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Fotografia: Nash Does Work e Vera Marmelo / Iminente
Publicado a: 22/09/2019

Estreias, confirmações e recordações.

Iminente’19 – Dia 3: da surpresa com um monstro reclusivo ao atestado de competência dos artistas portugueses

Fotografia: Nash Does Work e Vera Marmelo / Iminente
Publicado a: 22/09/2019

À chegada no terceiro dia, a imponência do agora recuperado edifício de betão causa um impacto ainda maior com o dilúvio que metia água em praticamente todo o lado, deixando os concertos da tarde (principalmente os que aconteceram no Palco Outdoor) numa posição desnivelada em relação àquilo que se passou com a melhoria do tempo. Atrapalhados por essas condições meteorológicas, não conseguimos assistir aos concertos de Mynda’Guevara, Fred e Vinicius Terra, mas, dando uma passagem pelas stories no Instagram — obrigado, Internet –, percebe-se que não faltou nem público nem energia para se receber nomes que propagam valores como a combatividade, o amor e a união entre culturas.

Por isso mesmo, os Dealema, provavelmente o mais importante grupo de rap português, foram a primeira paragem “oficial” do dia. O quarteto de MCs Maze, Fuse, Mundo Segundo e Expeão e DJ Guze atiraram-se a clássicos (de grupo e a solo — “Brilhantes Diamantes” continua a ser um ponto alto do alinhamento) e foram recebidos com entusiasmo por uma plateia que ignorou a chuva que caiu durante metade da duração do concerto. Numa edição em que Common ensinou como se deve fazer à boa maneira americana — e espera-se que todos os artistas presentes no público tenham tirado notas… –, os autores de Alvorada da Alma continuaram a aula, desta vez em português, ensinando, por exemplo, as melhores formas de se atacar o microfone ao vivo e o que significa estar em sintonia na hora de dar espaço a cada um dos elementos.

Por falar em artistas que tratam bem a língua portuguesa, a próxima paragem acontecia exactamente no mesmo sítio mas protagonizada por L-ALI, um daqueles segredos mal-escondidos do rap nacional que teve direito a subir ao mais próximo que o Iminente tem de um palco principal. Acompanhado por VULTO., com quem forma uma das duplas não-oficiais mais nocivas cá do burgo, e Error-43, duo que tratou eximiamente da parte visual, o rapper passou pela sua já extensa discografia criada entre três colectivos (Colónia Calúnia, Think Music e Superbad), chamou Tilt para “Beka Beka Beka” e Jota para “Baço” e fez questão de esclarecer: “mudei de casa, mas a roupa vem comigo”. Um dado confirmado pelas duas novas faixas que fez questão de estrear em Monsanto: “ZOOMx3” e “Plenitude” — com voz embalada num auto-tune e um balanço completamente fora de tudo o que já ouvimos da sua parte — são pólos opostos que vivem da capacidade de adaptação de Hélder Sousa aos instrumentais do artista também conhecido como Pedro, O Mau e Joah (com co-produção de Here’s Johnny), respectivamente. Tão imprevisível quanto as suas métricas — basta ouvi-lo em “Baba”, “Banghello! (O Gesto)”, “Mosa Rota”, “UAIA” ou “Siri” para perceber do que estamos a falar –, o autor d’O Conto reclamou um lugar de mérito que as visualizações, esse barómetro utilizado para confundir popularidade com qualidade, tendem a ignorar.

Entre o jantar e o próximo concerto no palco exterior, pequena paragem na Cave para ver o enérgico e “chateado” Jair MC a rimar em potentes beats, provando que é mais do que “Não Confio em Ninguém”, tema com mais de um milhão de visualizações que fez furor no outro lado do Atlântico.

“Hip hop tuga, vem ver como os teus filhos estão a crescer”. Depois de Mynda Guevara, L-ALI e Jair MC se terem estreado no Iminente, tinha chegado a hora de mais um produto da nova escola registar a sua primeira aparição no festival curado por Vhils. Sendo aquele que já leva mais anos “disto”, num percurso que até já se tinha cruzado com o do Iminente numa das suas edições em Oeiras, não nos espanta que a sua presença em palco reflicta toda essa experiência acumulada. Papillon apresentou um espectáculo irrepreensível acompanhado por DJ X-Acto nos pratos, cujo som era reforçado com auxílio de dois músicos, que se dividiam entre bateria (Luís Logrado) e guitarra (Miguel Solano). É justo pensar em Rui Pereira como uma versão ainda em construção de Common, seja pelo tipo de mensagem consciente que procura trazer aos seus ouvintes como pela expressividade e à-vontade como reproduz as suas canções ao vivo enquanto deambula pelo cenário e orquestra a banda que o acompanha, intervalando o espectáculo com intervenções viradas para o público que dão a conhecer um pouco mais do seu interior e procuram reconfortar aqueles que o ouvem. Existiram também palavras dedicadas a Slow J, ele que foi o principal ajudante de Papillon a sair daquele “Impasse” que o colocava entre o “conforto” de um grupo de rap com uma carreira sólida e a necessidade de arriscar e ter uma voz que falasse apenas por si. “1:AM” e “Imagina” foram algumas das impressões digitais que cravou também em Deepak Looper e fez questão de partilhar com a audiência do Iminente.

No regresso à Cave havia uma enorme incerteza nas nossas cabeças sobre o que esperar do próximo acto. Por um lado, Jay Electronica tem recebido sinais de aprovação por parte de nomes como Jay-Z, Diddy ou até Gilles Peterson, mas a falta de consistência no seu trajecto não nos permitia elevar ao máximo o grau de entusiasmo que sentimos quando o seu nome foi anunciado para a edição deste ano do Iminente. E se achámos que aquele palco não voltaria a ser “incendiado” após a passagem de Large Professor, estávamos completamente enganados. “Eu represento os verdadeiros MCs”, fez questão de avisar logo no arranque da sua actuação para explicar o uso abusivo do formado acapella ao qual viria a recorrer diversas vezes durante todo o concerto e que funcionou às mil maravilhas. Mostrou-se agradado por dividir o cartaz com Just Blaze na sua estreia em Portugal e celebrou o feito com uma das faixas que criou em conjunto com o produtor de Nova Jérsia. Não precisou de exigir grande coisa do público, que aderiu com naturalidade aos seus versos incisivos — houve quem saltasse, quem levantasse o copo, quem soubesse as letras de cor ou quem esboçasse um sorriso de incredulidade perante aquele “monstro” que estava a segurar no microfone. Lembrou o lendário Mos Def e contou como o autor de “Ms. Fat Booty” havia sido generoso ao deixá-lo subir ao palco durante um espectáculo para recitar uma das suas letras, gesto que passou a replicar nos seus próprios shows e que em Lisboa teve um resultado bastante positivo, com um MC desconhecido a saltar da plateia para arrancar um forte aplauso dos presentes, tal era a ginástica que efectuava com as palavras. No fim, Jay explicou que aquela seria uma actuação que iria relembrar para o resto da sua vida — além de se tratar de uma estreia no nosso país, a mãe morrera há uma semana e o seu aniversário tinha sido comemorado no dia 19 — tendo passado os últimos 10 minutos a cantar no meio do público sem qualquer pudor.

De regresso ao Palco Outdoor para ver a estreia ao vivo de Classe Crua. O alinhamento do concerto seguiu a ordem do disco e o primeiro destaque aconteceu logo na quarta canção, “A Minha Praia”, com o público a reagir à “vibe” de Sam The Kid (que maior parte do tempo se manteve como hype man) e Beware Jack. Uma palavra de especial apreço para o “o gajo mais porco da pocilga”: apesar de se saber o seu valor há bastante tempo, não há dúvida que está na sua melhor forma, apresentando-se sem falhas na dicção e entrega dos complexos esquemas rimáticos que mostra na sua “grande obra“.

O foco está na dupla, mas existem outros elementos importantíssimos para tudo isto correr às mil maravilhas: DJ Maddruga, cirúrgico nos cortes, e AMAURA, voz de veludo de quem ainda se espera muito, fazem parte desta equipa vencedora; Silab (prestação imaculada a “cuspir” o seu verso) e Chullage foram participações de valor acrescentado que ajudaram a abanar os pilares do Panôramico. Sem esquecer também a presença “invisível” ao ouvido de Blasph e Carlos Afonso (aka Este Senhor e Bondage), sentados ao lado da mesa do DJ, um adorno para dar um cenário diferente (e caseiro, supõe-se) à actuação. Não existia melhor sítio para isto acontecer pela primeira vez.

Há inúmeros clássicos do início deste milénio que têm a assinatura de Just Blaze, mas o produtor de Paterson, Nova Jérsia, tem vindo a perder destaque com o passar dos anos, tal é o número de novos beatmakers que vão florindo nos campos do rap. Os créditos em discos como The Blueprint, Late Registration ou Joe Budden ninguém lhe tira e funcionam como convite para marcarmos presença no fecho do Palco Outdoor no terceiro dia do Iminente. A festa teve de tudo: dos eternos “Simon Says” e “Shook Ones, Pt. II” até aos clássicos mais modernos — muitos deles com a sua assinatura — houve também espaço para desconstruir músicas e criar batidas de raiz ao vivo, piscar o olho a novas tendências como o trap, a bass music ou o moombahton e ainda uma visita inesperada de Jay Electronica ao palco para rimar ao vivo “Exhibit C”. Um luxo.


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