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Fotografia: Manuel Abelho
Publicado a: 14/01/2025

Um músico em entrega profunda à visão plena da sua arte.

Iúri Oliveira na SMUP: um manifesto, duas ilhas e um sem-fim de ressonâncias

Fotografia: Manuel Abelho
Publicado a: 14/01/2025

Uma sala com um mundo no centro, afastado do palco, próximo das pessoas. Foi assim que se apresentou a SMUP, na Parede, na noite da passada sexta-feira. A mise-em-scène servia a apresentação de Manifesto, álbum a solo de Iúri Oliveira, incansável percussionista que, desta vez, assomou ao âmago da plateia vindo de um habitual espaço mais recatado do palco, como tão frequentemente acontece quando é parte de um colectivo, de algo maior.

Na já mencionada plateia, em cadeiras e almofadas dispostas no chão que circundavam duas “ilhas” de percussão, posicionavam-se, com total atenção, família, amigos, fãs e, naturalmente, aliados de distintas missões musicais: de Branko e Edgar Valente (Criatura, Bandua) a Selma Uamusse, de David Pessoa, Francisco Rebelo e João Gomes (dos Fogo Fogo) a Ana Moura e Pedro Mafama, artistas com quem o percurso de Iúri Oliveira se tem de alguma forma cruzado, o que nos diz muito da amplitude do seu raio de acção artístico.

As tais “ilhas” de instrumentos: na primeira, múltiplos tambores de diferentes culturas, conchas e chocalhos, numa escultura bem iluminada de madeiras, peles, metais e outros materiais da natureza, uma espécie de densa floresta capaz de gerar — assim pudesse encontrar mãos (e pés…) hábeis — uma panóplia infinda de sons, de cadências, de texturas e timbres, tão ricos como o mundo de vários continentes que representam, de África às Américas e daí à Ásia, Europa e mais além — afinal de contas, o adufe convive bem com o djembé ou o cajón; na segunda, duas grandes taças com água e diferentes objectos ocos, ressoantes — como se depois de nos levar através da floresta densa, Iúri propusesse um mergulho nas águas límpidas de um lago.

O extraordinário álbum que assim se apresentou na SMUP (e que mereceu edição e vinil, disponível nessa noite) tem por título Manifesto, uma designação que sublinha a afirmativa postura de Iúri Oliveira, um percussionista que tem algo de importante para dizer, claramente. Mas, e tendo em conta sobretudo o concerto, bem poderia chamar-se Meditação. Porque é disso que se trata. Iúri dirigiu-se ao centro da plateia da SMUP com o passo certo e determinado de quem se prepara para um ritual, todo ele concentração e nervo, uma mola humana prestes a libertar uma considerável quantidade de energia sonora. E assim foi. A viagem começou tranquila, como uma invocação a entidades de outros planos espirituais. E, de facto, uma certa energia foi unindo os presentes, que, nos momentos de transição entre “manifestos” — respeitando o formato do álbum em que surgem algumas gravações de campo feitas durante uma residência artística em Serpa —, foram fazendo eco dessa energia recebida, soltando entusiasmados sinais verbais de uma sintonia profunda.

Iúri Oliveira é um consumado poliglota, capaz de na sua arte rítmica avançada falar idiomas de muitas Áfricas, capaz de desenhar diante dos nossos olhos densas folhagens de florestas tropicais ou de inóspitas paisagens, de nos transportar até Cuba ou Brasil, seguindo as rotas de diásporas forçadas no passado para assinalar uma vitalidade presente, generosa e aberta. E faz isso recorrendo à totalidade do seu corpo, mãos, pés e boca em sincronia absoluta, entre materiais que se percutem ou sons de pássaros que se desprendem dos lábios. Na verdade, Iúri é o seu próprio instrumento.

Num segundo momento do concerto, depois de uma emotiva comunicação com o público em que agradeceu, sobretudo, à família — que esteve presente (era também noite de aniversário do músico) — , Iúri mergulhou as mãos para extrair da água contida nas grandes taças mais um envolvente conjunto de padrões e cadências de líquida e transparente fluidez. Na taça de acrílico, diferentes garrafas de metal prestaram-se a ser percutidas gerando cristalinos sons; na outra taça, mais pequena e metálica, uma vasilha oca de madeira permitia retirar sons graves e profundos que pontuaram a longa viagem em que a plateia voluntariamente embarcou.

E em ambas as ilhas, a diferenciação entre instrumentos captados de forma íntegra e sem interferência electrónica e outros submetidos a processamento através de diferentes efeitos, gerava um autêntico arco-íris tímbrico, remetendo para paisagens sonoras próximas do dub, de funda e imersiva ressonância. Um prodígio que embalou a audiência presente e a fez levitar até uma outra paragem. No final, a certeza de que se presenciou um músico em entrega profunda a uma visão plena da sua arte, num manifesto de multicultural riqueza. Iúri Oliveira é um mestre percussionista e todos ganhamos em seguir-lhe os passos.


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