Segunda-feira à noite, temperatura de esplanada, artista português e jazz desafiante não serão exactamente elementos de uma fórmula vencedora e, no entanto, o Anfiteatro ao Ar Livre da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, apresentou-se ontem com a sua lotação quase esgotada para escutar o trio de Luís Vicente, Gonçalo Almeida e Pedro Melo Alves. O que até nos poderá fazer pensar na relativa escassez de nomes nacionais no cartaz desta edição do Jazz em Agosto: tendo em conta o sucesso das apresentações de Rafael Toral e do trio de Luís Vicente, será fácil concluir que o público deste festival não desvaloriza a presença de talento nacional no cartaz.
O Luís Vicente Trio apresentou ao vivo temas do belíssimo Come Down Here, trabalho lançado o ano passado pela Clean Feed e que sucedeu a Chanting in the Name Of, registo também dado à estampa pelo mesmo selo português e que data já de 2021. Apesar de contar com os mesmos recursos humanos, este mais recente álbum de onde saiu o material para a muito aplaudida performance de ontem, 4 de Agosto, é acentuadamente diferente e mostra Vicente a exercitar o seu músculo composicional, propondo aos companheiros com quem desenvolveu uma assertiva e reconhecida capacidade colectiva de improvisação o diferente desafio de interpretarem material composto e estruturado, ainda que suficientemente aberto para que cada um se possa espraiar livremente.
E foi exactamente isso que se viu ontem: um trio altamente oleado, capaz de debitar força, poesia, terra e espaço com a mesma energia criativa, com todas as peças a encaixarem-se na perfeição, como se fossem fruto de um mestre carpinteiro muito experimentado na arte kigumi. Almeida é um gigante do contrabaixo, como nos mostrou logo numa das primeiras peças, “Anahata”, com um melódico statement no contrabaixo em modo strummed, como se se tratasse de uma guitarra gigante. Almeida tem uma imaginação fora do normal, recorre a um amplo conjunto de técnicas, usa o arco com propósito, improvisa e segue estruturas pré-delineadas com o mesmo empenho e está sempre a contribuir para que o som geral brilhe. É, de certa forma, pilar central do som deste trio.
Os dois elementos restantes são igualmente dotados de super-poderes criativos: Pedro Melo Alves é um baterista que domina múltiplas linguagens e que não teme qualquer tempo rítmico, por mais complexo que possa soar. E ontem não escondia uma exuberante alegria em estar ali com os seus companheiros, que impulsionou em permanência.
E Luís Vicente tem um coração do tamanho dos pulmões ou vice-versa, é um generoso compositor que escreve tanto para os companheiros como para si mesmo, que aponta caminho, mas não impõe como cada um o deve percorrer, e que no seu discurso sabe soar clássico e disruptivo, melódico e atonal, sendo capaz de transformar o trompete em vento que assobia nas escarpas afiadas de uma paisagem. Mas não foi só o trompete que usou, ligando-nos também à terra, aos pássaros e aos elementos com um conjunto de apitos, pequenas percussões, kalimba. A música que imaginou e que juntos interpretam é sempre viva, ultra-dinâmica e honesta, capaz de mexer com corpo e espírito em igual medida. “Mandei caiar o meu sobrado “, que, explicou ele, é peça ligada às tradições da capoeira e candomblé e que carrega ecos do sagrado, é disso um belíssimo exemplo.
Natural, portanto, que o grupo tenha apresentado duplo encore, tendo acabado o concerto com os temas-título dos seus dois álbuns, em versão necessariamente transformada pelo momento, pela energia do espaço e das pessoas, pela temperatura do ar e capacidade de encaixe rítmico da orquestra de sapos que ensaiava ali ao lado. Um pequeno sonho (acordado) em noite de Verão.