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Publicado a: 14/03/2022

Um furacão a trazer catarse.

IDLES no Coliseu dos Recreios: a banda que veio a Lisboa para nos libertar

Publicado a: 14/03/2022

Terminei o artigo em que aqui apresentei os IDLES com a admissão de que seria possível, após o concerto de 11 de Março passado no Coliseu dos Recreios, continuarmos a não entender a banda de Bristol. E, por arrasto (em inversão de razões, mas convergindo no mesmo ponto), que também é difícil entender os Sleaford Mods, grandes detractores do projecto de Joe Talbot. Nas entrelinhas estava também a noção de que este não-entendimento pode até vir de os entendermos, a uns e a outros, bem demais, no sentido em que discutir lugares de fala e o direito que temos ou não a ocupá-los passa tantas vezes por sociocentrismos, egotismos e classismos que dão bem o sinal de quão doentes estão as nossas sociedades.

Os IDLES não são aceites em certos meios por se considerar que um grupo formado por músicos provindos da classe média alta não pode ter consciência política e fazer activismo antifascista e anticapitalista com esse sentido crítico. Obviamente, trata-se de um disparate. Mais estranho parecerá que cinco homens cis-hetero peguem nas bandeiras feminista e queer, mas… e porque não? Como entender a figura do “aliado” nestas lutas? Nada disto é pacífico ou fácil, mas os IDLES vão seguindo o seu caminho e reafirmando o seu estatuto como um dos “melhores grupos de rock ao vivo” na actualidade.

A afirmação surge na promoção do quinteto e em N artigos de imprensa que lhe foram dedicados. À partida, poderíamos achar que não passa de publicidade. O certo é que o concerto dos IDLES em Lisboa foi magnífico, e este ouvidor não hesita mesmo em exclamar, sem qualquer tipo de exagero, que esta actuação foi uma das mais incríveis a que assistiu em toda uma vida de trabalho, preenchida por centenas, se não milhares, de concertos. Por tudo, que não necessariamente apenas por motivos musicais: pelo espectáculo, a energia, a performatividade, o carisma, a comunicação com o público, o profissionalismo, o feeling de divertimento, a importância da mensagem. Sim, os IDLES utilizam todos os clichés e truques do teatro rock, como meterem-se pelo meio da assistência ou controlarem-lhes as reacções a partir do palco, mas fazem-no com uma maestria que só pode suscitar o pasmo.

“A próxima canção é sobre a minha dependência das drogas. Este trabalho, estes amigos (apontou para os restantes membros do grupo) e todos vocês salvaram-me a vida”, desabafou Talbot aos milhares de fãs presentes, em dado momento. A resposta da audiência foi efusiva. A emotividade cria empatia e os IDLES sabem geri-la como poucos. Fizeram-no com temas do mais recente CRAWLER, as histórias tomando o lugar dos slogans, com sucessos mais antigos, como “Mother”, “Never Fight a Man with a Perm” e “I’m Scum”, ou até com covers de temas alheios, por exemplo de Cranberries e… uau… Mariah Carey. Talbot não precisava de cantar os refrões. Deixou isso ao público, em coros espontâneos de arrepiar.

Mas claro que o capitalismo estava ali. As bandas da primeira parte, Witch Fever e Bambara, tiveram condições diferentes daquelas que estavam reservadas para os IDLES: o som estava pastoso, saturado, distorcido. O equipamento dos IDLES e os técnicos destes converteram-no em algo de claro e limpo, com cada pormenor, cada efeito de conjunto (as súbitas massas de frequências) a ouvir-se distintamente. Quem vence na indústria do rock tem mais privilégios. Mas também é verdade que, sendo sem dúvida interessantes aqueles dois projectos, a diferença para com eles dos IDLES foi à partida muito óbvia nesta noite de festa, desde a atitude super afirmativa e a segurança em cena até à forma como todos aqueles riffs e métricas implacáveis nunca falhavam. 

Bem podem estar envolvidos em polémicas, com as ditas a terem ou não justificação, mas o certo é que os IDLES são absolutamente espantosos e vieram revitalizar o rock and roll no que eram as suas premissas originais. As contraculturais e contestatárias logo para começar. Aliás, tem o seu quê de deliciosa ironia esta posição de se combater o sistema capitalista dentro das próprias esquadrias e lógicas processuais do capitalismo. Pode não ser suficiente para o destruir (não é e não devemos ter ilusões quanto a isso; certamente que eles não as têm), mas pelo menos coloca-se o dedo na ferida.

O concerto incluiu uma referência contra a invasão da Ucrânia, com “Danny Nedelko”, e uma chamada ao amor como forma de sanar os conflito existentes um pouco por todo o lado, entre nacões e entre pessoas. Nestes tempos estranhos em que vivemos era o que precisávamos de ouvir. Foi uma noite de catarse como há muito não acontecia, e depois de dois anos de recolhimento era isto mesmo que precisávamos. Os IDLES vieram a Lisboa para nos libertarem, e fizeram-no. Nenhuns políticos profissionais, nem os mais revolucionários, os mais “autênticos” na equivalência da sua fala com a sua condição e a sua vivencialidade, o conseguiriam. O rock voltou a ser rebelde e a mexer-nos com as cabeças e os corpos. Quem diria…


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