É difícil mapear o vasto território em que Iúri Oliveira se move musicalmente: entre estúdios e palcos, encontramo-lo a oferecer luxuriantes sombreados percussivos a projectos de jazz e pop, de música africana e de raiz popular portuguesa, com o seu nome a despontar em fichas artísticas de projectos liderados por gente como Bruno de Almeida, Eduardo Cardinho ou Raquel Martins, para mencionar apenas alguns dos que têm sido captados pelo radar amplo do Rimas e Batidas.
Músico generoso na forma total como se entrega a cada desafio, Iúri é igualmente mestre de subtilezas infindas, capaz de no mais pequeno pormenor, recorrendo a peles e madeiras, a metais, a água e a sementes, trazer os sons de uma natureza real ou imaginada para dentro de qualquer contexto. E o seu domínio do groove é absoluto, característica em que pode convocar a sua formação nas claves afro-latinas para adicionar balanço a qualquer projecto, em qualquer contexto, em todos os tempos.
Agora, Iúri Oliveira apresenta o seu próprio Manifesto, trabalho solo em que se coloca no centro de uma floresta de instrumentos que manipula para desenhar ambientes, usando a totalidade do seu corpo: os membros de que se socorre para conjurar polirritmias intrincadas, mas também a voz, que debita palavras significantes que aprofundam ainda mais a sua particular arte.
Esta sexta-feira, dia 10, Iúri Oliveira ocupará o centro da sala SMUP, na Parede, ocasião que servirá para aresentar formalmente o seu Manifesto que tem edição em vinil e distribuição nas habituais plataformas de streaming.
Este discofoi gravado no Musibéria, numa residência que eles mesmos te propuseram. Mas isto foi apenas, digamos assim, a oportunidade que te possibilitou a sua gravação. Imagino que esta música já existisse na tua cabeça há mais tempo. De onde é que isto nasce?
O César, que é quem dirige há muitos anos a Musibéria… Eu tinha ido lá ver um concerto do Tiganá Santana, um artista que eu adoro, e depois o César veio com uma ideia: “Oh Iúri, não queres cá ficar? Onde é que vais agora?” E eu: “Olha, vou voltar para Vila Nova de Milfontes e depois vou para Lisboa.” Ele disse: “Não. Fica aqui a jantar connosco.” E assim foi. Ele é que me foi, digamos assim, atiçando. Estava mesmo a lançar a casca de banana para ver se eu escorregava [risos]. Disse-me: “Adorava que alguém viesse com uma cena a solo só de percussão e bateria. E eu: “Pois, pois.” Estava assim, meio a namorar. Até ao ponto em que ele se virou mesmo assim: “Olha lá, tu não queres vir cá gravar um disco a solo, apoiado por nós?” E eu: “Oh César, querer, quero! Mas como é que…” Ele explica-me: “Estamos em Julho e nós, basicamente, tiramos férias a meio de Agosto e a partir de Setembro começamos a tratar disso para cá vires em Janeiro. Ficas aí 15 dias — metade são para criar, metade são para gravar.” E eu: “Opá, está bem!” Fomos idealizando as coisas e eu fiquei ali com o bichinho, mega ansioso e mega nervoso. Mas passado uns dias já estava tranquilo. E o que é que aconteceu? Quando eu cheguei lá — e acho que isto é mesmo uma característica minha — ia mega focado e não tive momento de criação nenhum. Eu fui com tudo na cabeça! Tinha um placar com tudo o que eu queria fazer dividido por dias, e cada dia fazia um check das coisas. Eu tinha mesmo tudo organizado na cabeça. Basicamente, fui agarrar em coisas, ideias que eu estou farto de gravar com o meu Zoom — estou sempre a gravar sonoplastias, ideias, conversas, sons… Eu guardo essas coisas para depois ver o que consigo fazer com elas. Fui a uma data de recolhas que eu já tinha feito e pensei: “Ok, tenho aqui bastante material, vou seleccionar isto, isto e isto. Fecho esta ideia, acabo de compor aquela, vou agarrar em melodias antigas que eu tenho de coisas como mbiras… Vou reunir isto tudo.” Portanto, quando eu cheguei lá, eu já ia… Eles até ficaram: “Mas ó Iúri, tu já vens com tudo pronto?” E eu: “Sim. Isto é só meter a gravar. ‘Bora!” Eles ficaram super admirados, porque supostamente aquilo iria servir também para a criação. E acabei também por lá criar algumas coisas, a “embrulhar” o que já tinha, mas eu já sabia aquilo que eu queria fazer. Uma coisa gira — que tu podes escutar tanto no disco como no concerto — é que entre cada faixa há sempre um interlúdio com umas sonoplastias. Uma das sonoplastias que apanhei é de um pastor que andava todos os dias a passear as cabras por lá. No primeiro dia, parei lá o carro para descarregar o material — fiz umas oito viagens para descarregar tudo [risos] — e o pastor estava lá, encostou-se ao meu carro e começou a falar da chuva, da água… Eu pensei: “Tenho de meter isto a gravar.” Liguei o gravador e fomos falando. Podemos ouvir isso num dos interlúdios que eu tenho. Portanto, eu fiz várias recolhas de sonoplastias — as cabras dele, as águas, o ar… O álbum é um continuum, está todo ligado, não há silêncios. O que liga os manifestos são os pequenos interlúdios que eu fui fazendo a partir de recolhas.
Há aqui uma coisa que eu acho que é importante. Tu tens construído nome enquanto músico acompanhante, enquanto pessoa que se integra em projectos alheios — seja em Criatura, seja com o Eduardo Cardinho, a Sara Tavares… Tu és aquela pessoa que é chamada para preencher espaços, para acrescentar a tua magia especial. E, de repente, dás por ti sozinho, num contexto completamente diferente. Isso faz-te activar aí algumas sinapses bem diferentes daquelas a que tens de aceder quando te chamam para te encaixares em projectos com outros artistas. Sentiste que trouxeste para aqui coisas que não tinhas explorado antes?
Sim. Em modo de brincadeira, eu costumo dizer que neste álbum coloquei tudo aquilo que os outros projectos não aceitaram [risos]. Todas as ideias que eu tinha e que foram rejeitadas, meti-as todas aqui [risos]. Digo isso na brincadeira, mas não foi só isso. Há várias ideias que eu tinha, coisas que tinha andado a estudar, que hoje em dia são muito difíceis de colocar em algum lado. São pequenos riffs, pequenas melodias, pequenos diálogos, até timbragens. Há timbragens que até são boas para serem gravadas, mas depois, para as utilizar ao vivo, é complicado. Por exemplo, quando trabalho com água. Trabalhar águas ao vivo… Ou é num projecto em que existem recursos materiais para isso, ou então é muito difícil. Trabalhar percussão portuguesa a sério, com uma boa quantidade de percussões portuguesas, também é complicado em alguns projectos — por mais que às vezes peçam, ao vivo não é fácil. Isto parece um bocado clichê, mas eu já estava… Eu fui-me preparando para isto. Eu uso muitas coisas que a minha mãe me diz, porque ela meio que é a minha grande mentora. Ela sempre disse: “Filho, o tempo é um bom Deus.” Ou seja, eu vou-me preparando e o tempo de usar o que preparei há-de chegar. Portanto, eu não tive esse medo. O meu maior medo neste disco — e eu penso que já superei grande parte dele — foi ao início, quando eu, em Janeiro de 2024, estava no Musibéria a fazer conteúdos e a gravar o disco, toda a gente me estava a perguntar: “Então e quem mais vai entrar no disco?” E eu: “Ninguém. Sou só eu a solo.” Depois era: “Mas vais utilizar loops?” São aquelas perguntas que são quase um julgamento. “Mas como assim?! É só isso?!” Aquela parte do “só isso” na frase é que me deixou: “Epá, será que isto vai ser um grande flop?” Mas depois, automaticamente, foquei-me naquilo e: “Este é o meu momento, esta é a minha linguagem. Vou largar aqui o Iúri e tudo aquilo que existe além do que se costuma ver noutros contextos.”
Dá para ver a coisa ao contrário. Este é que é o Iúri 100%, e o Iúri que a gente escuta noutros projectos acaba sempre por ser um Iúri incompleto, por causa da natureza desses projectos.
Essa é uma boa maneira de ver. O Iúri de outros projectos… É mais um Iúri com filtros.
Com filtros, é isso.
Concordo com isso. O disco tem muita coisa íntima minha. Eu já te falei daquele fenómeno da sinestesia. Eu até tive na dúvida em chamar Sinestesia ao álbum. Larguei aqui muita coisa íntima minha. Pensei: “Vou parar e vou-me despir ao máximo. Vou agarrar naquela linguagem que eu gosto mesmo e vou desmembrar isto, transformar isto para ter um início, um meio e um fim.” Fiz isso tudo e tentei ao máximo não fazer algo que não me representasse. Ou seja, não vou fazer um solo virtuosíssimo parecido com aquele percussionista ou com uma determinada linguagem quando eu, se calhar, não sou essa pessoa. Eu trabalhei com o que eu sou e o que eu sei. Respondendo mais directamente à tua pergunta: não foi difícil. Claro que tive de estudar bastante, relembrar uma data de coisas. Por exemplo: “Tenho aqui esta ideia, mas agora como é que vou transformar isto para ter um início, um meio e um fim.” Tive de estudar isso. Eu escrevia, tinha papeis, depois gravava e “ok, isto está a andar.” No outro dia voltava àquela ideia outra vez. Até à véspera de entrar em estúdio, a minha cabeça esteve sempre a trabalhar. Neste disco há um silêncio meu, estão várias linguagens, estão as minhas ansiedades… Num dos manifestos, consegui passar a minha energia da ansiedade para algo bom. Ainda hoje ouço o tema e fico: “É isto que eu queria passar. Não acrescentava nem retirava nada.”
Fala-me desses manifestos. De onde é que isso vem? Como é que tu apontas as coisas nas folhas?
Há um caderno no qual fui sempre anotando as coisas. Às vezes até eram mesmo ideias literalmente narradas: “Eu quero passar para aqui a minha ansiedade, o que é que ela me faz sentir, para onde é que ela me leva, como é que fica o meu coração, em que é que ela deixa a minha cabeça a pensar, como é que me manifesto quando estou com ansiedade.” Por exemplo, eu tenho uma grande ligação com o mar, por ter sido nadador salvador e nadador profissional. O meio aquático é um meio onde me sinto super à-vontade, não me mete medo. Pensei que gostava de passar essa ligação com a água para o disco. Então fui fazer recolhas, principalmente de outros percussionistas contemporâneos que trabalham peças em águas. Percebi que coisas podia fazer, fui agarrar nas minhas ideias e fui trabalhar com as águas. Num dos manifestos quis também largar a minha africanidade, que era uma das linguagens que eu sinto que — tirando a Selma Uamusse e a Sara Tavares — nunca tive tanto sítio para a colocar. A minha formação é afro-cubana e eu sinto que fui sempre colocando a parte de África — aquela cena mandinga, mesmo da terra — de lado, porque não tinha assim muito espaço para a colocar. Fui resgatar coisas antigas que eu tinha, desde breaks… Misturei uma data de linguagens. Fui buscar celebrações iorubás. Logo no “Manifesto 1” tenho uma celebração com vários ritmos das tradições iorubás, chamados oru seco. Há toda uma mistura de ritmos de celebrações — sejam de nascimento, morte, felicidade, libertação… Todos esses ritmos estão lá juntos. O “Manifesto 5” tem parte da minha paixão pelas madeiras e pelas peles — foi uma cena sobre a qual falámos na entrevista anterior que me fizeste. Tudo isso está lá, através de percussão ibérica — a cena de Peñaparda está lá, tal como a percussão portuguesa. No “Manifesto 6” tenho guardado um spoken word com um pequeno solo de percussão a acontecer por cima. Basicamente, esse tema conclui todo o álbum de forma poética, através do spoken word, e fala ali da minha questão com a sinestesia, mas sem recorrer a essa palavra. Todo o disco está colado com esses interlúdios que fui fazendo e achei super giro isto ser um álbum que tu metes a tocar e não existe uma pausa — há dinâmicas.
Há bocado mencionavas que tiveste de fazer uma carrada de viagens para levares o teu equipamento. Tens noção da quantidade de elementos de percussão que levaste para o estúdio?
Tenho alguma noção. Não tenho um número certo. Imagina, quando fui carregar a carrinha, eu não levei nada a mais, naquela coisa do “vou levar isto e talvez use depois.” Eu sabia exactamente o que é que eu precisava. Eu tinha tudo muito organizado, as malas todas divididas por secções de coisas. O que me preocupou não foi o que eu levei, foi o que me fez pensar com as coisas que ficaram para trás. Meti-me a imaginar: “Se eu um dia preciso de fazer uma mudança de casa, vou precisar de, pelo menos, cinco viagens na minha carrinha só para levar o material de percussão, sem contar com o restante material de música.” Há bocado, quando te falei nas oito viagens que fiz para levar o material, foi do carro para o estúdio. Mas a carrinha ia lotada, mesmo muito cheia. É realmente muito material. E esse material é o que vou ter ao vivo no concerto. Eu vou utilizar exactamente o mesmo setup. É claro que, quando gravei as coisas, gravei cada elemento em separado e não em círculo, como vou apresentar ao vivo. Depois tive de transpor isso para um setup que funcionasse num espectáculo. Todo o material que eu usei na gravação é todo o material que eu levo para o palco.
Como é que tu notas isso, musicalmente falando? Fotografas?
Tenho num papel uma lista. Citando novamente a minha mãe, ela sempre me disse assim: “Filho, usa cábulas, porque se uma cábula for bem feita, tu nunca vais precisar dela.” Então eu anotei, escrevi e também fotografei. Mas é muito raro… Eu só vou à cábula quando é para me certificar que “isto está, aquilo está, aquilo também está.” Faço um check. Anotei tudo numa lista, onde também explicava o que é que eu queria cada em cada “Manifesto”.
E como é que isto se resolve ao vivo? O álbum tem uma duração de cerca de 40 minutos. O espectáculo é um bocadinho maior, não é?
O espectáculo está ali com a duração de uma hora, uma hora e cinco minutos. Ele resolve-se como? Então, aquilo é uma ilha, as pessoas estão à minha volta, e eu tenho basicamente três zonas, sendo que duas delas estão mesmo muito juntas e uma está mais afastada, que é a das águas. Eu começo com o “Manifesto 1” para a abertura do concerto, eu estou ao centro e está toda a gente à minha volta. Entre cada peça, tenho um SPD que uso para disparar os interlúdios, porque quero manter essa coisa ao longo do concerto. Acabo uma peça, disparo um interlúdio e dá-me tempo para me deslocar. Quando acaba o interlúdio, arranco logo com outro “Manifesto”, desenvolvo-o todo, quando acaba disparo outro interlúdio… Estão sempre a acontecer coisas e eu estou dentro de uma ilha. Depois há uma parte em que disparo o manifesto daquele senhor alentejano a falar, dirijo-me para as águas e faço ali o “Manifesto” das águas. É um set diferente, porque está no chão, eu tenho de me ajoelhar ali para trabalhar as águas. Depois faço uma pequena pausa, para aí aos 35 ou 40 minutos. É aí que faço o primeiro momento de comunicação com o público. Até lá, é sempre a acontecer, tudo colado. Quando falo com o público, agradeço e falo também do pessoal que está na parte técnica, explico um bocado mais sobre aquilo que fiz no disco. Depois faço um solo, um último “Manifesto”, e, no fim, faço ainda uma ideia que não está no álbum, que talvez vá para o próximo álbum. É uma ideia que eu faço juntamente com o público. Convido o público a levantar-se e a fazer uma célula rítmica de percussão corporal, uma coisa super simples. Eu toco em cima disso juntamente com as pessoas. Vou orquestrando as pessoas. Tudo isso dá à volta de uma hora ou uma hora e cinco minutos de duração.
Nós — e falo das pessoas que escrevem sobre música — temos muito a tendência para, quando descrevemos e discutimos sobre percussão, fazer muito a ligação entre a percussão e a terra, entre a percussão e a natureza, esse tipo de ligações. Mas há, obivamente — pelo menos eu sinto isso ao ouvir o teu álbum —, toda uma dimensão espiritual que se pode adivinhar nesta música. Tu sentes isto também? Há ali uma espiritualidade na música que tu criaste neste Menifesto?
Há sim, Rui. É uma observação muito boa e eu agradeço-te por… Eu sinto que nós, seres humanos, fazemos esta coisa muito naturalmente: nós temos muito esta mania de identificar as coisas e colocá-las em caixinhas, e por vezes temos de aceitar que desconhecemos certas coisas. “Eu não sei o que isto é, mas isto faz-me sentir assim e assim.” E ainda agora, quando toquei nos Dias do Jazz, nas Festas do Jazz, e no Novembro Jazz, tanto com o Cardinho como com o Duarte Ventura, todas as pessoas ficaram muito curiosas e impressionadas. “Uau! Esta percussão eleva de tal maneira a música!” Eu agora sinto que estou a ganhar esse spotlight e eu transportei muito isso para este disco. E eu não ando aqui a dizer a todo o mundo que sou bué espiritual, mas sou uma pessoa internamente ligada aos meus pais, a algo superior no qual eu acredito e que, pelo menos, me faz levantar todos os dias. Eu tento colocar muito isso no meu dia-a-dia, na minha música. Faz-me muito lembrar aquelas bandas de afrobeat, que eles chamam de highlife music. Eu tendo colocar isso no que faço através de todas as timbragens, a parte rítmica. Uma das coisas de que gosto muito no meu espectáculo é que sinto que, em certos silêncios, há ali pessoas a suspirar. Digo-te que, quando isto acontece, faz-me mesmo pensar: “Isto está mesmo no ponto.” E sim, eu levo muito essa espiritualidade e leveza naquilo que faço. É aquilo que falámos há bocado: é um Iúri sem as cascas da cebola, sem filtros.
Arrancas o ano de 2025 da melhor maneira, com este álbum e a sua apresentação. Que mais podemos esperar de ti, mesmo no plano colaborativo, no restantes meses que se avizinham?
Vou fazer a tour com os Santos e Pecadores. Foi uma grande novidade! O Olavo Bilac ligou-me há duas semanas. Tenho muita coisa com o Hélder Moutinho, muita coisa com a Pongo, tenho mais uma data de gravações de discos a acontecer. Vou ter o Manifesto no Festival Impulso. Depois há sempre uma data de outras coisas que vão aparecendo e, às vezes, começa a ser um bocado difícil de enumerar tudo o que vou ou não ter. Porque é realmente muita coisa.
A agenda mexe todas as semanas, não é? O telefone está sempre a tocar, imagino.
Há sempre. Vou ter coisas lá fora com a Lura. Vou ter uma residência artística com a Bluehouse também, em que vamos ser dois percussionistas — eu e a Daniela Antunes — e vamos dar vida aí a umas ideias para três concertos. E pronto.
Tu mencionas o Hélder Moutinho, que é do fado; os Santos e Pecadores, de pop-rock; a Lura, da música de Cabo Verde; tu mexes-te nos terrenos do jazz… Tu vais a todas, literalmente.
Exacto [risos].
Isso significa que tu és um verdadeiro poliglota, falas várias linguagens. Sentes que é também por isso que o teu telefone não pára de tocar?
Quero acreditar que sim. E também porque eu trabalho mesmo bastante para isso. Estou constantemente a aprender. Em 2024, um terço dos meus concertos… Eu tive 122 concertos no total do ano.
Uau. Não há muitos músicos portugueses que possam dizer isso, de certeza absoluta.
Foi mesmo uma tareia este ano. Grande dose.
O objectivo para este ano é chegar aos 150? [risos]
Epá. Se eu conseguir chegar a esse número… [Risos] Eu tive mais dois concertos em 2024 do que em 2023, em que tinha tido 120. Um terço dos concertos foi para jazz. Eu fiquei muito curioso. Foram cenas de jazz com fusão de world músic, coisas de jazz mais alternativas. Eu estou muito habituado a fazer música de “canção” — tens um refrão, tens um verso, a introdução… De repente, a música instrumental é outro… Tu tens de activar um outro ouvido. Tem de haver aquela coisa de, de repente, está só um trio a tocar e eu tenho de esperar porque só entro na parte C da música, entendes? Na canção não, está sempre a acontecer, estou sempre a abrilhantar coisas e a dar dinâmicas. Na música instrumental, é muito importante haver aquele silêncio em que tu não tocas, mas quando tu entras a coisa ganha uma musculatura enorme. Principalmente este ano, a música instrumental deu-me muito arcabouço. Tenho dois destaques que eu gostei muito de 2024. Fiz Martim Sousa Tavares e Capitão Fausto no São Luiz, um concerto que adorei e que foi com orquestra, que é uma coisa que eu também quero fazer. Tenho um papel exposto com todos os desejos que eu quero realizar e todos os dias olho para ele. Esse é um deles. Quero fazer mais coisas com orquestra, porque gosto muito sinto que tenho muito espaço para isso na minha música. Nós fizemos esse concerto em Lisboa, depois eles foram fazer o Festival F com a Orquestra do Algarve, e o Martim mandou-me uma mensagem a dizer: “Ai Iúri, a falta que tu fizeste neste concerto!” O segundo destaque vai para a Festa do Jazz, que fiz agora com o Duarte Ventura, com uma música muito delicada e muito detalhada, onde eu trabalhei bem aquilo. Ao início não estava a ser fácil. Ele escreveu para nós, bateria e percussão, mas ao mesmo tempo deu-nos aquela abertura de: “Eu estou a pensar nisto. Mas e agora? Como é que vocês vão desmembrar isto?” Fazer os ensaios e ver a coisa a ganhar tamanho, a dilatar, e depois o climax final ser ali na Festa do Jazz… Foi um concerto muito bonito e eu fiquei: “Uau!” Faz uma grande diferença ter o elemento da percussão. Fiquei muito contente de ter feito aquela música. Fez-me sentido estar ali.