Voltamos para o último dos dias da Festa do Jazz no Pequeno Auditório, sem que em concerto algum se demonstrasse pequeno demais para acolher o festival que trouxe a comunidade do jazz ao Centro Cultural de Belém e ao antigo Museu Nacional dos Coches, na outra ponta dos jardins. Cabe a reflexão no imaginar um modelo de espaço mais congregador, multifuncional. Houve como que realidades paralelas, por quem esteve a viver a festa nos domínios do Encontro Nacional de Escolas, que aconteceu nas tardes de sábado e domingo, com programa sobreposto aos concertos que tiveram lugar no CCB, e quem optou pela experiência destes últimos. Importa referir os muitos músicos presentes na Festa pelas escolas, a saber: ESMAE (Porto), Conservatório da Madeira, JAM – Jazz Academy of Music, Escola de Jazz do Barreiro, Curso Profissional de Instrumentistas de Jazz da Escola Artística do Conservatório de Música de Coimbra, ART’J – Escola Profissional de Artes Performativas da JOBRA, Universidade de Évora, Universidade Lusíada de Lisboa, Escola Artística de Música do Conservatório Nacional, Escola de Jazz Luiz Villas-Boas – Hot Clube de Portugal e a ESML. Toda uma comunidade presente, que será em grande medida a comunidade do futuro mais próximo, no plano criativo resultante da formação jazzística. Isto quando muito se vai falando, entre concertos ao longo da temporada, aqui e acolá, onde estão os músicos em formação para ver e ouvir o jazz de hoje em palco. Lembrando que há salas e clubes, com programação regular de jazz onde a entrada é gratuita para muita desta comunidade ao longo do ano, parece contudo faltar disponibilidade para mais uma sessão de música nos dias do ensino-aprendizagem.
O programa de concertos começou com um projecto que se vai consolidando — JAZZOPA. Como nas últimas duas edições da Festa do Jazz, este colectivo de emergentes músicos e músicas abre as festividades do derradeiro dia. Vai na terceira formulação, é um grupo de trabalho e formação que se renova a cada ano. Dele fizeram parte músicos que hoje têm expressões próprias, lembramos a propósito Débora King em SAMALANDRA, ou Tom Maciel em Cíntia. Em cada edição anual, a JAZZOPA renova-se, numa metodologia de trabalho revelando novas autorias numa pedagogia com curadoria conjunta da Sons da Lusofonia e da OPA – Oficina Portátil de Artes. Um espaço de criação onde se encontram jazz, hip hop e spoken word para, como melhor definem, uma “construção de linguagens criativas onde as artes se conjugam à intervenção social, para uma mudança de práticas que diminuam as desigualdades crescentes na nossa sociedade.” Ao placo sobem, na formulação 2024, Razy (voz e baixo), Nitry (rap), Mariana Bonito (spoken-word), Francisco Bettencourt (saxofone), André Silvestre (trompete), Gonçalo Diogo Morais (guitarra), Rodrigo Lima (guitarra e baixo), João Pedro Melão (teclas) e Fillipe Padrão (bateria). Uma generosa e talentosa formação alargada, disposta e muito bem disposta, comunicante e, sobretudo, entusiasmante. Da prestação guardamos muita da palavra — do doce ao acutilante, em português ou crioulo, ora dita, rapada, ora cantada. A forma está definida — um garante —, porém é no recheio, no interior dinâmico e mutável, que se encontra o mais precioso valor, como na máxima que nos diz sobre a forma e o conteúdo. Musicalmente encontramos em JAZZOPA uma lição em curso do que um dia nos ensinaram outros mestres, de Madlib a James Dewitt Yancey (aka J Dilla), desde então prosseguem em legados como este.
Wajdi Riahi Trio é a primeira das escolhas em palco como proposta programada pelo músico e compositor João Barradas. Tal como Mariana Dionísio, no dia anterior, o músico assume a função curatorial. Um novo exercício pleno no resultado. São, aliás, de Barradas as palavras trazidas “na procura de um programa abrangente, com estéticas descoincidentes”. Riahi é um destacado pianista e compositor na cena jazz belga actual, muito devido ao prodígio e à candura, toca pairando, num sentido rítmico como num assobio planante, literalmente assim escutado a certo momento do concerto. Faz-se acompanhar por Basile Rahola no contrabaixo e Pierre Hurty na bateria. Este trio traz um segundo disco, Essia, recentemente editado pela Fresh Sound, na linha New Talent. Um concerto muito centrado neste registo e de onde se escutou esse lado trazido, entre uma cultura árabe transposta à contemporaneidade. Um alinhamento de melodias feitas na herança de Stambeli, como estilo musical do norte de África, marcado pela chamada e resposta, uma busca em permanência, virada ao sentido da devoção espiritual, da cura através da cultura ancestral. Essa ancestralidade que se torna concreta com a referencia musical à cultura Gnawa, como “Hymn to Stambeli”, para o qual Rahola retempera o contrabaixo ao ponto de o fazer soar com se um guembri fosse. Tema longo, justamente alinhado nessa tradição de um certo alcance do transe. “Essia” e “Nawres” são também os nomes da mãe e irmã de Riahi, duas mulheres marcantes na sua vida, e foram temas de inspiração superior para nós. Em “Nawres” há um piano solo assobiado em simultâneo e Rihai eleva em mestria a música que transporta dentro de si. É um concerto feito de estados alcançados, num dos momentos maiores e sublimes dos dias de Festa do Jazz. Um trio que desenhou pontos iluminados. E ainda guardamos “Free Point” na memória, o inédito que serviram prontamente na sua presença em palco.
João Barradas que tem para abrir, no par de concertos da noite, a carta branca com que convidou o compositor e vibrafonista Duarte Ventura ao programa. De Barradas fica a menção a Ventura como músico de uma “linguagem actual e uma capacidade de composição fora do comum.” Duarte que traz como resposta ao convite uma peça em estreia, “Reperio”, para a qual expande o seu recente quinteto formado por Miguel Valente no saxofone alto, Miguel Meirinhos no piano, Zé Almeida no contrabaixo e Luís Possollo na bateria, com as duas vozes de Joana Raquel e Marta Rodrigues, Adéle Viret no violoncelo e Iúri Oliveira na percussão. Desta estreia ouviu-se como que um sonho em partilha, e como no contar dos sonhos a partes concretas retomadas, explicitas na lírica, e outras mais difusas. Há uma catarse dos sons cintilantes, uma construção subtil preenchida pela vozes que propagam os timbres, do piano à mirabolante percussão, de uma ponta à outra da disposição instrumental em palco. “Reperio” traz esse significado de descoberta e aprendizagem, muito por força das escolhas no eu autoral de Duarte Ventura, que vai revelando primeiramente a sua música através do seus instrumentistas até mais que do vibrafone, mais discreto. Contudo é nos momentos de maior vigor onde se dão acelerações que as lâminas metálicas melhor sobressaem, passamos ao entendido como esclarecido momento descritor desse interior vivido, seja de facto vindo de um sonho ou talvez até transposto musicalmente como assim revelado ao compositor. Retivemos “Coral”, que nos levou a esse fascinante mundo submerso, pleno de formas e cores, sem arredar da ideia o suporte vocal ondulante em brisas murmurado. E como nos bons sonhos haveremos de poder voltar a esse lugar, ainda que saibamos do risco em encontrar o mesmo caminho para o retomar, mas afinal será também por isso há a escrita musical, e esta muito justamente assim permanece para memória futura.
O final da Festa do Jazz, a cada edição, faz-se com o Ensemble Festa do Jazz, assim como a efémera formação faz desse momento a razão da sua existência, renovando-se a cada edição. Relembrar músicos e músicas que lhe deram nome é um exercício exaustivo, sinal de vitalidade e perseverança desta existência. Desta feita, coube ao saxofonista alto João Mortágua conjurar a formação, convidando Bernardo Tinoco para os saxofones tenor e soprano, Clara Saleiro para as flautas, José Diogo Martins para o piano, Francisco Brito para o contrabaixo e João Pereira para a bateria. Num mais que convite para formar o ensemble houve um pedido para ser tocada uma composição de cada um como estreias. Desse audaz requinte tivemos a oportunidade de somar ao desempenho instrumental de cada músico uma autoria composicional. Para o efeito ouvimos, como numa recolha que assim melhor descreve cada um(a) presente, na diversidade, “Epitáfio” de Diogo Martins, “Dead Can Dance” de Mortágua, de Bernardo Tinoco “À Noite Faz Sombra”, seguido de “Christine” de João Pereira, para depois entrarmos no mundo “PP – Peter Pan” de Clara Saleiro, e para fecho de programa e festival, um novo tema de João Mortágua em “Nipone”.
Todas as vozes e ideias contam, afinal é disso feita uma comunidade, neste caso, sejam elas mutáveis, em combinações, para que se mantenha infindável o campo das possibilidades na música e nas expressão das linguagens.