Jamie Leeming toca amanhã no Hard Club, no Porto, ocasião que justifica a breve conversa que a seguir se apresenta e em que o guitarrista fala do seu circulo de amigos — incluindo a nossa bem conhecida Raquel Martins —, da experiência na academia e do que existe dentro da sua música, sobretudo as memórias que são terreno que lhe interessa explorar a fundo.
Vimos Jamie Leeming em 2019 como parte da banda de Alfa Mist, pianista que se apresentou em Braga no âmbito do festival Respira, no Theatro Circo. E já nessa altura impressionou com o seu ultra-personalizado som que brilha em Resynthesis, belíssimo álbum que lançou na Sekito, selo gerido por Alfa Mist. É daí que vai sair o material que amanhã estreia no Porto, no seu primeiro concerto em nome próprio no nosso país.
Muito obrigado por aceitares esta chamada. É um prazer poder falar contigo e julgo até que temos alguns amigos em comum. A Raquel Martins esteve a tocar num festival que eu programo, o Novembro Jazz, e ela, obviamente, falou-me de ti.
O prazer é mútuo. Obrigado por me teres convidado para esta entrevista. E sim, a Raquel é espantosa. É uma artista brilhante que escreve, produz, e é uma grande pessoa. Eu adoro tudo aquilo que ela faz.
Vi o Alfa Mist há uns 4 anos em Braga, num sítio muito bonito chamado Theatro Circo. Tu tocaste com ele nessa noite, certo?
Tenho de pensar um bocado, mas muito provavelmente sim. Isso foi num festival?
Foi numa sala do século XIX muito luxuosa.
Olha que eu acho que sim. Se é a sala que estou a pensar… Aquilo faz lembrar um teatro de ópera, não é?
Isso mesmo.
Então sim, eu estava a tocar com ele. E essa sala é incrível!
E quem vais trazer contigo para este espectáculo no domingo?
Vou trazer comigo o Jamie Houghton na bateria, que, se bem me lembro, também estava nesse espectáculo que mencionaste do Alfa Mist. Eu toco com ele há vários anos, quer na banda do Alfa Mist quer na minha música — ele gravou bateria para o meu disco, Resynthesis. Ele é formidável e, sem dúvida, um dos meus bateristas favoritos. No baixo terei o Joe Downard, que também toca no Resynthesis em muitas das faixas — toca contrabaixo, baixo eléctrico e baixo sintetizado, com um Moog. No saxofone vou ter o Rich Muscat, com quem tenho tocado recentemente. Ele é um músico extraordinário e, por acaso, até estudou na mesma escola de música que eu, embora não ao mesmo tempo — ele entrou depois de mim. Esta é a primeira vez que temos a oportunidade de tocar juntos e ele é outro músico incrível. Trabalha muito os sons, usa pedais de efeitos, algo que traz toda uma nova textura para espectáculo ao vivo. Esta vai ser a banda para domingo.
O teu novo álbum é, digamos, uma verdadeira viagem. Parece que vai a todo o lado. Estava a ouvi-lo ainda agora e a última faixa faz-me recordar uma cena exótica, tipo música havaiana dos anos 60. Ao mesmo tempo, tens jazz puro e duro, momentos em que pareces estar a misturar estilos rítmicos contemporâneos… Até mesmo o ambient parece ser um ponto no qual tu gostas de tocar. Como é que tu descreves a música que fazes?
Essa pergunta é muito boa e, antes de mais, agradeço-te por teres tirado um tempo para escutá-lo de forma tão atenta e detalhada. A forma que eu tenho para descrever a música que faço diria que resulta de um culminar de diferentes influências, de coisas sobre as quais me interesso enquanto músico e também enquanto pessoa. Tu notaste a referência à música ambient e isso vem do meu interesse enquanto guitarrista e ouvinte, porque gravito em torno de uma musicalidade calma e meditativa. A “Still Connected”, por exemplo, é um loop que anda ali às voltas, enquanto a história se desenvolve por cima dele. Há um outro lado na minha forma de tocar que vem, como também disseste, do jazz contemporâneo — da improvisação e do diálogo entre músicos. Há uma faixa chamada “Zen Garden”, para a qual eu olho muito como um diálogo entre a guitarra e a bateria, que nesse caso foi tocada pela Jas Kayser. A coisa foi pensada para não ter um groove definido, mas sim improvisado, de forma a conseguirmos ter uma espécie de conversa. O que saiu foi diferente de tudo o resto que alguma vez tinha gravado, mas eu adorei o resultado. E como tu também deves de saber, a música deste disco baseia-se em diferentes memórias minhas que considero significantes. Vi isso como um ponto de partida. Dependendo da memória, ela vai influenciar a composição e levá-la a alcançar diferentes territórios musicais.
Em vez de fazeres uma banda-sonora para um filme imaginário, estás a musicar as tua próprias memórias.
Sim. As memórias são o meu ponto de partida. E isso levou-me até a aprofundar certos conceitos: eu fiquei interessado em perceber como as memórias nos moldam a identidade, pesquisei sobre o processo que nos leva a lembrar as coisas… Quando nos lembramos de algo, temos a ideia de que nos estamos a recordar dos factos com muita precisão, mas a forma como o nosso sistema neurológico funciona não permite que essas memórias sejam assim tão precisas.
Talvez um dia cheguemos a um ponto em que vamos poder gravar todas as nossas memórias. Ainda não chegámos bem a esse ponto [risos].
Exactamente [risos]. As nossas memórias têm o potencial para nos ajudar a interpretar a nossa própria vida, a forma como a nossa personalidade se molda. Eu achei tudo isso muito interessante. E quanto mais pensei sobre o assunto, mais ideias fui tendo. Essa foi a base para o disco.
Espero que não me leves a mal esta pequena provocação. Para uma pessoa da minha idade, que já viveu mais de metade dos anos expectáveis, é normal haver essa preocupação em consultar a memória. Mas para uma pessoa jovem como tu, espera-se que estejas mais preocupado em pensar no futuro do que propriamente a reviver o passado. Porque é que as memórias desempenham um papel tão importante neste disco?
É uma boa pergunta. As memórias em particular que eu escolhi foram aquelas que senti que tinham um grande significado para mim enquanto pessoa. Aquelas que, de algum modo, me moldaram. Esse foi o ponto de partida. Assim que comecei a compor baseado nas memórias e a pensar sobre elas, meio que dei um passo atrás para poder afastar-me da minha própria perspectiva. Pensei, “uau, estas memórias são mesmo importantes para mim.” Mas tu, por exemplo, terás memórias diferentes que são tão ou mais importantes para ti. Todos os seres humanos no planeta têm a sua cena. E que coisas são estas a que chamamos de memórias, que são tão importantes para nós mas que nem sequer existem propriamente? [Risos] Elas podem nem ser exactas. Duas pessoas à mesma hora num mesmo evento podem lembrar-se e interpretar as coisas de maneiras diferentes. Quanto mais pesquisei sobre isso, maior o tópico se foi tornando e, ao mesmo tempo, mais inspirador. Portanto, as minhas memórias são o ponto de partida, mas assim que comecei a pesquisar sobre o assunto dei por mim a pensar na relação que cada pessoa tem com as suas memórias.
A meditação também desempenha um papel importante para nos conseguirmos descobrir enquanto pessoas. Como é que essa prática informa e afecta a forma como tu crias?
Essa pergunta é interessante e leva-me de volta à “Zen Garden”. Essa música tem uma ligação directa à minha prática meditativa. Quando a gravei com a Jas, disse-lhe que gostava que aquilo fosse um diálogo e que o conceito para a improvisação tinha base numa coisa que eu faço a meditar, o controlo da respiração, em que me foco apenas na respiração e em nada mais. Invariavelmente, pelo menos quando o faço, posso não conseguir fazê-lo e a minha atenção anda a passear por aí [risos]. Até que, a dada altura, consigo concentrar-me e focar-me apenas na respiração. Disse à Jas que gostaria que a improvisação fosse desse género, em que tocamos por cima de um drone base, o tal ponto de focagem, como se fosse a respiração. O conceito seria nós tocarmos com base nesse drone, afastarmo-nos, como se estivéssemos distraídos, e depois regressamos ao tal ponto de focagem. Tu sentes isso no tema. Nós começamos por seguir o drone, afastamo-nos e regressamos. Nessa faixa tens essa ligação directa com a meditação.
Podemos regressar aos teus tempos na Guildhall School of Music & Drama? Quem é que conheceste lá? Dirias que a tua rede de colaboradores actual brotou a partir da tua experiência na escola?
Quando eu estava na Guildhall conheci muita gente. Eu estive lá durante um ano e, nessa altura, senti que era o local certo para estar. Mesmo o estar em Londres, no geral… Existem tantos músicos e a cidade tem uma cena entusiasmante. Há uma comunidade muito grande. Sem dúvida que conheci colaboradores através da Guildhall, tal como conheci gente a assistir e a tocar em espectáculos. Essa é a razão pela qual adoro viver em Londres, enquanto músico. A cena é muito grande e tem inúmeras secções que, ao mesmo tempo, se interligam. É formidável fazer parte disto.
Como é que um músico como tu se encaixa nessa cena? Além dos espectáculos que dás — teus ou a acompanhar outros músicos, como o Alfa Mist —, tu consegues andar com a tua guitarra e encontrar lugares onde a possas simplesmente ligar a começar a tocar, em jam sessions ou assim? Isso é algo que existe aí, certo?
Sem dúvida. Eu consigo lembrar-me de vários exemplos disso. Há até um que serviu de inspiração para uma das faixas do meu novo álbum, a “Champion”. Costumava existir uma noite comandada pelo baixista Hugo Piper, que é quem toca a linha de baixo da “Champion”. Ele costumava reunir bandas com regularidade com malta que nunca tinha tocado junta. Sem ensaios. Eles tocavam dois sets de música inteiramente improvisada. Num desses espectáculos eu conheci a Jas Kayser, tocámos juntos pela primeira vez e desde então que temos vindo a trabalhar imenso juntos — ela toca no Resynthesis e eu toco na banda dela. Também conheci o Quinn Oulton, saxofonista que toca no “Champion” e que também já participou em espectáculos meus, um músico e produtor incrível. Esse espectáculo organizado pelo Hugo Piper foi muito fixe, porque tudo se fez a partir do nada. Não existia nada e nós tocámos um alinhamento completamente improvisado pela primeira vez sem nunca nos termos conhecido antes disso. Também há uma cena a decorrer com o mesmo conceito no NT’s Loft, onde as pessoas podem convidar outras pessoas para se juntarem a tocar. É totalmente o oposto a uma cena ensaiada e bem organizada. E através disso faz-se música muito boa. Eu adoro isso e alguns dos meus espectáculos favoritos foram nesse registo, porque estás a tocar com outros músicos com uma mentalidade muito semelhante, o que se pode tornar algo grandioso.
Tal como deves ter reparado, tanto a imprensa britânica como a internacional tem prestado uma atenção muito grande à cena de jazz londrina ao longo dos últimos anos, elevando-a, naturalmente, dadas todas as coisas espantosas que têm surgido daí. Dirias que essa cena extremamente saudável se tem vindo a espalhar por estabelecimentos de ensino como aqueles que tu frequentaste? A ideia que eu tenho é que o ecossistema institucional é tão sólido, que os artistas conseguem ter uma educação do nível o mais superior possível, sendo por isso a cena actual um reflexo desse circuito do ensino. Achas que as academias contribuem muito para o que hoje estamos a assistir?
Essa pergunta é muito interessante. Sem dúvida que as instituições de educação musical têm um papel nisto. São muitos os músicos com quem trabalho que, a dada altura da sua aprendizagem, estiveram envolvidos nesse tipo de ensino formal. Mas também diria que estas instituições sempre existiram em todo o Reino Unido — não apenas em Londres. Na verdade, instituições deste tipo existem em todos os países. Eu vivi algum tempo em Paris, por exemplo, e sei que eles têm instituições de nível semelhante. A forma como isso se relaciona com a cena jazz de Londres… Eu diria que desempenha um papel, mas não diria que é a única razão pela qual se tem feito tanta música incrível a partir daqui. E tu tens outras cidades a produzir música muito boa, como Manchester, que tem a Gondwana Records. Também tens a Jasmine Myra, que creio ser de Leeds. Glasgow também está com uma cena incrível e tem o Corto Alto. Eu acho que, nestes sítios, as comunidades são tão importantes quanto o sistema de ensino. Assim como eu há pouco te disse que conheci músicos incríveis através das instituições de ensino, também te digo que conheci outros tantos só por frequentar aqueles espectáculos de gente que apenas se junta para tocar. Há muita coisa a acontecer em Londres, sem dúvida, mas nas outras cidades também. Mas diria que as comunidades que existem são aquelas que desempenham um papel mesmo muito importante nisto.
Uma questão mais geek: como me descreves o setup que usas para tocar guitarra? A que tipo de pedais recorres para moldar o teu som?
Essa pergunta para um guitarrista… Podíamos estar aqui a falar sobre isso durante 6 horas [risos]. Em termos daquilo que é a minha música, eu não só a compus como produzi para o disco inteiro. Muitas das coisas que eu tenho… Eu diria que trago para o palco uma paleta de sons comigo, mas só decido quais vou usar no próprio momento. Portanto, tenho uma colecção de sons dos quais gosto e que me inspiram. A coisa mais importante é essa: encontrar sons que, ao tocá-los, me fazem sentir inspirado, me metem a pensar em coisas novas. Alcanço esses sons através de um conjunto de pedais, mas a forma como os vou usar muda a cada concerto. Depende da direcção para a qual eu quero apontar naquele momento. As combinações vão mudando.
Então tu não estás apenas a improvisar nas notas que escolhes tocar, mas também nas cores que essas notas podem adoptar.
Exactamente. Essa ideia das cores é muito boa. Eu gosto mesmo de lhe chamar paleta. Posso precisar de um “azul” ou de um “amarelo” [risos]. É muito assim que eu penso nos sons que vou usar ao vivo.
Para terminarmos, o repertório ao qual vais recorrer é apenas composto de material do Resynthesis ou também vais buscar outras coisas?
Predominantemente será música do Resynthesis, embora eu possa dizer-te que também vamos tocar coisas novas que ainda não foram gravadas. Mas sim, a base do espectáculo vem do Resynthesis.