momento porque os que menos compravam eram os portugueses. Mas é muito cansativa a questão da rua, é desgastante, diário, e estás muito exposto. Nos primeiros tempos não me atentei a muitas dessas mudanças na cidade porque eu sou de um lugar muito distante, foi um período de mudança, de muitos confrontos com diferenças sociais, culturais, climáticas. Demorou alguns anos para eu entender os problemas da cidade. Esse sentimento da cidade de Lisboa mudando veio mais com a música. Antes disso, a mudança que senti foi a dificuldade da sobrevivência por ser imigrante. Antes de ser artista independente, vem primeiro o nome imigrante. 

Como é que música irrompe neste percurso?

Eu só tocava umas cifras de bandas que eu gostava, sempre com acordes básicos, decorando e tocando. Tinha um violão no atelier, ficava arranjando umas coisas e numa altura de um término de relacionamento escrevi uma letra e criei uma melodia. Fiz a música com um recorte de notas de outras músicas para criar uma canção. Lembro-me de sentir uma potência muito boa com isso…

É descobrir uma nova língua. 

Sim. Na altura fiz 3 ou 4 canções e a minha amiga Liliana [Escalhão], que era uma das gerentes do Primeiro Andar, criou um bar chamado Má Língua na Graça, e desafiou-me para fazer um concerto acompanhado de uma exposição. Foi a primeira vez que apresentei as minhas canções e foi incrível perceber a atenção das pessoas, que podia estar a dar uma opinião fora da mesa de bar…  Foi algo muito mais intensivo, fiquei apaixonado por essa entrega e aquilo foi muito revelador. 

Essas primeiras músicas são as que aparecem no álbum Mato?

Sim, e algumas também no álbum Jungleboys & Maritacas. Fiz algumas dessas músicas nessa altura, mas, entretanto, muitas coisas deixaram de fazer sentido. Em 2017 fazia 10 anos que não morava na minha cidade e estava a viver uma situação difícil, não estava a vender muito, e a cidade perdeu algum encanto. Decidi voltar à minha cidade, ter novamente um contacto com a natureza, e larguei tudo aqui. Quando fiz a música “Neuziana” cantei “vou voltar para o mato para me desatualizar” e era por causa desse sentimento. Mas antes de ir fiz uma festa de despedida com um concerto no Chapitô. Nesse show de despedida toquei pela primeira vez com banda, com o Dewis [Caldas], no baixo, e o Lucas [Brandão Lopes] na bateria, e foi algo alucinante. Rolou ali uma sensação de que isto podia ser qualquer coisa e fui embora com esse sentimento. 

O álbum só vem depois de regressares ao Brasil?

O álbum Mato acontece quando chego a Vilhena. Fiquei lá durante 10 meses e nesse tempo estive numa grande imersão. Abri o GarageBand, um amigo meu emprestou-me um microfone direcional e uma plaquinha e descobri que já sabia editar música pela prática de editar vídeo. Então fui no YouTube, baixei um pandeiro de samba, uma zabumba de baião e descobri que tinha forma fazer música. O que fiz foi criar a base de todas as músicas com sons do Youtube, pedi a um amigo para fazer uma cama de teclado e baixo virtual e a outro amigo que fez a masterização em troca de uma obra de arte. Gravei a voz e violão no estúdio que um amigo que emprestou, tudo num dia. Foi muito gostoso porque estava muito interessado no registo e não numa produção musical. 

É na sequência da gravação desse álbum que decides regressar a Lisboa?  

Eu percebi que queria ficar lá, mas não naquela altura. Ainda tinha de desbravar mais caminho e queria tentar esse lance de ser artista e criador. Com o dinheiro que guardei comprei a passagem para cá em 2018 com o intuito de criar uma banda e vim com o álbum pronto para lançar. Foi só uma ponte, mas foi muito importante esse momento lá, porque me conectei com minha cidade e com uma certa forma de viver. 



A banda que criaste foram os JungleBoys?

Sim. Juntámo-nos na Casa do Brasil para as primeiras apresentações com o Dewis [Caldas], o Lucas [Brandão Lopes] e o Fabrício [Soares]. Éramos uma espécie de banda residente e fomos progressivamente conseguindo datas em alguns festivais, nos Anjos 70, no Musicbox, e depois apareceram momentos memoráveis, como o concerto para o SOS Racismo. 

Na Festa da Diversidade de 2019?

Exato. Foi um momento magnífico e a partir daí as coisas foram tomando forma. Uma vez estávamos a ensaiar na Casa do Brasil, passou um dos produtores do FIMFA, que adorou o ensaio e chamou a gente para finalizar o festival. Depois entrou a Rita Pepe e a Isa Almeida, como back vocals, um outro percussionista e a banda foi crescendo. Mas ao mesmo tempo esse período foi também uma escola sobre a realidade do mercado… Eu quando comecei nem sabia o nome dos cabos, fechava concertos sem conhecimento… Se um cara me pedisse para esperar lá fora, eu esperava. Não me lembrava se a comitiva ia comer, apenas fechava os concertos. As pessoas vinham por acreditavam em mim, éramos amigos. Eles vinham, tocávamos muito, mas por muito pouco. O entendimento disso acabou por me corroer muito e o mercado me engoliu completamente. Eu pensei: “Poxa, arregrar tudo isso aqui, um monte de gente, para dar 30 euros a cada um e às vezes nem ter nada para mim?”. Acho que alguma coisa foi morrendo e foi difícil de lidar. 

Naquela época a prioridade era sobretudo tocar?

Sim. Aparecia gente que dizia: “Vimos vocês tocar, queremos que venham”. A gente não tinha experiência e topava. Eu geria tudo, a identidade, as divulgações, enviava os emails. Era muito desgastante porque tínhamos também a relação interpessoal de todos, e eu ficava incomodado de ver eles trabalhando, carregando instrumentos, para depois não dar quase nada. Depois desses concertos em 2019 gravámos o disco de Jungleboys & Maritacas, que foi financiado com um evento de angariação de fundos. Nós não sabíamos como gravar um disco, foi o Francisco Duque, da Camelão de Estúdios que nos ajudou. Por causa de contratempos, o álbum ficou um ano e meio a ser editado, e nesse período da pandemia a gente só tocou no Avante, com toda a gente de máscara. Foi um processo difícil e houve também um desgaste da minha parte em relação à gestão de todo o processo. Eu tinha um espírito muito “vamos todos!”

Havia um certo romantismo também?

Um romantismo sim, e que é bom também. Entretanto o disco ficou pronto e fizemos o lançamento no B.Leza, em 2022, com 12 pessoas em palco. Foi importante para vomitar tudo o que tínhamos passado e para celebrar com todo o mundo que fez aquilo acontecer. Foi um show incrível, com casa lotada, mas depois daquele show, acabaram os JungleBoys. 

Foi o fecho de um ciclo? 

Fechou um ciclo, sim. Eu tive de seguir sendo só como Jhon Douglas porque entendi como funciona este mercado e que, como artista independente, não tinha como viabilizar uma banda de 12 pessoas. A minha questão tem sido como posso continuar tendo uma carreira musical em Portugal, mas de forma sustentável. É difícil, mas tive de fazer reduções. Às vezes vou sozinho, outras vezes em dupla ou em trio. Mas pelo menos finalizámos os JungleBoys com um disco que é um presente para a história. 

Toda esta história também se reflete agora em Artista Chinelo, o teu novo EP, onde trabalhas sobre a desglamorização da figura do artista e desconstróis a ideia de “comunidade artística”, preferindo falar de uma “classe artística”. Comecemos pelo título: O que é um Artista Chinelo? Porquê este título e o que é que ele sintetiza?

Fui recentemente ao Brasil e a gente criou algumas bases eletrónicas, com baixos e beats, de forma bem caseira. Estava à procura de criar novas músicas porque estava vendendo shows em nome próprio, mas sem nenhum material novo. Aí conheci um produtor, o Thiago Ramalho, e produzi com ele o singleUBERITIS”. A gente viu que o entrosamento foi bom e a Camille [Kauer], que trabalha comigo, sugeriu que esta era a oportunidade para gravar um novo EP. Nessa viagem fiquei a matutar essa ideia. Acabei por pedir a um amigo para fazer umas fotos novas, menos europeizado, desvinculado da imagem do glamour, só de camisa, short e chinelo. Com essas fotos deu-me essa vontade de falar desse Artista Chinelo. O nome vem dessa necessidade de desconstrução e quis pensar também essa ideia de “comunidade artística” a partir da vida de muitos amigos e amigas, das corridas para cá e para lá, dos concertos, saraus, conversas e encontros culturais. O EP vem dessa observação de ver amigos que têm trabalho estabilizado e não tiveram luta nenhuma, outros para quem essa estabilidade teve mesmo muita luta e outros para quem nem existe. É como se o EP fosse uma visão observatória da comunidade artística em geral, ou seja, tanto da comunidade artística migratória atual em Lisboa e no país, mas também da comunidade artística portuguesa, que em geral não se relaciona com os artistas imigrantes. 

A comunidade artística é comunidade imaginada que se decompõe em diferentes grupos?

Exato. E mesmo também entre nós brasileiros. Há os brasileiros do samba, os que apenas passam por aqui e não vivem as dificuldades da imigração, ou aqueles que, como eu, se podem sentir como artistas brasileiros e portugueses porque todo o seu trabalho musical, estrutura e apoio foi feito em Portugal. As lutas que envolvem este Artista Chinelo são uma provocação geral para todos. Quis fazer uma peça inteira a partir deste personagem que quer provocar os seus próprios amigos e provocar-se a si próprio. Eu acho que existe muita divisão neste país que é muito pequeno. Todo o mundo que está trabalhando se conhece, mas todos fingem que não se conhecem. No final do dia, acaba-se a comer o próprio rabo e somos nós que fazemos muitos dos nossos próprios problemas. Este EP fala dos tempos atuais e do que se vive estando aqui.



Vamos então às músicas, começando com “Rua das Tretas”, que tem a participação do Luca Argel e do Elly Janoville. É o tema de abertura e em que abordam poeticamente esta projeção cultural que em Portugal se tem do que é o Brasil e a música brasileira. Existe uma contradição entre a construção dessa imagem projetada do Brasil, com o seu conjunto de rótulos associados, e a realidade da música e da imigração brasileira em Portugal?

Sim. Eu fiz a letra inicial, falei com Luca e ele foi especialmente maravilhoso. Entrou mesmo nisso e falámos muito dessa forma como aqui se entende, é criada e inventada uma determinada ideia do que é a música brasileira. E a verdade é que há quem se aproprie dessa ideia e quem queira puxar o barco para outro lado. Essa música é uma provocação em relação a esses rótulos e sobre o que significa estar aqui. Para dar um exemplo, não é pouco comum ouvires promotores de eventos a falarem em quota: “Já tem um músico brasileiro…” Não interessa que música faz, o que é que esse músico está dizendo, o único foco é que ele faz “música brasileira”. Eu acho que isso é muito prejudicial e a letra procura confrontar isso.  

Falam aqui da “utopia mal criada”, dos “vestígios do herói”, de uma “rua das tretas que faz esquina com o sonho da molecada”. 

É. Há quem se apodere desses rótulos e segue com o seu trabalho alimentando isso. Eu acho que o sol brilha para todo o mundo, sabe? Tem de haver uma comunidade diversa que quer ter espaços diferentes, linguagens diferentes e não estar apenas vinculada a esses rótulos. Eu já ouvi várias vezes de gente que trabalha com booking: “Ah, já tenho um brasileiro no cartaz”. Mas como assim?! E também é preciso pensar o que é que elitizaram com esses rótulos. Se eu amanhã faço um tributo a Tom Jobim ou ao Caetano, eu ganho mais espaço na música brasileira feita em Portugal. Além de que muitas vezes os mesmos que prejudicam os artistas brasileiros que estão aqui, são os mesmos que a seguir estendem tapetes vermelhos aos artistas brasileiros que vêm cá tocar. É muito contraditório isso. Eu acho que há tanto potencial nas pessoas que estão a construir a carreira no Brasil e que vão passar por aqui, como nas pessoas brasileiras que estão a fazer música aqui. 

Aqui vocês são imigrantes, quem vem de fora são artistas internacionais em digressão.

Exatamente, isso é muito confuso [risos]. O EP faz essa provocação. Está acontecendo tudo isso e você vai ficar aí sem falar nada?! Eu acho que é bom ter artistas que provocam e queria motivar mais as minhas amigas e amigos artistas a serem mais provocadores. É preciso às vezes dizermos que a gente é maltratada na própria casa em que a gente está tocando, sabe? Porque não falamos disso? 

O segundo tema é o “UBERITIS”, uma sátira que em que nos vemos todos um bocado ao espelho, entre a facilidade com que carregamos num botão e a vida aprece feita, e ao mesmo a consciência de que esses gestos também significam uma terceirização da vida, do tempo e por vezes até das relações. Porque é que foi importante para ti falar dessa contradição?

Somos todos dessa geração, né? Essa música surgiu um pouco na pandemia, quando rolou aquele lance em que toda a gente comprou o papel higiénico, todo o mundo queria garantir o seu negócio. Mas depois tomou outra forma quando uma vez fui a casa de um amigo, vi que ele estava trabalhando muito ao computador e à volta dele estavam montes de pacotes de comida. E nem eram pratos, que agora até já se come nas embalagens. Fiquei refletindo muito nesta forma como trabalhamos mais e mais, para termos mais dinheiro para mandar limpar a casa e pedir comida porque trabalhamos demais e não temos tempo. 

Trabalha-se mais para pagar os serviços. 

Para pagar todos os serviços, sim. Isso tem uma força muito grande e esse mundo se calhar vai ser assim daqui para a frente. Mas na música quis provocar essa geração também. 

Além de já termos esta mentalidade de estarmos sempre vigilantes uns dos outros. Um carro vem-te buscar, avalias. Vais a um restaurante, pontuas. Estamos a tornar-nos polícias uns dos outros. Qualquer dia venho-te fazer uma entrevista e tu pontuas a seguir sobre como é que me comportei [risos]. 

[Risos] E não só, eu saio daqui e digo: “Quanto custou o sal que a gente comprou? Estou-te mandando 50 cêntimos [risos]. Quando é que foi a imperial? E te mando logo uns cêntimos pelo telemóvel.” Isso me dá um constrangimento geracional enorme. Deixa alguém te pagar uma cerveja, amigo!



Já que falávamos em trabalho, fala-me um pouco da “Consciência de Classe Artística”. Sentes que falta consciência de classe aos artistas em Portugal? É preciso desconstruir esta projetação de uma ideia de “comunidade artística”?

Acho que sim, com certeza. Nessa música é como se estivesse num bar, bêbado, com todos os artistas cantando essa música. É como estivesse chamando eles para voltar para a base, para falarem do seu tempo, dos problemas que estão acontecendo, para serem atuantes.

Achas que os artistas falam pouco das suas condições de vida e trabalho? 

Sim. É claro que amanhã, se surgir uma oportunidade de trabalho para mim, eu vou também, se puder continuar com a minha ética. Mas a verdade é esta: eu não me posso comparar a um outro artista da minha geração que seja herdeiro! Existe aqui essa vontade de mostrar e falar dessa divisão. Eu entendo que nós possamos estar todos aqui fazendo arte, contando que as pessoas gostem. Mas se você tem uma outra condição social, isso obviamente te coloca, num mundo como hoje, e sempre foi assim, muitas casas à frente. E nem estou a falar só de ter muito dinheiro. Basta pensar num artista que tenha herdado uma casa aqui em Lisboa. 

Há não sei quantos problemas que desaparecem logo.

Claro. Não é a mesma coisa ser um artista independente em determinada condição social ou ser um artista que tem um atelier para tocar, que tem instrumentos, que quando lançar um álbum consegue ter recursos para patrocinar o projeto, para pagar uma assessoria, ou até a própria produção de álbum, que exige muito dinheiro também. Eu não aceito que amigos meus que não vêm desse lugar, que não são de base de ouro, se queiram assimilar a isso ou se comparar com aquele cara que está alcançando certas coisas, mas que vem claramente de outro lugar social. 

É como se o capitalismo existisse na sociedade e não meio artístico não. 

Como não cara? Este é um posicionamento de consciência de classe mesmo. É preciso falar que nós estamos aqui em Portugal, a trabalhar todos os dias e a nossa condição é essa. Não há como comparar as realidades.

E sentes que, para além dessa questão de classe, os artistas imigrantes em Portugal enfrentam problemas específicos cá por relação com os músicos portugueses?

Acho que sim. Acho que existe a quota, que não está estabelecida, mas existe. O meu amigo Leo Middea foi no Festival da Canção e aconteceu tudo aquilo horripilante. Mesmo indo à final, não deixou de ficar aquele sentimento de “teto”: “Vais até aqui, não venha pensar que você pode representar Portugal!” Eu acho que esses tetos existem e quando você quer furar a bolha, você realmente consegue sentir que é imigrante. Apesar da história toda que a gente aqui falou, eu não sinto que tenha conseguido ainda fazer um álbum realmente pensado e estruturado. Esse EP é um vestígio disso, mas feito em condições de independência, precárias e rápidas. É preciso ter um tempo para construir uma peça e articular uma obra que seja de potência nacional. Há possibilidade para isso, mas por melhor que esteja, vai sempre existir eu ser imigrante brasileiro. Porquê? Fico sempre pensando porquê. Porque é que os Capitão Fausto fazem feat com o Tim Bernardes e não com algum artista brasileiro que esteja aqui? Não é nada contra eles, claro. 

Claro, muitos destes problemas são coletivos e estruturais, são práticas que reproduzimos “naturalmente” sem termos muita consciência delas. 

Exato. Eu acho há possibilidades que se bloqueiam quando tens esse teto. Mas isto não quer dizer que todos os artistas brasileiros que passam por Portugal sejam privilegiados. Tem também muitos artistas independentes que passaram por aqui, fazem um show num clube e nem têm casa para ficar. Temos de enfrentar isso com luta, isso tem de ser denunciado. E temos de tentar encontrar pessoas que estão no circuito e que têm uma mentalidade diferente. Este problema também existe com os músicos cabo-verdianos, mas acho que eles estão muito mais unidos, fazem mais movimento. A consciência de classe também vem daí. O Artista Chinelo quer espalhar também essa utopia de que a gente se podia unir melhor, atacar melhor, e não depender tanto do circuito. 

Para fecharmos o EP, fala-me do “Cara Aplicativa”, onde também abordas a digitalização da vida e a falsa ideia de felicidade que é projetada em números, gostos e seguidores. 

Esse tema fala disso e é também inspirada naquela música que acontece no Brasil quando vais a um bar e está um cara sozinho ao teclado. É meio pimba, como se fala aqui, mas eu sou apaixonado por isso, sou envolvido nesse mundo. Na adolescência rejeitava tudo isso, mas hoje não e a partir daí quis fazer uma letra atual: “Nesses tempos tão modernos / de aparelhos tão singelos / com falsa felicidade”.  Eu fiz essa música em 2019, era um brega que cheguei a trocar, mas só gravei agora porque senti que completava o primeiro single [UBERITIS], fechando bem o ciclo do EP. 

Falando agora de Arapucagongon, o projeto que tens com o Henrique Silva, que planos têm para o futuro?

Esse projeto surgiu de uma necessidade de ter um paralelo e uma junção entre o Brasil e Cabo Verde. A gente tem uma afinidade de composição muito grande e fazemos músicas num estalo. O Henrique é super produtor e super músico. Fizemos umas quantas músicas, demos uns shows, tivemos uma pequena residência no B.Leza, mas ainda só lançámos um single. Temos mais 6 músicas feitas e um novo single pronto, só que com os nossos projetos principais no ativo, e como Acácia Maior acabou de lançar o seu disco, a gente está orientando para lançar outro single este ano. Além de que esse é um projeto que só funciona com banda e tem de ser com músicos do Brasil e Cabo Verde. É um projeto em andamento, em construção. 

Para terminar, também te vi ao vivo numa das últimas manifestações pela habitação. Como é que olhas para o momento político que Portugal atravessa? Estamos numa fase muito particular, com 50 anos de democracia e 50 deputados de extrema-direita. Além dos problemas da gentrificação, da precariedade e da habitação que continuam. Confesso-te que nesses momentos de mobilização social uma pessoa às vezes olha à volta e não se vêem assim tantos artistas a falarem e a posicionarem-se. Qual é a tua perceção?

Essa também é uma coisa que me incomoda muito. Além de que os artistas que mais se posicionam são os independentes. Acho que os artistas se posicionam muito pouco, principalmente os artistas portugueses de massa, que têm grande públicos. Claro que não têm a obrigação de se posicionar como uma bandeira política, mas não têm nada a dizer sobre essas ideias de morte, de exclusão, de violência? Eu gosto muito de Filipe Sambado, da posição que assume em qualquer oportunidade que tem para se expressar. Tenho muita admiração, muito por isso e não só. Mas eu queria motivar mais essa reação. E quero participar mais também. Às vezes nem é preciso estar lá a dizer palavras intelectuais ou políticas. Não é sobre isso. É sobre realmente movimentar, dizer que não se concorda. Eu acho que aqui se está passando por um momento muito difícil. Sendo imigrante, brasileiro, artista independente, estamos numa escala lá em baixo. É preciso lutar e ficar muito atento sobre essas ideias que circulam. Eu acho que o Artista Chinelo, e essas provocações às vezes humorísticas ou satíricas que faço, mora muito nesse momento que a gente está vivendo. É importante fazer música sobre isso, mas também é preciso fazer mais movimentações. Porque não um bloco de comunidade artística? Imagina numa das próximas manifestações termos um bloco de artistas? Isso já fazia uma diferença grande. É uma ideia para um próximo momento. Imagina todos os artistas juntos… 

Isso dava um bom título: “Convoco a comunidade artística para um bloco na próxima manifestação” [risos].

[Risos] Dá sim, até para desenvolvermos essa ideia. Essa é a intenção do trabalho, essa é a intenção da provocação. Não é para separar, é para falar. A gente tem mesmo uma possibilidade de se unir. Mas ao mesmo tempo eu sou um trabalhador também, sou classe operária trabalhando aqui para ter o meu espaço, para ser mais valorizado. Quero estar nesses lugares onde ainda não estou, mas não é como pura ambição de carreira. É uma questão política mesmo, de povo. Acho que a música tem de ser popular e acredito no popular.


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