Com Agosto vem o tempo de férias de muitos e vêm as músicas de outros até nós, aqui vindos ao jardim do paraíso da música jazz, para mais uma edição do festival da Gulbenkian, Jazz em Agosto, que prossegue na missão de vanguarda pela 40ª vez. O concerto de abertura fez-se uma vez mais no idílico Anfiteatro ao Ar Livre, onde livre se torna o espírito dos que sentam o corpo para deixar voar tudo o resto com a música que do palco, com o lago e vegetação como pano de fundo, povoa a dimensão do espaço. O primeiro dos 17 concertos da presente edição fica a cargo de Red Lily Quintet de James Brandon Lewis.
Para formar o quinteto estão, além de Brandon Lewis no saxofone tenor, Kirk Knuffke em corneta, Tomeka Reid no violoncelo, Silvia Bolognesi no contrabaixo e Chad Taylor na bateria. Brandon Lewis que assume concerto adiante que estão a apresentar For Mahalia, With Love, pelo que será também uma prestação em jeito de veneração a uma das maiores vozes de entre as vozes do gospel. No álbum, editado pela Tao Forms em setembro último, as cordas são tocadas por Chris Hoffman em violoncelo e William Parker no contrabaixo. Em palco — e como são mutáveis as formações no jazz, tantas e boas vezes — são Reid e Bolognesi que assumem esse papel nas cordas. Os propósitos do disco mantêm-se em concerto, Lewis confirma-o dirigindo-se ao esgotado anfiteatro, após um espiritual começo do quinteto com “Even the Sparrow”, servido em medley juntando “His Eye Is on the Sparrow”, e seguido de “Swing Love”. Nas palavras, ainda que confesse preferir comunicar através do saxofone — mesmo quando lhe fazem perguntas políticas —, comenta que as músicas que estão a tocar são para Mahalia Jackson — a cantora gospel aclamada como uma voz maior da música norte-americana. E Lewis detalha que cresceu a ouvir a música de Jackson junto da avó, que “em criança ouviu Mahalia em palco, e de quem recebeu algo que se aproxima da voz de um deus para falar com ela”. Estamos na esfera das comunicações que transcendem, como a música disso bem trata e nos devolve a razão da existência naquele palco.
Lewis que emana da campânula do tenor uníssonos clamorosos junto da corneta campanular de Knuffke. São ascensões para alcançar patamares nos quais diferenciam as vozes, numa oratória devocional. “Swing Love” trouxe uma introdução vibrante e exploratória do tenor e deu azo, mais adiante, à corneta de brilhar num belo encanto. A corneta que Knuffke toca é a que Ron Miles usou na sua música, foi um testemunho deixado do mestre cornetista de Denver, e com quem Kirk aprendeu muito na arte maior de insuflador. A corneta — explicou-nos em detalhe em conversa pós-concerto — difere das trompetes porque o som circula de forma cónica no instrumento, vai-se abrindo desde início e isso confere-lhe um tom quente e suave, aberto — sublime e pairante, sentiu-se desde pronto nas intervenções isoladas. A este propósito retome-se o registo solo que Knuffke gravou para a Clean Feed com Fierce Silence em dueto com Whit Dickey. As composições e arranjos de Brandon Lewis têm uma desenvoltura em muito feita de construções combinatórias das vozes, talvez mesmo porque tratam de uma abordagem à voz gospel. Há um coro, em massa, que progride depois para momentos de duos e trios conjugados. “Made in Water”, outros dos temas servidos de For Mahalia, With Love, que parte da tradição em espantosos arranjos de Brandon Lewis, arranca com um deliciosa improvisação de violoncelo e bateria, de um precioso emaranhado desenho de bordejos das cordas e timbres orgânicos de aros e peles. Estes requintes que em esparsos e mais permissivos instantes deixaram entrar os coaxares das margens do lago — ligando-se ao título do tema anterior — foram explanados com igualitários solos em “Go Down Moses”. A cascata de solos ouve-se desde uma corneta dócil e chamativa de Knuffke, que concede ao violoncelo de Tomeka Reid o fulgor de pizzicatos escala afora, para o saxofone tenor de Lewis fazer da vibração um lugar transcendente rompendo a urdidura sonora deixada das cordas, que retomam o espectro caloroso e intrigante com o contrabaixo em arcadas de Silvia Bolognesi, para dar espaço, tempo e ritmo às contundentes cadências desenvolvidas pelas baquetas de Chad Taylor. Um tema feito de uma certa reinvenção de swing, que fala de todos(as), porque são todos(as) quem vão e servem a música pelas vozes de cada um(a) — como acontece num coro gospel, em que também se dança. Para fechar, “Elijah Rock” e “Were You There”, que é despontado com um absoluto solo de contrabaixo com um inesperado mas oportuno coro de seres coaxantes, residentes do lugar e que agradecem assim a companhia que as noites de música trazem. Sim, nós estamos aqui e estão elas neste tributo que, como refere Lewis: “É realmente uma conversa a três entre Mahalia, a minha avó e eu.”
O quinteto volta a subir ao palco do Anfiteatro ao Ar Livre para reforçar “que não se desista da música ao vivo, dos concertos”, e desde a voz de primazia de Brandon Lewis que é o seu tenor partem em despedida com “Precious Lord”, um derradeiro tema gospel, com arranjo para a linguagem jazz que este quinteto e as suas capacidades transformadores demonstram com destreza surpreendente. A floração que este jardim recebeu deste quinteto de lírios vermelhos campanulares foi a sublime forma de perfumar e radiar beleza, como mote maior para o que se irá ver e ouvir em seguida.