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Fotografia: Sebastião Santana
Publicado a: 06/04/2023

(*soa o alarme de incêndio*)

Isaiah Rashad no Lisboa ao Vivo: 20% de um 10/10

Fotografia: Sebastião Santana
Publicado a: 06/04/2023

É ao entrar pelas portas do Lisboa Ao Vivo, que tanto se assemelham às de uma garagem (estranha e perfeitamente arquitetadas para o que ali se viveria) que nos cai a ficha: há muito que se ansiava pela estreia de Isaiah Rashad em Portugal. E com data marcada para 1 de abril, no meio de várias oficinas de carros e sem grande sinalização, o cenário parecia digno do dia das mentiras; mas, para nosso deleite, o concerto aconteceu mesmo e, ignorando qualquer aviso de que não se deve acender lume em sítios como oficinas ou bombas de combustível, o artista veio pegar fogo ao local, sem dó nem piedade, pela mão da sempre amiga Versus, que seja em Dia das Mentiras, Páscoa, ou Dia de São Valentim, trata os hip hop heads sempre como se fosse Natal. 

Mas as labaredas levantaram muito antes do protagonista da noite marcar presença em palco; DJ Spot, em concordância com a imagem de uma casa em chamas que se fazia notar por detrás da booth -alusivo ao álbum The House is Burning -, entendeu a tarefa de incendiar uma sala cada vez mais cheia e fê-lo como quem pede um copo de água ao diabo e o bebe sem cerimónias. Parecendo ler a mente de quem por lá se encontrava, não hesitou em passar faixas que tanto nos dizem: de “Rockabye Baby” de Joey Badas$$ e Schoolboy Q, a “Who Dat Boy” de Tyler the Creator, passando pelo nosso anjo Mac Miller com “Don’t Trip” e chegando até a soar o hino “What You Won’t Do For Love” da recentemente falecida lenda, Bobby Caldwell, a atmosfera já crepitava de expectativa; e após um compasso de espera, que se transformou todo ele numa festa, os ecrãs do palco incendiaram-se por completo e apresentaram um reminder importante de sublinhar, personificado nas redondas letras amarelas, “TDE”: estávamos prestes a experienciar um concerto de um artista da Top Dawg Entertainment e o entusiasmo que advinha dessa realização era palpável.

Sem desiludir, com a mesma pujança e mantendo toda a vibe orquestrada pelo DJ, o tão aguardado cometa, de seu nome Isaiah Rashad, surge de rompante em palco, acompanhado por níveis absurdos de euforia pela parte do público, com a estamina de quem está prestes a entregar um concerto memorável. Mas eis que se nota algo impossível de ignorar: a voz rouca e cansada do artista, no preciso momento em que começamos a fazer as contas e nos apercebemos que este é o seu último concerto, de uma tour deveras preenchida. Embora a sua clara necessidade de constantes reparos da situação ao longo do concerto, determinado a dar destaque ao elefante na sala, a ressalva mais importante foi logo feita após a primeira música: “olhem, aqui entre nós, a minha voz ’tá fodida. Não me importa, isto é para cantarem também e se não sabem as letras, precisam de ser pôr no c-“. Percebem a ideia. 

Assim sendo, a plateia, bem mandada e ainda com mais alento, mostrou o seu maior apoio, à medida que se ia desenrolando uma setlist em constante mutação, mas recheada de bangers, retirados da sua discografia invejável, que enverga obras como Cilvia Demo, a tão presente The House is Burning e The Sun’s Tirade, onde se encontra “Wat´s Wrong”, som que partilha com Kendrick Lamar, e que arrancou  o primeiro e um dos mais impressionantes coros da noite.

Não abrandando sequer por um segundo, com cartas na manga, apresentou aquela que apelidou como a sua favorita, “Menthol”, no meio de tantas outras icónicas que antecederam uma das mais antecipadas e celebradas: “Meal Ticket”, a prova de que o pedido de ajuda para a cantar nem precisava de ter sido feito. Com os fãs ao rubro, os coros não paravam, tendo oferecido outro digno de registo em “Stuck In The Mud”, seguido de um “let’s get it!” como teaser para a “R.I.P. Kevin Miller”, num tom de quem já acusava cansaço, mas estava determinado a dar show – e que fique aqui escrito que o esforço foi notável. Lendo a sala de forma impressionante, o artista retirou um momento para dizer algo que pairava na mente de alguns dos presentes: “Isto sou eu para aí a 20%. Se estão a curtir tanto disto assim, imaginem-me a 100%”. Até voltar, vai ficar só na imaginação, mas consideramos aqui que foi mais que um aperitivo, que abriu o apetite para uma refeição mais fruitiva… É esperar para apanhar esse “meal ticket” no futuro, para termos direito a três pratos completos.

Entrando na parte do espetáculo em que o artista se começa a preparar para a despedida, mas determinado a fazer-nos querer ficar, apresentou uma grande rendição da mais antiga “Heavenly Father”, recebida a uma só voz, mostrando a quantidade de fãs que, certamente, há muito esperavam pelo artista em Portugal. Com a aproximação do fim do concerto, ninguém foi poupado a bujardas, com “4r da Squaw”, alvo de vários gritos de entusiasmo – e o squad, de milhares de pessoas, parecia saber todas as palavras -, algo repetido na seguinte “Shot You Down”, tendo culminado no clímax que foi “Headshots”, uma canção esperada por muitos e cantada a plenos pulmões. Antes de se despedir, cantou ainda “Lay Wit Ya” e, sem nos apercebermos bem, pelo menos para quem se encontrava mais atrás, o rapper abandonou o palco; mas como diz em “HB2U: “Ain’t nothing stoppin’ me but parking fees” e talvez o parquímetro (assim como o combustível) tenha acabado.

Embora a 20%, como foi dito pelo próprio, podemos concluir que a passagem de Isaiah Rashad pelos palcos portugueses serviu de amostra não só para o talento deste rapper, como também para a clara e vasta adesão das camadas mais jovens a concertos deste cariz. Os constantes anúncios da Versus com nomes rebuscados ainda não falharam uma única vez, apostando em artistas muitas vezes esquecidos por grandes festivais ou entidades mais mainstream, e recebendo em retorno casas completamente lotadas, para ver nomes como Conway The Machine, The Pharacyde ou Saba, criando eventos que ficam para a história. Isto leva-nos a nós, amantes da cultura, a olhar para tudo isto com outros olhos, na realização – que embora não súbita, nos toca profundamente – de que o amor pelo hip hop em Portugal não tem parado de crescer desde aquele concerto histórico de Gabriel o Pensador nos anos 90, no Pavilhão Carlos Lopes.

De salas esgotadas com nomes estrangeiros underground, a Wu-Tang e Freddie Gibbs em Lisboa, passando por Oddisee e Kendrick Lamar no Porto ou Travis Scott em Portimão – assim como a oferta cada vez mais notável de concertos de hip hop tuga -, fica claro que se consome por cá mais hip hop que nunca. Resta deixar uma nota de claro entusiasmo para o futuro e declarar um forte apoio à dica já vozeada por muitos que fazem deste género profissão em Portugal. Recorrendo às palavras de Rashad: mais que “4 da squad”, também se pode vir a fazer “4 da locals”.


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