pub

Fotografia: Petra Cvelbar
Publicado a: 03/08/2025

Entre nuvens harmónicas e grooves irresistíveis.

Jazz em Agosto’25 — dia 2: evoluções espectrais e superações jazzísticas

Fotografia: Petra Cvelbar
Publicado a: 03/08/2025

Factor sempre importante no saldo experiencial de um festival como o Jazz em Agosto — que até ao próximo dia 10 decorre na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa — é o resultado da justaposição de propostas radicalmente diferentes no mesmo dia do programa. E esse foi certamente o caso do dia de ontem, em que o cartaz propunha performances em dois extremos opostos de um qualquer espectro musical que possamos ter como referência para estes terrenos mais criativos do jazz e/ou música improvisada. Na tarde de 2 de Agosto, no Auditório 2 da Fundação, Rafael Toral propôs a sua experiência Spectral Evolution Live e, umas horas depois, já com a noite instalada, o trio de Kris Davis apresentou-se no Anfiteatro ao Ar Livre. Ambos os espectáculos encontravam-se esgotados, o que é um indicador de claro sucesso para esta edição do Jazz em Agosto e para as suas opções programáticas.

Sobre esse sucesso, uma consideração que deriva de mera observação e não de nenhuns dados estatísticos concretos: nos últimos anos tem-se sentido uma transformação no perfil do público do Jazz em Agosto. Da sensação de que se conheciam todos os rostos na audiência e de que de ano para ano o público não se renovava passou-se — e uma vez mais, é importante insistir que se trata de uma conclusão baseada em mera observação e não em nenhuma compilação rigorosa de dados — para uma noção bem diferente de que o público aparenta hoje fazer-se de uma variedade etária mais pronunciada. Se assim for, de facto, é uma prova de vitalidade para o mais antigo festival de jazz do país em contínua actividade. Um triunfo, portanto.

Rafael Toral é, há décadas, um incansável explorador de novos mundos sonoros, um conceptualista avançado que nunca parou de se desafiar a si mesmo e que no processo de busca constante que sempre o guiou construiu uma sólida, variada e francamente excepcional discografia. Spectral Evolution — o trabalho que o artista português lançou o ano passado na Moikai, lendária etiqueta há muito dormente, mas que Jim O’Rourke reactivou com o especial propósito de carimbar o regresso de Toral à guitarra — foi justamente reconhecido como um dos melhores registos do ano gerando um raro consenso que em muito elevou o estatuto de Rafael Toral junto da imprensa nacional e internacional. Não que Toral fosse um ilustre desconhecido — longe disso, na verdade —, mas será lícito dizer que a atenção mediática que recebeu foi elevada a uma escala inédita. Mérito, pois claro, da pronunciada qualidade da obra e não de um qualquer golpe de “sorte”. Terá sido essa uma das razões para que o seu concerto tenha sido um dos primeiros a esgotar nesta edição do Jazz em Agosto.

O som realmente espectral que Toral concebeu para o seu álbum quase nos faz esquecer que há uma pronunciada dimensão de fisicalidade na sua prática, mas performances como a de ontem relembram-nos disso e mostram-nos que o que se escuta é, em primeiro lugar, a acção de um corpo vivo e só depois o complexo emaranhado de impulsos eléctricos que circulam a partir das vibrações de cordas captadas pelas pick-ups da guitarra que seguem um sinuoso caminho entre cabos e pedais até se resolverem no amplificador cujo sinal é remetido para um outro circuito de amplificação, trabalhado numa mesa de mistura, com mais equalizações e efeitos, e finalmente entregue aos nossos ouvidos por via desse fascinante fenómeno que é a vibração através do ar das ondas sonoras. É a tudo isso que se referem as notas de Spectral Evolution Live, o álbum que Toral lançou há apenas uns meses para documentar as apresentações do seu aclamado álbum: “O ambiente e a acústica da sala, a energia do PA e do subwoofer são realmente audíveis. É o mais próximo possível de ter assistido a um destes concertos ao longo de 2024 e 2025. Spectral Evolution foi expandido para apresentações ao vivo, em tempo (algumas seções mais longas e materiais adaptados para a experiência ao vivo) e espaço (a mistura descompactada em surround completo — no entanto, recondensada em estéreo para este lançamento). Um documento fiel de um momento especial”. Pode dizer-se que a promessa contida nestas notas é plenamente cumprida quando se presencia uma destas apresentações.

A gestualidade que Toral emprega quando parece querer guiar as densas nuvens harmónicas que liberta assemelha-se à de um mágico que dramatiza a ilusão. E o seu amplo tom é misto de órgão de catedral (versão Tangerine Dream, obviamente), natureza em pulsante vibração — pássaros e vento, crepitante folhagem de árvores, insectos e cursos de água, fenómenos atmosféricos e cavernosas ressonâncias — e laboratorial prospecção das físicas propriedades do som. Ou seja, tanto coração quanto cérebro, tanto maravilhamento quanto atenta reflexão.

A fase final da apresentação, depois de um paciente rendilhar de mantos harmónicos de superior beleza que nos massajaram os ouvidos durante quase uma hora, fez-se ainda de três adicionais secções: num momento, Toral imobilizou-se e, com as luzes de palco mais baixas do que durante boa parte da performance, virou ele mesmo figura espectral, estática, presente e ausente ao mesmo tempo, enquanto a reverberação da sala nos envolvia como um banco de nevoeiro; depois, Toral inverteu o posicionamento performático e relembrou a quem o possa seguir há mais tempo que tem um passado rock e que a expressão “guitar hero” também lhe pode ser aplicada executando um solo que deixou claro que mantém a sua juventude sónica bem resolvida; e, finalmente, assomou ao theremin que até aí parecia cumprir meras funções decorativas de palco, e dele retirou sons de amolador cósmico de facas, de pássaros reais e mágicos. Final pleno de beleza para uma soberba performance que Rafael Toral fez questão de dedicar a Sei Miguel, “uma pessoa cujo pensamento e prática são das mais avançadas em Portugal e no mundo”.

Uma nota adicional: foram várias as pessoas que abandonaram a sala a partir, talvez, da marca dos 45 minutos de actuação, o que é estranho para um concerto esgotado e que até deixou sem bilhete muita gente que queria ter estado presente, o que nos leva a pensar sobre potenciais efeitos menos positivos dos amplos consensos mediáticos. “Hype” é, afinal de contas, uma “four letter word”…



Após o jantar, e como diriam os Monty Python, pudemos ver algo de completamente diferente com o Kris Davis Trio.

A apresentação do trio da pianista canadiana que é figura de corpo presente na cena nova-iorquina estava igualmente rodeada de expectativa, já que Run The Gauntlet, álbum que lançou na sua própria Pyroclastic Records em Setembro do ano passado, foi amplamente aplaudido pela crítica. Foi o regresso de Davis a um formato com que não criava registos há mais de uma década. Ao seu lado no estúdio, como ontem em palco, estiveram o contrabaixista Robert Hurst e o baterista Jonathan Blake, dois cavalheiros dotados de excelentes atributos técnicos.

O concerto começou de forma abstracta, com Kris Davis debruçada sobre as cordas do piano de onde extraiu sons semelhantes aos de uma kalimba ao posicionar alguns objectos que transformavam radicalmente o cromatismo do seu instrumento. A essa exploração da mecânica interna do piano, num arranque mais meditativo, corresponderam Hurst com uma tranquila passagem no arco e Blake com as baquetas com bolas de feltro a proporcionarem um som mais suave e seco, propício a uma peça mais atmosférica que se envolveu bem com os múltiplos sons da ambiência nocturna do jardim.

Hurst demonstrou possuir um bem encorpado e redondo som, muito amadeirado, excepto quando solou “ligado à corrente”, usando um pedal que lhe transformava radicalmente a tonalidade, dando-lhe um recorte mais metálico e que por ter sido o único desvio ao rigor acústico da apresentação talvez tenha até soado um pouco deslocado tendo em conta o contexto musical. Mas o contrabaixista é um músico exímio, um solista imaginativo que complementa com profundo saber os grooves desenhados pelos seus companheiros. 

Já Blake é um baterista de amplos recursos, capaz de ser subtil e lírico num momento, demonstrar um ataque mais vigoroso e pleno de funk noutro, construindo solos que descartam derivas mais “arrítmicas” para se concentrar, por vezes recorrendo às duas tarolas que usa — uma mais baça e amadeirada, outra mais estridente e metálica — na riqueza de um propulsivo groove bem swingado. E é bem particular a disposição do seu kit, com os pratos — em generosa quantidade — a serem posicionados muito baixos, quase ao nível das tarolas e timbalões. A verdade é que essa “arquitetura” funciona na perfeição e Blake extrai do seu kit cadências de sofisticação absoluta que muito naturalmente convocam fortes aplausos da plateia.

E sobre isto tudo, Davis dispõe um toque certeiro, capaz de alternar entre passagens improvisadas mais livres e outras onde cada nota não esconde ser ponderada com pertinência composicional total. Para lá de material de Run the Gauntlet, como a belíssima “Beauty Beneath the Rubble”, escrita por Jonathan Blake, uma balada de lirismo acentuado em que Kris Davis brilhou expondo toda a poética do seu discurso pianístico, ou da muito curiosa “Little Footsteps”, que obriga o trio a uma circular deriva que requer o uso de competências mais tecnicistas de cada um, o que resulta num festim para os nossos ouvidos, houve ainda espaço para o que se presume ser novo material, como a peça “Lost in Geneva”, lavra da própria pianista. 

Mostrando a sua generosidade ao dar espaço aos seus companheiros, Kris ainda apresentou um curioso tema no encore escrito por Robert Hurst, uma homenagem ao bluesman Albert Collins que se revelou também um atestado de groove em que os três músicos embarcaram com óbvio deleite, sorrindo pronunciadamente ao perceberem o prazer que cada um estava a retirar de tocar uma peça com um recorte mais “fácil” e algo lúdico. 

De facto, Davis não esconde que gosta de agradar ao público e que muito do seu jazz é transparente e desprovido de complicações — harmónicas, rítmicas ou de outra natureza — desnecessárias, mas isso não significa que a música que apresenta com o seu trio seja simplista ou resultado de qualquer outro compromisso que não seja o que ela acredita melhor servir as suas composições. Cheia de blues, com subtis toques de latinidade até, a sua música é também marcada por ideias avançadas, por improvisos complexos e por passagens de desenvolta criatividade “free”. É no equilíbrio de tudo isso que reside a sua profunda qualidade. E se esse é o som de alguém que passa pelo calvário de se ver questionada ou criticada de alguma maneira, com o título Run The Gauntlet parece indicar, então o que ontem escutámos foi o som da superação.


pub

Últimos da categoria: Reportagem

RBTV

Últimos artigos