LP / CD / Digital

Isaiah Rashad

The House Is Burning

TDE / Warner / 2021

Texto de João Morado

Publicado a: 27/09/2021

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Conhecem aquela sensação de voltar a ver alguém com quem já não nos cruzávamos há largos anos? À primeira vista, e se esse foi um encontro fortuito, mal reconhecemos o outro, transidos por uma sensação de déjà-vu provocada por sinapses em turbilhão que disparam químicos num circuito neuronal entretanto adormecido. Depois de identificada a pessoa, olhamo-la num misto de espanto e curiosidade: reconhecemos-lhe os traços gerais, mas admiramo-nos com o quanto mudou; está diferente, mais careca, mais gorda, e a pele até enrugou. Finalmente, assim que ultrapassado o desconforto provocado pelo encontro com um novo corpo material, focamo-nos no espírito: aquele que outrora havia sido um conhecido, é-nos agora um estranho; é ele um outro que não aquele que nos foi familiar.

Volvidos seis anos do lançamento de The Sun’s Tirade (2016), Isaiah Rashad voltou a surgir em cena com The House Is Burning, trabalho que, dificilmente, para quem já o ouviu, não provocou uma sensação que se assemelha àquela anteriormente descrita. É certo que a existência espectral do rapper, durante este hiato, não ajudou a suavizar a possibilidade de um choque repentino. Muito se especulou sobre o seu regresso, ou até mesmo se iria regressar. Quem seria, então, este “novo” Isaiah Rashad que agora ouvimos em The House Is Burning? Num especulativo exercício de futurologia, traríamos à mesa as cartas conhecidas: sabíamos que o rapper havia passado por um período de sérias dificuldades económicas e de saúde, já vaticinadas em temas como “Dressed Like Rappers”, onde confidenciava que “High as fuck, lost my wallet”, como que em jeito de premonição dos problemas que o viriam a assombrar. Sabíamos, também, que tinha passado por uma clínica de reabilitação para se curar do vício em álcool e barbitúricos, experiência que certamente terá deixado a sua mácula. E, acrescentando a isso, sabíamos que a paisagem musical do mundo se havia alterado, sendo, portanto, impossível de acreditar que o rapper tivesse estado alheio a essa evolução. Nesse sentido, perante o que agora ouvimos, alguns dos elementos que o natural de Chattanooga, Tennessee, incorpora na sua música não são propriamente estranhos, apesar de que provavelmente não estivéssemos preparados para os ver inseridos nas mudanças implícitas neste regresso. Não é que estas tenham sido necessariamente más ou para pior. O rapper ter-se mantido estático seria indubitavelmente um passo mais arriscado, pouco interessante. Certo é que o Isaiah Rashad do presente não é o mesmo de há seis anos – mas, afinal, quem o é?

Defeito de mistura ou preferência estética, o mumbling que trespassa vários temas de The House Is Burning não pode ser considerado como um traje que assenta propriamente bem a alguém que possui comprovadas habilidades como liricista. Artisticamente falando, essa parece ser uma opção falhada, apesar dos apetecíveis e comprovados retornos comerciais que dita abordagem comporta. Logo na faixa inicial do álbum, o próprio Rashad pergunta: “What am I supposed outside but get rich?”. Se esse é o fim, está no caminho certo, bastando notar que, à data, duas das três faixas que têm mais de 10 milhões de reproduções no Spotify são peremptórios exemplos desta forma de delivery. Falo de “From The Garden” (com Lil Uzi Vert) e “Lay With Ya” (com Duke Deuce), a última merecedora de uma vénia pelo sampling de “Ridin’ N’ Da Chevy” de Three 6 Mafia.



Paisagens mais próximas daquelas a que o rapper nos habitou em The Sun’s Tirade (2016) e Cilvia Demo (2014) surgem, porém, em faixas como “Rip Young”, “All Herb” (com Amindi), “Hey Mista” e “Don’t Shoot”, todos eles temas com mão do produtor Kal Banx, alguém que parece perceber nitidamente o tipo de bases que assenta de forma perfeita na voz de Rashad: beats mellow, muitas vezes mergulhados em low-pass filters, qual DJ Screw submergido num mar de codeína, nos quais o rapper é especialmente competente. Os overdubs e layers de vozes são também uma característica prevalecente, sendo sempre meticulosamente introduzidos, muitas vezes com um delay infinitesimal, quase imperceptível, o qual adensa as atmosferas criadas, colocando-as ao largo de horizontes ébrios e flutuantes.

Outro registo em que, neste álbum, Rashad brilha particularmente nasce quando este opta pelo velho, mas aqui “modernizado” casamento entre hip hop, soul e r&b, o qual que se escuta em faixas como “Headshots (4r da Locals)”, “Claymore” (com Smino), “True Story” (com Jay Rock & Jay Worthy), e “Score” (com SZA & 6LACK). Esta parece ser, aliás, a fórmula musicalmente mais bem-conseguida de todo o LP. Contornos pop como aqueles ouvidos em “Wat U Sed” (com Iamdoechii & Kal Banx) são, contudo, francamente desinteressantes, provavelmente agradando a um espectro alargado de ouvintes que não aquele que religiosamente esperou por este trabalho. Já a faixa final do disco, “H2BU”, é como que um amuse-bouche pós-prandial, lírica e sentida, com o rapper a cantar sobre os demónios que o assombram, reiterando até a exaustão “You are now a human being”, como que assegurando a si mesmo a veracidade desta sua nova existência. Não deixa de ser irónico que, para este tema, Rashad tenha preterido os vocais abafados, preferindo, antes, expor-se abertamente e sem filtros, através de uma reflexão especular que mostra aquilo em que se tornou.

The House Is Burning é um álbum desconcertante, de difícil descodificação. O eclectismo de registos e estéticas musicais contidas neste trabalho parece desfavorecer a sua consistência geral, nunca chegando este, devido a isto, a levantar voo, apesar do inegável talento de Isaiah Rashad. Precisamos de ouvi-lo mais vezes. Quando isto acontecer, quer o rapper quer os seus fãs conseguirão consolidar melhor algumas das hipóteses aqui levantadas. Neste momento, Rashad é homo viator, a caminho, em construção. Não sabemos para onde vai, mas agradecemos que, para já, tenha aberto uma janela para a sua actual identidade. O próximo álbum será certamente mais confortável para todos.


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