Já vamos a Sílvia Pérez Cruz, Tristany e prétu. Calma. De antemão, uma missa pela frase “em qualquer outro Verão, isto seria diferente”. Como quem carpe, com a coreografia das palavras, o que o bicho C nos ladroou — não faz mal chorar, OK, mas 2020 já foi outro Verão e não foi diferente.
Portanto, não poderíamos dizer que, em qualquer outro Verão, o MED estaria a colorir as ruas de Loulé com os projectos geralmente electrizantes que perfazem esse gueto da world music. Sim, essa expressão que David Byrne famosamente caracterizou como “pseudomusical” (poderíamos acrescentar anti-educativa), um contentor onde se arrumam os discos estranhos aos ocidentais brancos. Quando visitámos o FMM’Sines 2019, instalara-se uma polémica na indústria sobre preferir uma expressão sucedânea: global music. Ao longo de 2020, ganhou terreno nos GRAMMYs, por diluir as conotações colonialistas do termo — mais certamente por desconhecimento geral do que é a sinonímia. Agora? Agora, dêem-nos concertos, a nós, público humilde, e aos músicos que tanto precisam deles.
Assim se remodela o MED, durante outro ano de excepção (fazendo figas), como InterMEDio. Para a cidade em abstinência forçada, é só um acepipe para um 2022 risonho: um meio-termo entre o cancelamento sumário versus a excrescência de 10 palcos e visitantes na ordem da dezena de milhar. É mais do que isso, como conta ao ReB o director artístico Paulo Silva: são sete noites de espectáculos (dois por cada, 14 no total) montada num tempo-recorde de três semanas (mais rapidamente ainda, em dois dias, se atingiu a lotação esgotada). Sabendo do torvelinho que foi coordenar certificados digitais de vacinação entre artistas vindos da Europa, de África e da América Latina, custa menos aceitar o lugar sentado.
[A genuína farsa de Sílvia Pérez Cruz]
Sílvia Pérez Cruz, crescente vulto no circuito world, testa-nos a paciência. Os arrepios, também. A estupefação, então… Anunciada em português, depois em inglês e finalmente em castelhano, a artista liberta-se da voz como um fardo titânico, um dom que a consome, que nos lega como a herança de uma noite só. Ninguém sabe bem o que fazer com ela, ninguém sabe se quer esse poder. Por isso, sussurra uma sedução pianíssima, grita e revolve, engole com as profundezas de cada corda – sem alguma vez a conseguir expropriar. Como uma Mercedes Sosa catalã, quase mais radical, sensível ao excesso de sombras mas insatisfeita com a permanência do Sol. A voz é sua, para sempre. Hoje, pode ser o nosso abrigo.
Traz a “Plumita” simbólica do último álbum, Farsa (género imposible), em que Sílvia, além de permanecer uma catedrática da interpretação, escreve e compõe principalmente sozinha. Apesar das aparições pontuais de Vestida de Nit (2017), de repertório mais canónico, e os originais de Domus (2016), Farsa é o prato forte do concerto no InterMEDio. Em palco, conta a viagem do “Tango de la vía láctea”: projectada como um monumento de maternidade, leite e sémen, aqui é uma prova de fogo, para as potências caloríficas da sua garganta e das mãos da Farsa Circus Band. O circo: Aleix Tobias na bateria, Bori Albero no contrabaixo, Marco Mezquida no piano, Publio Delgado na guitarra e, last but not least, Carlos Montfort, no violino (por vezes, em repouso nos seus braços, como um ukulele), numa saia e ao desafio com Sílvia pelo maior sorriso.
“Fatherless”, outro original de Farsa, fá-los seguir um rasto pesado – os dedos fugidios de Mezquida – até uma confusão estereofónica. Há ânsia, drama que é nervo desvelado, a instabilidade segura de quem ama, impulso de bicos dos pés que está também no conforto prometido de “Mañana”, uma casinha pronta com a laranjada servida nos holofotes – em que Sílvia e os instrumentistas parecem avisar que o chão está escorregadio. “Não sei fazer concertos de uma hora”, avisa a líder, rindo-se com uma air guitar gozona, à velocidade da luz. Para ela, o tempo dilatou-se, mesmo que apenas en la imaginación.
[Tristany e prétu em tag team]
Na transição para a “encomenda” especial do InterMEDio – é anunciada como um momento de “rÁp” – dá-se um certo êxodo: algumas pessoas dirigem-se aos copos, outras já terão ficado saciadas com Sílvia… Mas perdem o duo dinâmico de Tristany e prétu. É a união entre as barras sísmicas daquele que nos trouxe a trilogia Rapresálias/Rapensar/Rapressão e o “afro-presentismo” sensível, aguerrido e estupendo de quem nos trouxe MEIA RIBA KALXA. “A culpa não é minha, meteram-me aqui/ Esta é a minha prisão, nunca vi grades mas senti”, canta Tristany em “RAPEPAZ ..”, um dos momentos em que desnuda a desconfiança imbutida na sua forma de ver o mundo.
Quase em contraponto, prétu relembra que isso não tem de desmerecer a glória – o contra-senso é o que se aprende num mundo ainda segmentado (como quem diz, segregado não oficialmente). Há ecos das “frutas estranhas” de Billie Holiday, batidas tensionais que eventualmente abrem espaço para funanás de peito cheio, harmonias e frequências curativas, familiares — mesmo se ainda não totalmente refinadas, ou complementares, num sentido verdadeiramente transformativo do material de cada um.
E mesmo quando, da plateia, a serenidade não era correspondida, as mensagens de prétu fluíam com a percussão de Mick Trovoada e Henrique Silva, enquanto a violinista e cantora Suzana, o guitarrista Célio e o percussionista Ariyouok seguravam as meditações soul de Tristany (com nota para as elegantes projeções vídeo de Nuno Trigueiros e Diogo Carvalho). Para os inquietos, Moullinex saca das armas esta quinta-feira.