Chama-se Fora de Horas: O Retrato de uma Geração à Rasca e é um livro do jornalista Hugo Geada sobre a precariedade dos músicos em Portugal. Editado pela associação cultural CISMA, parte de uma série de entrevistas e de experiências pessoais para ilustrar uma realidade transversal.
De acordo com a própria sinopse, este trabalho “revela os desafios e sacrifícios enfrentados por quem tenta criar música num país que investe pouco na cultura”. “Entre empregos improváveis, estúdios improvisados, dificuldades financeiras e desigualdade de género, este livro reúne histórias de artistas de diferentes gerações que lutam por sobreviver num sistema que insiste em tratar a arte como um hobby. Ao mesmo tempo que denuncia uma realidade invisível, presta homenagem a quem a resiste. Um retrato cru e necessário da arte feita à margem — e contra todas as probabilidades.”
Disponível por 15€ (e por 10€ para os sócios da CISMA), contribuíram para este livro artistas como David Bruno, Ferna (Ângela Polícia), Bia Maria, Cláudia Guerreiro, Raquel Martins, Selma Uamusse, Maria Reis, Blaya, Logos, Marco Duarte, João Borsch, nëss, Femme Falafel, Beatriz Nunes, Adler Jack, Mafalda Rodrigues, Papico, Rui Fonseca, Pedro Feio, Chica, Jonas, Moisés, Miguel Vale e Joana Brito. Para assinalar o lançamento, cuja apresentação aconteceu nos últimos dias no Vodafone Paredes de Coura, o Rimas e Batidas colocou algumas questões ao autor Hugo Geada.
O que te levou, inicialmente, a querer explorar este tema? Já foi com a ideia de fazer o livro? Ou seja, nasceu primeiro a ideia de fazer algo sobre o tema ou a ideia de fazer um livro?
A ideia de fazer um livro era um desejo e um sonho antigo, no entanto, nunca imaginei que seria algo neste registo. Tudo começou quando me deparei com um artigo do Guardian sobre músicos que tinham um segundo emprego. Achei que seria um tema muito interessante de explorar em Portugal, onde é quase impossível para a classe artística sobreviver com rendimentos gerados pela sua arte. Esta ideia surgiu numa altura em que me tinha despedido do meu emprego anterior, como editor de cultura da NiT, e estava a enviar diversas sugestões para fazer artigos enquanto freelancer. A ideia foi rejeitada por vários meios de comunicação, mas sentia que tinha imenso potencial e era um tema importante, por isso não queria desistir deste trabalho. Pensei em formatos alternativos e lembrei-me de que, explorando as outras tantas dificuldades que os músicos enfrentam em Portugal, teria material suficiente para fazer um livro e registar de uma forma mais séria e duradoura esta problemática.
Apresentaste a ideia numa fase inicial à CISMA ou apresentaste logo o livro completo?
Quando decidi avançar com o livro, a CISMA foi a primeira editora que contactei, através de sugestão do Bruno dos Reis, antigo director criativo do GRETUA. Apresentei a ideia ao Jorge Ferreira da CISMA, partilhei com ele um artigo sobre as dificuldades que os músicos sentem a pagar rendas de salas de ensaio que fiz para a CCA, que seria um dos capítulos do Fora de Horas, e ele comprometeu-se a apoiar a ideia. Tirando esse capítulo, foi tudo escrito de raiz após ter recebido a luz verde da CISMA.
Certamente, já terias noção e algum conhecimento sobre a realidade que retrataste. O que é que te surpreendeu mais ao fazeres este trabalho? Descobriste coisas novas?
O que mais me surpreendeu foram os trabalhos precários a que a maioria dos músicos se submeteram para conseguirem criar a sua arte. Quando vemos um artista em cima de palco parece que existe uma aura de admiração que nos faz esquecer que existe uma vida além da música. Ouvir histórias como a do Marco Duarte, que se submeteu a trabalhar num chat virtual durante um interregno de concertos de David Bruno; do Pedro Feio, que fazia entregas em bairros perigosos do Porto; ou de Ness, que tinha dois trabalhos ao mesmo tempo e emagreceu devido a esse estilo de vida caótico; foi uma experiência muito reveladora e que me sensibilizou. Ouvir também a Blaya, uma artista consagrada da nossa praça pública, a falar dos problemas que enfrenta e enfrentou, também foi muito impressionante. Escrever o capítulo sobre as dificuldades sentidas sobre as mulheres artistas também foi algo que me ajudou a colocar em perspectiva muitas das dificuldades e desequilíbrios que ainda existem na cena musical portuguesa.
Acreditas que, para o grande público, afastado do sector profissional e que é um mero consumidor cultural, não existe a noção real desta precariedade? Ou, pelo contrário, subsiste a ideia, tantas vezes repetida pelos músicos em relação aos seus inícios de carreira, em que tantos pais desaconselham os filhos a seguir uma carreira artística, precisamente graças a todas estas dificuldades?
Acho que muita gente vai ficar surpreendida com algumas das histórias que vai ler. Dizer que existe precariedade no sector cultural não é nenhuma surpresa, uma reacção comum que recebia quando explicava a ideia do Fora de Horas era “isto é um assunto que todas as pessoas já sabem”. No entanto, ler sobre as decisões drásticas (e às vezes um pouco extremas) que estas pessoas tiveram de tomar e todos os sacrifícios que fazem para poderem seguir as suas ambições pode ser um pouco chocante. Contudo (e espero estar enganado), acho que as pessoas interessadas neste livro vão ser pessoas que estão atentas ao circuito musical português e que, no mínimo, suspeitam que possam existir todos estes problemas. Gostava de chegar a uma audiência de pessoas que consiste nos utilizadores de redes sociais que comentam publicações de Facebook a dizer que os artistas são uns preguiçosos. Aquilo de que mais gostava com este livro era ajudar a sensibilizar este tipo de leitores a perceber que o sector cultural tem problemas e enfrenta desafios reais.
Entrevistaste artistas de diferentes géneros, idades, circuitos. O que é que te levou a escolher estes e não outros? Houve uma intenção activa da tua parte de espelhares a diversidade musical do país?
Sem dúvida que mostrar a grande variedade de música que existe em Portugal foi um dos grandes objectivos. Seja em termos de género, estilo musical, origem geográfica… Queria que este livro fosse uma montra interessante e variada daquilo que se faz em Portugal. A selecção dos artistas foi influenciada por já conhecer as suas histórias, seja por causa de entrevistas que já lhes tinha feito, caso do Pedro Feio e do Marco Duarte, ou porque já os tinha conhecido pessoalmente e tinham partilhado essa parte da vida pessoal deles, como aconteceu com o Papico. O restante elenco surgiu por serem artistas que admiro e que senti, seja através da sua música ou da sua personalidade, que poderiam ter algo de interessante a acrescentar. E, claro, também contei com recomendações dos próprios entrevistados ou de pessoas que confio.
Depois de feito este trabalho, quais dirias que são os caminhos apontados de possíveis soluções para combater a precariedade que retratas neste livro? Há exemplos lá fora que poderiam ser implementados por cá?
O Fora de Horas não é propriamente um livro de soluções. É um trabalho onde quis expor de uma forma directa e real os problemas. Claro, cada entrevistado tem a sua própria opinião sobre o que poderia ser feito para ajudar a combater a precariedade, desde criar sindicatos para proteger os direitos dos artistas, a desenvolver uma rede de salas de espectáculos que permita que todos os músicos possam tocar mais regularmente, a atribuição de subsídios de criação artística (que já existe em alguns países europeus) ou de apoio às mulheres artísticas quando estas, por exemplo, não podem dar concertos porque estão grávidas ou acabaram de ter um filho. Pessoalmente, não sendo um especialista no assunto, gostava de ver uma transformação mais estrutural e de base. Estabelecer um salário mínimo justo e formas de receber rendimentos que estejam mais adequados à realidade portuguesa para que se possa gastar e apoiar de uma forma mais saudável a cultura portuguesa. Que fossem atribuídos apoios aos mais novos ou descontos na compra de bilhetes ou de arte para que possamos começar a desenvolver novas audiências e a apoiar as salas de espectáculos. Gostava de ver este efeito de bola de neve a atravessar a sociedade portuguesa, mas, infelizmente, acho que é algo que tão cedo não vai acontecer. Entretanto, o caminho é para a frente, sem desistir, com dignidade e de entreajuda.