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Fotografia: Larissa Hopwood
Publicado a: 08/03/2022

A escalar as montanhas da nostalgia.

Jesse Chandler: “As bases para A Letter From TreeTops estão no jazz”

Fotografia: Larissa Hopwood
Publicado a: 08/03/2022

A frase que puxámos para o título desta entrevista é interessante porque “jazz” não será a primeira coisa que assomará ao pensamento quando se percorre o catálogo da britânica Ghost Box: “folk”, “electrónica pioneira”, “kraut” ou “library music” tomam sempre — e muito naturalmente — a dianteira quando tal acontece. Mas esse é precisamente o território que Jesse Chandler reclama quando instado a descrever o que se passa musicalmente em A Letter From The Treetops, a sua estreia com o projecto Pneumatic Tubes.

Como se perceberá mais adiante, Chandler é um tipo com uma vasta experiência que começa precisamente no jazz: em 2004, pouco depois de concluir os seus estudos na New School, em Nova Iorque, tocou num álbum do já desaparecido guitarrista Vic Juris, nome com alguma tracção no universo do hip hop por causa do sample que DJ Premier descobriu em Horizon Drive para o clássico “Mass Appeal” dos Gang Starr. Pouco tempo depois deu por si em Lisboa, período em que estabeleceu uma ligação próxima com a Tone of a Pitch de André Fernandes: tocou piano, órgão e piano eléctrico em discos do já mencionado guitarrista, mas também dos baixistas Nelson Cascais e Mário Franco, e do igualmente guitarrista Nuno Ferreira.

Acompanhando a sua discografia, verifica-se que após terminar a sua aventura portuguesa começamos a cruzar-nos com o seu nome em trabalhos de John Grant e também dos neo-folkies Midlake: Chandler contribuiu para The Courage of Others tocando cravo, por exemplo. Quando Antiphon foi lançado já era membro do grupo. Para lá de Midlake, é igualmente notória a sua participação nos Mercury Rev — além de tocar com a banda ao vivo, gravou igualmente com o grupo a ambiciosa homenagem a Bobby Gentry que consistiu na regravação de The Delta Sweetee, disco em que participaram cantoras como Vashty Bunyan, Hope Sandoval ou Norah Jones e Laetitia Sadier.

O novo capítulo da sua carreira musical liga-se então à mesma Ghost Box que tem abrigado os trabalhos mais recentes dos Beautify Junkyards. E à sua particular receita hauntológica, Jesse Chandler, que é multi-instrumentista que além de diferentes teclados toca ainda instrumentos como clarinete ou fagote, adiciona algo do lado improvisacional do jazz, ainda que as naturais colorações sépia dos seus sopros encaixem na perfeição nas tonalidades pastorais que sempre se escutaram nos trabalhos da etiqueta de Jim Jupp e Julian House. E com a Primavera aí à porta, poucos discos soarão tão bem como companhia para longas caminhadas por locais mais despidos de marcas de civilização.



Li as notas que acompanham o lançamento do álbum e fiquei a saber do Camp Treetops e da cabana onde tudo foi gravado, mas gostava que me falasses um pouco mais sobre isso. Tu estiveste por lá com os teus teclados, o teu computador e os teus outros instrumentos. Como é que sabes que o teu sumo criativo está a fluir e quando é que deves apertar o botão de gravar?

Eu não fui para lá com o objectivo de criar um disco. O meu pai tinha morrido recentemente e eu só queria juntar os meus instrumentos todos, reuni-los à minha volta, no chão. Tinha algumas luzes de Natal, queimei palo santo… Fiz algumas coisas que ajudaram a criar um certo ambiente. Eu não tinha ideia de que ia sair dali um álbum. Para mim, enquanto artista, o ideal é conseguir entrar num estado de hipnose ou transe, em que já nem se tem bem noção daquilo que se está a fazer. Por vezes é difícil desligarmos as vozes que pairam na nossa cabeça. Perdi o raciocínio ao entrar nesse estado. A minha intenção nunca foi criar um disco, apenas tocar para mim mesmo, basicamente. Eu nem queria olhar para nenhuns ecrãs e, por isso, trouxe comigo um gravador Tascam de oito pistas e apenas um efeito, de reverberação. Comecei a tocar e… Foi tudo de improviso e gravado ao primeiro take. É uma cena muito pura. Eu não estava a pensar em mais nada naquele momento.

Os títulos que escolheste para estas canções estão a contar uma história, não é?

Sim. Eu só me apercebi disso depois de ter decidido o alinhamento: isto faz-me lembrar o escalar uma montanha para depois a descer. A norte de Nova Iorque existem duas cordilheiras, a Adirondacks e a Catskills. Eu cresci na Catskills, em Woodstock. Os títulos reflectem essa minha juventude lá. Reflectem também o meu pai, que frequentou o acampamento de Verão que se situa nas Adirondacks. Essas montanhas são mais recentes e não sofreram tanta erosão. São mais altas. Há um tema intitulado “Saw Teeth”: por um lado é o nome que se dá a uma das montanhas de Adirondacks, por outro é também uma referência aos sintetizadores. Todos os títulos advêm da minha experiência nas Catskills ou das memórias do meu pai nas Adirondacks.

Tiveste alguma referência quando estavas a criar este álbum? É curioso, porque embora exista uma óbvia componente folk neste trabalho, ele não soa a nada que tu já tenhas feito antes.

As bases para este álbum estão no jazz. Penso muito na Alice Coltrane, no Don Cherry, no Terry Riley… Há um concerto do Don Cherry com o Terry Riley que é o meu favorito de sempre — talvez tenha chegado a ser editado mas, tanto quanto sei, é um bootleg. Penso nas cenas do Miles… Tudo o que seja mais virado para o ambient, cenas que encontras nos outtakes do Bitches Brew, por exemplo. Também tens o krautrock — gosto imenso do terceiro álbum dos Kratfwerk, o Ralf und Florian. Há muitos exemplos que tenho vindos do jazz mais minimal — Jimmy Giuffre, Charles Lloyd… Gosto muito das cenas da CTI e da ECM.

É engraçado estares a falar nesse nomes, porque ainda ontem eu estava a ler uma peça publicada pela Pitchfork, sobre como o ambient jazz se está a tornar numa tendência no presente, muito graças aos trabalhos feitos pelo Pharoah Sanders com o Floating Points ou pela Nala Sinephro.

Há uma coisa na qual eu penso muito. Nós fizemos uma digressão acústica com Mercury Rev há uns anos e o nosso cantor, o Jonathan, estava sempre a dizer que adorava soar como o jazz, mas sem as notas [risos]. “O que raio significa isso?!” Desde que ele disse isso, eu dou por mim a pensar no assunto. Então, penso no jazz como uma estética e não nas mil notas que é preciso tocar. É algo que soa a jazz mas que, ao mesmo tempo, não é jazz.

E como é que te ligaste à Ghost Box?

Eu vivi em Portugal no início dos 2000 e nessa altura não se passava muita coisa. Havia a ZDB e pouco mais. Lembro-me de ir ver as agendas dos artistas que queria muito ver e Portugal nunca aparecia na lista [risos].



É verdade.

Creio que as coisas estão melhores agora. Mas foi nessa altura, quando eu andava a ouvir e a descarregar música online, que me deparei com uma plataforma, que não sei se ainda existe, chamada Emusic. Eu sacava e consumia tantos álbuns… Eles tinham uma excelente equipa de críticos e curadores e houve uma altura em que deram destaque a uma compilação da Ghost Box. Isso foi, para aí, em 2007 ou 2008. Então eu voltei atrás no tempo e andei a devorar todas as edições anteriores deles. Eu acabei por vir a participar num álbum deles, dos The Soundcarriers. Troquei alguns e-mails com o Jim Jupp para tentar obter algumas cópias desse LP e fomos mantendo o contacto ao longo dos anos. Deixei-o com a ideia de que gostava muito de editar um álbum por eles mas, nessa altura, eu estava muito ocupado com Mercury Rev. Depois, aconteceu: fiz este disco e enviei-lhe. Na verdade, ele era a única pessoa a quem iria enviar. Sinto que se não fosse pela Ghost Box, este álbum nunca chegaria a ser um álbum [risos].

Eu nasci em 1969 e, por isso, cresci nos 70s e 80s a absorver todos aqueles documentários de TV sobre a vida selvagem. A música da Ghost Box sempre me remeteu para esse tipo de memórias, tal como a tua agora também me faz sentir isso. E tu deves ter canalizado uma grande e intensa dose de emoções neste disco, porque eu senti mesmo essa ligação. É uma forma de nos transportar para um outro lugar qualquer no tempo.

Como te disse, eu entrei nesta espécie de transe e comecei a pensar na minha infância e também a imaginar como teria sido a infância do meu pai, ele que cresceu durante os 50s e os 60s. A coisa simplesmente aconteceu. Eu não sei se existe alguma referência exacta a algum programa televisivo ou assim. Eu assistia à Rua Sésamo, que é capaz de ser o equivalente americano a esses programas sobre natureza de que tu falas. Também assistia ao Mr Rogers… Havia uma data de programas televisivos marados na televisão pública norte-americana [risos].

Gostava de percorrer alguns episódios específicos da tua carreira. O primeiro tem a ver com os discos nos quais tu tocaste, que eu andei a explorar através do Discogs. Vi que, em 2004, tu tocaste com o Vic Juris, que é uma pessoa pela qual tenho um grande fascínio devido ao facto de ter sido samplado pelo DJ Premier numa das minhas faixas favoritas dos Gangstarr. Eu não esperava ver o teu nome associado a um álbum do Vic Juris [risos]. Como é que isso aconteceu?

Eu andei na The New School, que foi até onde eu acabei por conhecer a maior parte dos amigos portugueses que tenho. Eu tive a oportunidade de conhecer o Vic porque ele dava lá aulas. Nós tocávamos juntos de tempos a tempos. Eu tocava órgão, na altura. Ele ia lançar um disco numa editora, a SteepleChase, e pediu-me para tocar nesse projecto. Eu devia ter uns 21 anos nessa altura e nunca tinha estado envolvido na criação de nenhum disco de jazz daquela magnitude. Estava tão nervoso… Aquilo foi gravado em Nova Jérsia, perto de onde ele vivia, e eu acabei por ficar a dormir na cave da casa dele e da mulher. Lembro-me de não ter dormido a noite inteira e de ter encontrado lá duas cassetes VHS, às quais assisti numa televisão que havia lá em baixo. Uma delas era um documentário sobre os Marx Brothers; a outra era o Closely Watched Trains. Não podiam ser mais díspares [risos]. E sim, acabámos por fazer esse disco. Acho que até correu bastante bem.

Então foi na The New School que conheceste o Mário Franco, o Nélson Cascais…

Sim. Mais o André Fernandes, o Nuno Ferreira… Foi muito bom o tempo que passei com essa malta. Demos imensos espectáculos, fizemos muitos discos… A minha ex-mulher é portuguesa e foi com ela que me mudei para Portugal após a The New School. Isto foi logo após o 11 de Setembro. As coisas em Nova Iorque não estavam lá muito bem e nós queríamos ter uma perspectiva diferente das coisas. Passei cerca de quatro anos aí.

Nessa altura, moravas em Lisboa?

Sim. Morávamos em Campolide. Como tu sabes, era uma altura em que não se passava muita coisa em Portugal. Eu sempre quis conhecer o Noah Lennox — o Panda Bear — porque o Person Pitch é o meu álbum favorito dos últimos 20 anos.



Ele já vivia cá nessa altura?

Eu tive precisamente a pensar nisso e a organizar todas as minhas memórias de Portugal antes de falar contigo. E lembrei-me de um episódio, em que eu estava a ensaiar num espaço chamado Sinal 26, que não sei se ainda existirá. Mas eu estava lá a ensaiar com uma banda e, de repente, chega-nos um som muito estranho e selvagem que vinha de uma sala ao lado. Era uma cena muito doida, com samples e assim. Nós já nem estávamos a conseguir ensaiar. Passado um bocado, os músicos começam a sair da sala e eram os Animal Collective [risos].

Essa história é muito engraçada.

Eu adoro o Panda Bear… Se eu pudesse escolher uma pessoa qualquer para colaborar, seria ele [risos].

Hei-de enviar-lhe esta entrevista quando sair [risos]. Agora que estás com a Ghost Box, há por lá um projecto português muito interessante: os Beautify Junkyards.

Eu conheço-os e, nos últimos anos, tenho vindo a desenvolver uma amizade com o João. Eu adoro o trabalho dele, tanto as cenas a solo como aquilo que ele fez com os Beautify Junkyards.

Depois de Portugal, inicia-se um outro capítulo na tua vida. Tu regressas aos EUA e começas logo a trabalhar com os Midlake, certo?

É isso. Ainda enquanto vivia em Portugal, fiz uma digressão com eles. Nessa altura estava com o Robert Gomez, um outro músico da Bella Union e que tocou guitarra para este meu último disco, e fazíamos os concertos de abertura deles. Ele já viva em Denton nessa altura, próximo dos Midlake. Depois dessa experiência, tive a oportunidade de os conhecer melhor e acabei por regressar a Woodstock por algum tempo, após ter saído de Portugal. Só depois disso é que me mudo para Denton e me junto aos Midlake. Foi esse o meu trajecto depois de ter saído daí.

E como é que surgem os Mercury Rev no meio disso?

Foi uma mudança muito mística. Nós andávamos há um ano em digressão para apresentar o Antiphon e o Grasshopper, dos Mercury Rev, tocou guitarra connosco em algumas das datas. Eu comecei a tornar-me amigo dele e, dado que cresci em Woodstock, ele era um dos meus heróis locais. O nosso último espectáculo estava marcado para Monterey e foi nessa mesma semana que eu gravei pela primeira vez com os Mercury Rev. Calhou eu estar em Woodstock, a visitar a minha família. “Hey! Será que podias vir ter connosco e gravar algumas coisas?” Foi assim que tudo começou. Eu acabaria por voltar para gravar mais vezes. Fizemos aquilo que se viria a tornar no álbum The Light In You. Foi curioso porque, naquela altura, achávamos que não íamos lançar mais discos como Midlake e eu comecei logo a trabalhar noutro projecto. Felizmente, Midlake não chegou a acabar.



E quanto à Joana Serrat? Sei que ela tem um concerto marcado para Portugal. Além de teres tocado no último disco dela, também a acompanhas ao vivo?

Eu não toco ao vivo com ela mas já pensei na hipótese de a juntar em palco com Midlake. Acho que até foi através dos Midlake que a conheci, porque somos vários os músicos da banda que acabaram por tocar com ela. Ela também tem uma ligação com a malta de Slowdive, que são meus amigos. Há várias coisas que nos ligam e volta e meia cruzamo-nos um com o outro.

Tu há pouco mencionavas ter contado com o Robert Gomez no teu disco. Como é que essa parte da produção decorreu? Eras tu a enviar ficheiros aos músicos e eles devolviam-te as partes deles gravadas?

Eu tinha as minhas gravações e, muito cuidadosamente, meti-me a imaginar quem caberia aqui, dada a estética que eu queria adoptar para este projecto. Acabaram por ser os meus velhos amigos de Nova Iorque a ajudar-me. Eu enviava-lhes faixas e eles mandavam-me as partes deles. O disco em si já estava da forma que eu queria mas acho que as camadas adicionais que estes músicos lhe deram ajudaram certas faixas.

Tens planos para formar uma banda que possa levar este disco para os palcos?

Se houver interesse, eu adorava fazê-lo. Aquilo que eu tenho feito é tocar em bares e cafés aqui da zona. Tenho já um sistema montado com teclas, loops, pedais de baixo, sopros de madeira… Basicamente, eu monto os loops e toco por cima. Mas adorava poder levar isto para esse formato [de banda] ao vivo. O que eu faço de momento nesses espectáculos é improvisar. Até porque foi da improvisação que este disco nasceu.

Estamos todos muito ansiosos para ultrapassar esta pandemia, que foi especialmente dura para os artistas nos últimos dois anos. Como é que tu lidaste com tudo isto?

Eu sou muito introvertido e nunca senti que precisasse assim tanto de sair à rua. Eu gosto de estar rodeado de pessoas, mesmo que não seja para conversar ou interagir de alguma maneira. Mas eu passo muito tempo a ler livros, a ouvir discos, a assistir a filmes… Tenho dois filhos e também passo muito tempo com eles. Toda esta cena com as escolas… Eu não sei como estão as coisas aí a esse nível, mas aqui foi um pesadelo. Aqueles primeiros meses em que eles estavam a tentar enfiar toda a gente no ensino à distância… Acho que para quem é introvertido e se sente bem sozinho é mais fácil do que para aqueles que vivem da interacção com os outros. Diria que sou sortudo nesse aspecto [risos].

Mas eu presumo que o tocar ao vivo faça parte da lista também.

Claro. E essa é a cena da qual eu mais sinto falta. Enquanto músico, eu deixei de saber o que fazer. Eu conheço muita malta que deu espectáculos virtuais e assim mas isso não me soa a natural. Nos últimos dois anos, foram poucos os concertos que dei. Espero que as coisas voltem ao normal, especialmente na Europa, até porque cá já temos algumas datas para Abril.


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