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Fotografia: Rafael Freire
Publicado a: 21/12/2020

Depois de BEST DUO ao lado de FBC, a jovem rapper estreia-se a solo no formato longa-duração.

Iza Sabino: “Glória é alcançar um nível de felicidade e harmonia”

Fotografia: Rafael Freire
Publicado a: 21/12/2020

Já está provado que a cena mineira do rap tem dado alguns dos frutos mais poderosos do hip hop brasileiro nos últimos anos. A partir daí surgem os mais variados nomes que se destacam neste momento, passando por Clara Lima, Djonga, Sidoka, Chris MC, FBC e outros que formam um panteão de versatilidade de sons e rimas. É o caso de Iza Sabino.

Fruto da diversidade de Belo Horizonte, capital de Minas Gerais, Iza Sabino não escapa à regra: a mulher no rap tem de fazer duas vezes mais e duas vezes melhor (felizmente para nós, fãs de rap, porque temos acesso a obras com outro nível de qualidade, e infelizmente, uma vez que é a confirmação de quanto a indústria é sexista e selectiva).

Em 2014, a rapper mineira já estava presente nas batalhas e já lutava contra a timidez muito típica dos mineiros. Dois anos depois, pôs a cara para gravar o seu primeiro som e, em 2017, juntou-se ao maravilhoso colectivo Original GE, construindo uma relação de amizade com os nomes acima referidos na cena mineira. Sabino também faz parte do grupo Fenda, ao lado de Paige, Laura Sette, Mayi e DJ Kingdom.

Agora, apresenta o seu primeiro álbum em nome próprio, Glória. O disco, com beats assinados por Coyote Beatz, foi construído a partir das experiências da artista como mulher negra e LGBTQIA+ numa sociedade racista e patriarcal. O Rimas e Batidas trocou algumas ideias com MC:

“Encontro-me todos os dias… Todos os dias aprendo algo diferente. Sou uma mulher de 22 anos. Adoro saber sobre a vida, sobre a música, tudo o que envolve arte, sempre me interessei muito. Estou curiosa, sou muito calma e compreensiva. Glória é alcançar um nível de felicidade e harmonia. Um estágio em que te sentes bem, em que te sintas realizado. Esta é a verdadeira Glória para mim: é procurar a luz, a solução das coisas, saber entender as coisas, ser melhor e aprender.”

Ao escutar o álbum, a primeira sensação é ouvir uma explosão real de um amigo que tem lidado com muito ao mesmo tempo. É sincero, é íntimo e muito mais, é corajoso expor esta vulnerabilidade, porque é isso que cria laços com as pessoas. Segundo Iza, o processo criativo estava bem alinhado com o que ela vivia na altura: um turbilhão de coisas, como todos nós, que se intensificaram pela pandemia (e pela total falta de perspectivas sobre ela no Brasil).

“Quando se cria um álbum, é importante que se tenha uma história. Cada faixa é um processo e uma história. Acabei por fazer sons a dizer-me o que me estava a acontecer e isto estava a gerar esta história. Este álbum foi muito importante para mim porque era um diário, sabes? Coloquei no álbum tudo o que pensava, tudo o que reflectia, todas as minhas dúvidas e tornei uma coisa muito pessoal. Acho que foi isso que o tornou tão sincero e foi por isso que todas as pessoas se identificaram com o que eu disse. Estou a falar de relações abusivas, relações abertas, racismo. Estas são coisas que já passei que as pessoas se identificaram. Pus as ideias frescas. As coisas estavam a acontecer e eu tenho estado a escrever e a fazer os rastos. Este processo foi uma válvula de fuga. Por muito que passasse por estas situações difíceis, transformá-las em música e ver que era um trabalho bonito era como: pelo menos algo destes assuntos por que passei valeu a pena.”

A timidez é visível no modo de falar de Iza. Olhos expressivos e voz macia de menina contribuem para isso, mas as coisas mudam muito quando se tem um microfone na mão. A timidez dá lugar ao empoderamento e ao desejo de ver as coisas mudarem.

“Sou muito tímida para falar sobre a minha vida, dar a minha opinião e até me perco um pouco às vezes para falar com as pessoas. Mas quando chega a hora de escrever, sou muito mais aberta e forte. Falo muito, deixo de lado as ideias e sei como colocar muito bem aquilo de que quero falar de forma objectiva.”

O álbum perpassa muitos temas sociais e políticos e um deles é a relação afectiva entre duas mulheres. Ocupar este espaço é fundamental para fazer rap ainda é um movimento menos sexista. Muitas pessoas ainda tornam visível a existência destas pessoas. Clara Lima, por exemplo, agenda isto, mas mesmo assim, continua a ser um assunto que não é tratado com o devido respeito. E, claro, isto reflecte-se na forma como as faixas são produzidas.

“Tudo foi produzido de uma forma muito leve. Gostava de produzir todas as faixas, porque em cada uma delas fiz um flow diferente, tive uma ideia diferente, uma métrica diferente, variei as minhas vozes para que cada um tivesse esta experiência. As quatro canções sobre a relação do álbum eram para a mesma pessoa, para que possa ver como tudo nadava e como cada hora era um problema diferente para se falar. Tinham picos e mais picos, alguns momentos mais optimistas e outros estáveis nesta relação. Foi difícil para mim escrever. Foi uma explosão. Em todas as faixas sobre relacionamento mostrei as minhas ideias e deixei o público decidir quem estava certo e quem estava errado na história.”

Desde o lançamento do BEST DUO, Iza chamou a atenção de várias e várias pessoas para a capacidade de interpretar, criar personagens e vozes dentro de uma canção. Às vezes até pensamos que há participações na música, mas não. É apenas talento, de qualquer forma. Iza explica que foi durante a criação do BEST DUO ao lado de FBC que percebeu o que podia fazer com a sua voz e toda esta versatilidade.

“Desencadeei muitos outros caminhos depois disso. Agora posso elogiar em qualquer tipo de batida, de qualquer tipo de género. Posso fazer uma música com uma voz mais alta ou fazer uma canção, não sei, da maneira que acho que se encaixa dentro da batida. No BEST DUO tive tantas variações de voz, toquei várias personagens diferentes e podia ter uma visão mais ampla musicalmente”

Como se escreveu no início deste texto, o nível de qualidade das mulheres neste ambiente é sempre maior. Normal nunca é suficiente quando se trata de mulheres no hip hop. Em BEST DUO, por exemplo, a MC até teve o seu nome apagado em alguns canais que repostaram os sons. Outras vezes, foi dada como participação, apesar de também ser autora e produtora. Seguindo esta linha, as participações no álbum Glória também chamam a atenção não só pela qualidade, mas por serem extremamente consistentes com tudo o que Iza prega nos seus sons: poder e independência para o nosso. Tasha & Tracie e Bivolt são mulheres fortes, talentosas e independentes na gestão da música, bem como Iza.

“Sempre acompanhei o trabalho de Bivolt, sempre gostei muito do trabalho e da forma como se expressa. Com este álbum, surgiu a oportunidade e encontrei o rosto dela para participar da música. Ela é super expressiva, muito louca no bom sentido, tem aquele jeitão original dela, por isso foi a escolha perfeita para interpretar a ‘tóxica’ na música ‘Imaginei’ [risos]. O tom de voz dela dá muito para entender isso. Ela ouviu o guia antes, adorou a ideia de ser a aberração da música e foi-se embora. Tasha e Tracie, por outro lado, estou com elas desde quando eram apenas DJs e sempre admirei a sua originalidade e como se expressam. São muito brutais, não se importam com o que os outros vão pensar, e isso fez muito sentido na música ‘Pretas na Rua’. Abraçaram a ideia, fizeram a letra acontecer e adorei o resultado.”

Não se pode negá-lo: uma boa parte do público do rap é tão acomodado e pouco habituado que quando vêem uma história sobre mulheres nem sequer têm a curiosidade de abrir e ler, o que dirá partilhar e ajudar a impulsionar as mulheres. A desculpa é sempre a mesma: Não conheço muitas mulheres que rimam”.

No entanto, hoje em dia é muito fácil descobrir e ter acesso a mulheres que têm muitas batidas, audiovisuais, rimas e quase sempre, com um nível técnico superior ao de muitos MCs lá fora. Porque, se a colecção é duplicada, assim como a qualidade, e a maioria das mulheres estão plenamente cientes disso. A questão é, como mudar este cenário, então?

“Trocando uma ideia com as mulheres da Fenda, chegámos à conclusão de que esta pergunta deveria ser feita para os rapazes. ‘O que devem fazer para reduzir esta lacuna, já que sabem melhor do que ninguém que os trabalhos feitos por mulheres são invisíveis?’ Fazem o seu caminho sem se preocuparem com isso. Sabendo a força que têm, se juntassem tudo para realmente olhar e ajudar as minas seria totalmente diferente. A luta é diária, sabe? É algo que temos de continuar a falar o dia todo, insistir, perguntar. O mais importante de tudo é que o peguemos e o façamos nós mesmos. Nunca dependa de alguém para nada. É criar a sua independência e crescer num movimento de mulheres. É algo que tento fazer dentro do rap: mostrar que posso, mostrar que sou e que também posso estar entre os melhores.”

E certamente já está, Iza. Parece que a glória chegou de vez para a MC.


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