Na coluna Notas Azuis vai abordar-se jazz, música livre, música improvisada de todas as eras e nacionalidades, editada em todos os formatos.
[Carlos Bica feat. José Soares, Eduardo Cardinho & Gonçalo Neto] 11:11 (Clean Feed)
No passado mês de Maio, escrevi por aqui as seguintes linhas após ter visto ao vivo no Porto o novo quarteto de Carlos Bica:
“O ponto alto desta primeira jornada foi, obviamente, o concerto do quarteto liderado por Carlos Bica. O contrabaixista fez-se acompanhar por Eduardo Cardinho no vibrafone, José Soares no saxofone e Gonçalo Neto na guitarra — ou seja, um veterano rodeado de jovens leões, uma quadratura que resultou numa apresentação de mais de hora e meia em que a música atravessou, sobretudo, tranquilas, poéticas e algo cinemáticas paisagens, antes de ganhar ímpeto rítmico e fulgor abrasivo na recta final. Numa das suas intervenções, Bica fez saber que o quarteto já gravou e que o resultado dessa passagem por estúdio — as sessões, percebemos depois, decorreram nos Arda Recorders e tiveram supervisão técnica de Nelson Carvalho — deverá ver a luz do dia já no próximo mês de Junho com selo da etiqueta Clean Feed. Tendo em conta o que uma preenchida plateia ontem escutou, essa será uma muito bem-vinda edição”.
E eis que ela aqui está. Tem por título 11:11 e é um belíssimo documento desse vibrante novo projecto do veterano contrabaixista.
Nesse texto, acrescentou-se ainda:
“As composições — várias delas assinadas pelo guitarrista Gonçalo Neto e nalguns casos em estreita colaboração com o líder Bica — viajam sobretudo pelo espectro mais planante, calmo, poético e, como já mencionado, cinemático da música, com vincados traços de folk, country e blues a fazerem lembrar a espaços alguns registos de Ry Cooder ou Bill Frisell. Mas isso são apenas impressões de um ouvido “deformado”, já que personalidade é coisa que não falta tanto às melodias quanto aos arranjos e à sua execução: Neto parte da sua Gibson Flying V, quase sempre sem “filtros”, mas pontualmente esculpida por subtil pedaleira, incluindo alguma poeira electrónica, para dela extrair apontamentos melódicos de enorme requinte e de óbvia espessura técnica; o vibrafone de Cardinho é uma cascata harmónica de enorme frescura e beleza em que o resto dos músicos se banham, tocado com mallets que funcionam como autênticos pincéis com que pinta murais de grande riqueza cromática ou com um expressivo arco com que literalmente faz as lâminas cantarem — há mesmo uma dimensão “coral” nesta música que, paradoxalmente, vive sem vozes; e José Soares é a autêntica personificação da coolness, um saxofonista que grita com a mesma tranquilidade com que sussurra, que segreda com a mesma ferocidade com que clama — todo ele nervo, mas todo ele também pura elegância.
O mestre é, claro, o mestre a que os outros músicos respondem com deferência, mas nunca abdicando das respectivas personalidades: o lado mais free de Soares não se disfarça e os assomos mais rock de Neto são exibidos com orgulho. E tudo funciona”.
São linhas válidas para se aplicarem igualmente a 11:11. No entanto, o luxuoso detalhe da gravação de Nelson Carvalho nos Arda Recorders Studios transforma este registo num outro tipo de festim para os nossos ouvidos. É verdade que Carlos Bica nos tem oferecido repetidas razões para o mantermos bem no centro das nossas atenções, como aconteceu com os recentes Playing With Beethoven, que assinou em nome próprio, ou Close To You, trabalho que registou com o seu quarteto e Maria João. E já este ano escutámo-lo como parte do ensemble Japanic da pianista Aki Takase. Mas este 11:11 tem algo de diferente: desde logo porque mostra Bica em profundo modo composicional (sete das doze peças são da sua lavra, uma oitava tem autoria repartida com o guitarrista Gonçalo Neto que ainda assina dois temas ele mesmo), mas também porque opõe a sua vincada veterania à frescura de três jovens músicos. E o que resulta deveras interessante é que o seu génio não ofusca nenhum dos presentes, com Neto, Cardinho e Soares a encontrarem generoso espaço de expressão — “Blue in Grey”, por exemplo, arranca com uma belíssima exposição do lirismo do vibrafone de Cardinho antes das cordas apontarem o caminho a uma terna balada que Bica adorna com um dos seus mais tocantes solos neste registo e que funciona como mote para que os restantes músicos puxem dos seus melhores argumentos.
O som pleno de ar — e, portanto, de vida — de José Soares é determinante para o carácter poético deste álbum, mas a mais discreta presença de Eduardo Cardinho, por um lado, e o discurso contrapontual e a espaços até mais exuberante de Gonçalo Neto são marcas de idêntico peso de um trabalho que soa sempre plural, pleno de possibilidades, cromaticamente rico e musicalmente diverso. E, claro, há neste álbum um momento deveras especial, quando a voz espectral de José Mário Branco desponta da mais funda escuridão e começa por ser rodeada pelo ar de Soares, primeiro, e depois pelos pontos de luz de Cardinho. Dos mais tocantes momentos que a música portuguesa gerou nos últimos anos, esta versão de “Noite”: “Na noite do amor, na noite do sinal, naufrágio de fantasmas na pia baptismal”. Experimentem não se arrepiarem até ao mais fundo das vossas almas, se conseguirem. E, depois, no remate final que é “Love Boat” (a tal peça assinada em conjunto por Bica e Neto), poderão perceber com quantas notas se ergue uma peça de absoluta beleza e pura classe. Não são precisas muitas, na verdade. Bastam as certas.
[Luís Vicente Trio] Come Down Here (Clean Feed)
A expressão “hardest working man on show business” foi justamente aplicada a James Brown, tipo incapaz de dar menos que o máximo de cada vez que tinha um palco debaixo dos pés e um microfone à mão de semear. E embora o jazz mais livre e as músicas criativas só por distracção se possam confundir com “show business” (tudo ok com ”show”, a parte do “business” é que já não sei bem…), a verdade é que se aplicarmos a Luís Vicente o classificativo de “hardest working man” não andaremos muito longe da verdade — é que tal como o padrinho da soul, parece que o trompetista português nasceu com o botão da intensidade preso no “10”. E é sempre em modo de entrega total que encontramos Vicente, que só nestes últimos anos espalhou o seu trompetismo complexo e multifacetado em registos de geometria humana diversa lançados na Clean Feed, pois claro, mas também na Phonogram Unit, JACC, Cipsela, Fundacja Sluchaj! ou Multikulti Project, entre outras etiquetas de referência.
Em Come Down Here, Luís Vicente encontra-se, uma vez mais, na companhia do contrabaixista Gonçalo Almeida e do baterista Pedro Melo Alves, a mesma secção rítmica que o secundou em Chanting in the Name Of (trabalho que mereceu atenção aqui no Notas Azuis). Curiosamente (ou talvez não, já que explica muito do que para aqui vai), tanto Almeida como Melo Alves têm também novos trabalhos na Clean Feed (igualmente abordados por aqui na passada edição desta coluna e também nesta — conferir, por favor, o próximo texto), sinais inequívocos da benigna irrequietude criativa que os impulsiona para a frente.
O tema-título, que abre a sequência de meia dúzia de peças compostas maioritariamente por Vicente, é também uma espécie de manifesto, uma chamada à acção executada com transparente assertividade a que Almeida e Melo Alves respondem com entrega imediata e sem reservas. Percebe-se que as peças são balizadas e estruturadas, mas que no seu âmago persistem amplas bolsas de liberdade, espaços abertos às infinitas possibilidades da invenção espontânea que cada um preenche com imaginação abundante (o solo de Melo Alves é disso bom exemplo), mas também com pena consciência de que este triângulo é equilátero. Essas capacidades de comunicação instantânea e de encaixe perfeito do trio são fruto, certamente, da sua considerável rodagem e ainda, lá está, da experiência vasta que cada um tem acumulado nos inúmeros projectos em que se envolvem.
Há um momento especial e que, de certa maneira, é chave neste registo: “Mandei Caiar o Meu Sobrado” é uma espécie de standard das hipnóticas rodas de capoeira e rituais de candomblé que Gonçalo Almeida começa por preparar usando o arco para percutir nas cordas do seu contrabaixo transfigurando-o em berimbau. O seu discurso neste tema quando passa para o modo dedilhado é simplesmente assombroso e tanto Vicente como Melo Alves correspondem-lhe da melhor maneira, mergulhando num lago de espíritos ancestrais sem medo do desconhecido e do maravilhoso. E essa é a melhor qualidade deste disco: sente-se que o trio é permanentemente surpreendido com a música que se solta dos seus instrumentos e que essa constante surpresa é a verdadeira recompensa que buscam, o choque frontal com o inesperado é o business em que cada um deles é mestre absoluto. E isso, pois claro, é um show para os nossos ouvidos. Mergulhem sem problemas na “Penumbra”, a peça mais dilatada deste alinhamento, para entenderem aquilo de que falo — tudo ali é novo e tudo resulta de uma altruísta entrega ao estímulo do outro. Há quem chame a isso “magia”. “Jazz” também serve.
[Pedro Melo Alves] Conundrum Vol. 1: Itself Through Disappearance (Clean Feed)
A lista é deveras impressionante: João Barradas (acordeão e acordeão electrónico), Audrey Chen (voz e electrónica), Ignaz Schick (gira-discos, sampler, electrónica), Nuno Rebelo (guitarra eléctrica), Marta Warelis (piano), Violeta Garcia (violoncelo e electrónica), Jacqueline Kerrod (harpa), Carlos Barreto (contrabaixo), Sara Serpa (voz), Rafael Toral (feedback electrónico e acústico, amplificador modificado, oscilador), João Grilo (piano preparado), Gil Dionísio (voz e electrónica) e Ece Canlı (voz e electrónica).
Melo Alves encontrou-se com cada um destes artistas em palco — sobretudo, mas não só, na Galeria Zé dos Bois, em Lisboa — entre Fevereiro de 2019 e Dezembro de 2023. Em cada um dos casos, um mapa rasgado e uma bússola sem agulha ditavam que o passo inaugural da caminhada conjunta fosse simplesmente o primeiro em direcção ao absoluto desconhecido, ao mais longínquo e simultaneamente mais próximo enigma. Não que a música aqui apresentada procure solucionar algum problema. Na verdade, esta é música que questiona muito mais do que resolve, mas essa atracção pelo desconhecido é assumida e até reclamada, pois tanto Melo Alves como cada uma das pessoas que o acompanhou nestes diálogos entende que a liberdade de formular perguntas é muito mais preciosa do que a obrigatoriedade de apresentar respostas.
Tremores nos timbalões, baques secos nas peles, micro-explosões nas armações metálicas e nos címbalos, vibrações com arco, cadências desconstruídas e remontadas em grooves cubistas de abstracção máxima, ecos electrónicos, vozes guturais que inventam novilínguas, loops desenquadrados, fragmentos de electricidade atonal, drones em harmónica suspensão, pianos preparados e impreparados, cordas serradas com arcos que não resolvem, dedilhadas por dedos cegos, feitas vibrar por outros que inventam sempre que se mexem, mais vozes que parecem oscilar livremente entre este plano e o outro, o dos espectros, electrónica sensorial que parece possuída pelo espírito do Miles mais comprometido com o espaço e outras vozes que assombram e espantam, que atravessam sem pedir licença dimensões de espaço e tempo. Tudo isto existe aqui. Nada disto é fado, no entanto. Porque nada disto foi pré-determinado. Esta é música irrepetível, mas felizmente documentada aqui para a eternidade.