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Fotografia: Tom Ham
Publicado a: 07/03/2022

Uma banda de rock que é um portento ao vivo, das melhores por estes dias, mas cuja militância tem sido mal compreendida e contestada.

A estranheza do efeito IDLES

Fotografia: Tom Ham
Publicado a: 07/03/2022

A notícia tem estado a correr: a banda irlandeso-britânica IDLES vai actuar no Coliseu dos Recreios, em Lisboa, no próximo dia 11 de Março. Ouvi-la ao vivo traz naturais expectativas a quem viu os seus já muitos videoclipes e lhes conhece os quatro álbuns editados, e não apenas devido aos méritos musicais que lhes assistem. É ponto assente que o quinteto de Bristol é um dos grandes responsáveis pela presente revitalização do formato rock – vertente punk, ainda que o seu vocalista, Joe Talbot, vá aos arames quando lhe colocam esse rótulo –, mas outro aspecto parece justificar ainda mais a curiosidade gerada: a possibilidade de, finalmente, entendermos ao que vem este projecto.

Não é fácil, e o trajecto dos IDLES tem-se feito entre polémicas e contestações. Algo entra em curto-circuito na relação entre a origem social dos seus membros, a sua imagem pública e a mensagem das canções: simplesmente, as peças não parecem encaixar, e daí a estranheza do efeito IDLES. 

Expliquemos as coisas de vez: temos diante de nós cinco homens cis e caucasianos, com ar desleixado, que passam por bad boys do proletariado, mas que, afinal, são provenientes da classe média e média-alta, tiveram formação universitária e não são tão bad quanto aparentam (sim, Talbot debateu-se com o alcoolismo e a toxicodependência, mas quem não no planeta rock?). Cinco homens cis, caucasianos e burgueses (o guitarrista Mark Bowen, p. ex., é dentista) que compõem temas críticos de todo o establishment das sociedades ditas democráticas e de privilégio branco, incluindo questões quentes como a discriminação das mulheres, a masculinidade tóxica e a rape culture, sendo “Mother” o melhor exemplo deste último e específico alvo. 

Cinco homens que parecem, fisicamente (barbas por fazer, roupas, tatuagens), representar as classes trabalhadoras, que transpiram heteronormatividade, mas comunicam outras sensibilidades pela voz de Talbot (“I kissed a boy and I liked it”, verso de “Samaritans”). Há um problema de correspondências: o que é que, no meio de tudo isto, é autêntico? Qual é, exactamente, o seu “lugar de fala”? Ficamos sem perceber.

A imprensa musical já escreveu rios de tinta sobre o paradoxo violência-compaixão dos IDLES, mas sempre com incompreensão sobre qual das duas coordenadas será a mais ou a menos plausível. A do murro no estômago (com Joe Talbot a dirigir os necessariamente dolorosos embates dançantes dos corpos, na plateia, com um “Are you ready to collide?”)? A do abraço fraternal e quase, quase queer (“Are you ready to look after each other?”)? Onde, nos IDLES, está a realidade e está o teatro, aquele teatro rock que levou Jello Biafra a parar um concerto dos Dead Kennedys que redundou em pancadaria e a lembrar que aquilo que estava a acontecer, a música, era uma encenação? 

O lado “paz e amor” dos IDLES supõe um posicionamento de esquerda, com Talbot a fazer as vezes de um pregador marxista e a lançar slogans ético-políticos algo simplistas, mas com um empenho intervencionista que julgávamos já ter desaparecido deste género musical, salvo algumas raras excepções. Isso fez com que os Sleaford Mods, esta sim uma dupla de raízes operárias e uma dessas excepções, se atirassem a eles com particular virulência. Jason Williamson acusou-os de serem “estereotipados, paternalistas, insultuosos e medíocres” e o caldo entornou. No seu entender, a condição social dos integrantes do grupo de Bristol retira-lhes o direito de falarem sobre o que falam. A questão é debatível (muito mesmo, pois eram burgueses os pais do socialismo “científico”, Karl Marx e Friedrich Engels), mas entende-se o argumento. Os Sleaford Mods vêm do labour, e no quadro da cultura de esquerda inglesa essa circunstância sustenta-lhes o classismo às avessas que professam. 

Mas… e o resto? Cá temos também no caso dos Sleaford Mods homens cis hiper-masculinos e bad boys hetero-patriarcais que, no clip de “Second”, tiveram inclusive a lata de colocar duas mulheres lésbicas a actuar num pub como se fossem suas duplas. Travestismo por meio de doppelgangers? Não, o vídeo é sarcástico, com as figurantes a serem o motivo da chacota, o que é muito obviamente homofóbico. Quanto a insultos não há, como verificam, um lado bom nesta história. Sabemos, de resto, como alguma esquerda pode ser retrógrada. De nenhum outro modo podemos entender uma outra reacção, esta dos Fat White Family, às bandeiras dos IDLES: “A última coisa que a nossa cultura cada vez mais puritana necessitava agora era de um punhado de idiotas da classe média a dizer-nos para sermos simpáticos com os imigrantes.” 



A citação é chocante pelo que contém de xenofobia, mas liguemo-la à seguinte para que faça completo sentido: “Não nos interessa a arte que se propõe salvar a humanidade. A arte é sobre o artista salvar-se a si próprio. Se não virmos um bocado de porcaria na alma do artista estamos a ser enganados”. Pois, individualismo tipo survival of the fittest à parte, a perspectiva até que é válida, pelo menos na medida em que temos de aceitar que nenhuma cantiga, nenhuma pintura, nenhuma escultura, por si só, tem o poder de instigar uma revolução.

Depois dos chavões de cura colectiva no adverso ambiente capitalista dos álbuns Brutalism, Joy as an Act of Resistance e Ultra Mono, os IDLES primeiro devolveram os ataques, algo desastradamente (“I’m nothing”, disse um amuado Talbot numa entrevista ao jornal Observer), e depois gravaram Crawler, saído no final do ano passado e base do repertório que vamos ouvir em Portugal. Neste, o estado de espírito começou a ser outro: “In spite of it all, life is beautiful”. Não podia haver afirmação mais pequeno-burguesa. Em vez de palavras de ordem, a nova colecção de canções conta histórias, tornando-se inevitável entendermos estas como auto-justificações. 

“The Wheel” é o melhor exemplo, sobre um grave acidente de automóvel causado pelo abuso de drogas e sofrido por Talbot: recapitula o passado e exorciza-o, com o presente pertencendo a um rocker sóbrio com uma filha de dois anos, nascida em plena pandemia. Ele pode ter gostado de beijar um rapaz antes desse tão simbólico crash, mas teve depois uma criança com uma rapariga, cumprindo assim a norma que governa o mundo.

Até em termos exclusivamente musicais houve pequenas-grandes mudanças: Crawler é menos punkish do que os discos anteriores, como se assim certificasse um menor nível de activismo, e para tal muito contribuiu a produção do produtor Kenny Beats. É menos panfletário, ainda que a contestação se mantenha nas sub-temáticas menos incendiárias da luta de classes, em especial as invectivas contra o político tory do Reino Unido que aconselhou uma mudança de profissão aos músicos que foram apanhados pelas proibições de espectáculos provocadas pelo combate à disseminação do vírus. 

Se sob fogo os IDLES responderam à acusação de professarem clichés com uma letra passivo-agressiva constituída apenas pelos ditos cujos (“Mr. Motivator”), no rescaldo da guerra que lhes foi feita puseram-se a tratar dos seus traumas pessoais. Um pouco como se argumentassem que também eles, privilegiados, viveram na merda e que também eles têm motivos para serem de esquerda, para partilharem os ideais feministas e para reivindicarem algum tipo de queerness. Ou seja, que também há “porcaria” nas suas almas.

Só cada um de nós poderá escolher a maneira como encarar estes equívocos IDLES. Serão um embuste? O direito à fala, à auto-expressão, inclui-os nos momentos em que tratam de experiências vivenciais que não são as suas? Como entendê-los de facto, quando os seus detractores também têm telhados de vidro, apesar de, supostamente, estarem no lugar certo da luta? “Muito do criticismo que nos dirigiram foi por minha culpa”, conta Joe Talbot. “Fui eu que, com o meu tom e por vezes com as minhas líricas, nos coloquei na posição de sermos mal entendidos. Ou bem entendidos, mas contestados”, lamenta. 

Agora imaginem um cenário em que Marx e Engels tivessem admitido o mesmo. Onde tivessem publicado o equivalente teórico de “Crawler”. Estaríamos agora a lidar com os mesmos dilemas? Nunca teríamos tido uma “esquerda caviar”? Ou toda a esquerda seria “caviar”? Não haveria que apontar diferenças entre IDLES e Sleaford Mods segundo as suas respectivas origens de classe? Não existiria algum destes projectos tal como os conhecemos? Nunca o saberemos. Findo o concerto, e mesmo tendo pulado e gritado com eles, continuaremos provavelmente a não entender os IDLES.


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