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Fotografia: Idalécio Francisco
Publicado a: 19/07/2021

Sessão de pancadaria em Leiria.

Herlander n’A Porta: isto fica tudo registado

Fotografia: Idalécio Francisco
Publicado a: 19/07/2021

Feita a vénia, os girassóis saíram de palco. Davam o último suspiro, no último fim-de-semana do festival A Porta, eles e as suas guitarras. Para a estrelícia gigante ao centro, contudo, ainda eram horas de expediente. Contratualmente obrigada a ser pano de fundo, fazia a sua marcha de clorofila e músculo, nos braços de um dos incontáveis voluntários. E, num acesso de ve(r)detismo — porque não? —, decidiu fazer valer o seu peso. 

“Está a cair-me a máscara!”, acusou o homem de carga (e de quiçá mil ofícios), antes de pousar a ardilosa planta no espaço de debate, desejosa de transferir a silhueta das suas folhas recortadas para a tela de projecção (embora o recolher obrigatório em Leiria tenha cancelado o cinema nocturno). Ali, ao sol poente, falava-se de cultura e comunidade, da rua como fórum: uma propedêutica para nunca espremer uma comunidade e verter a polpa, disforme e conformada, em dinâmicas pré-fabricadas. 

A isso se propõe A Porta, na sua sexta edição de pensar Leiria como polis multidisciplinar — embora, sob o signo da pandemia, se tenha desdobrado em três fins-de-semana e abandonado a Rua Direita, no centro da cidade, donde é natural. O que perdeu de vizinhança ganhou em ar livre, circunscrito aos jardins da oitocentista Villa Portela (para o qual se programa um futuro como centro de artes), por onde se espraiam os pais, filhos e malta estilizada a quem se deve a elegante lotação esgotada. Pelas 16 horas, é uma massa humana controlada, entre entre instalações e, sobretudo, esplanada — por onde nos conduzem até um senhor de veludo roxo (veste papal, quase), corrente metalizada ao pescoço, chapéu (creme) à pescador, penso rápido na face direita à Nelly.

“Sexy Boy” pontua as ondas sonoras (cortesia do DJ set da Família Filipe’s) mas a vibração minimal acaba aí. Em Herlander, vindo de Lisboa para também ele “insistir, resistir, existir” como dita hoje A Porta, só há antecipação fervente e risonha. Não apenas pelas hipóteses de ser processado por violação de direitos de autor, entre o sample da personalidade televisiva Gisela Serrano que define o seu último single e a interpolação de Busta Rhymes e Mariah Carey noutro (cfr. “if you give it to me what’s luv got to do with it?” com “I Know What You Want”). O nervoso miudinho parece vir, na verdade, de uma linha que começou a desenhar em 2017, com o EP 199, e agora se engrossa. 

“Quando estou a criar, estou sempre a [imaginar-me a] actuar; é assim que a minha linguagem se forma”, diz, cara a cara, ao ReB — que o elegeu um dos pontas-de-lança da música portuguesa no futuro iminente. “Antes de eu gostar de fazer música, a minha paixão começou pela performance. Dançava em crews lá na Margem Sul, um miúdo pequeno ao som de hip hop”.  Poderíamos ser induzidos em erro pelas deflagrações a que Herlander chama canções: vide “quem diriaiaia”, o (brilhante) áspero produto de encafuar a soul majestática de Aretha Franklin com o Eurodance dos 2 Unlimited numa batedeira, ou a colagem áudio que é 199, uma expiação de um estado “depressivo”, produzido durante os dois anos que viveu em Londres. Como se transfigura isso num concerto?

“Quando tinha 15 ou 16 anos, estava bué tipo ‘eu não vou fazer outra coisa. Eu vou estar num palco para o resto da minha vida”.  Percebemo-lo umas horas mais tarde (e a estrelícia gigante também, invejosa do co-protagonismo). Introduzido por um pontilhado emo de piano e a voz soterrada pela manipulação digital, canta, sorumbático, sobre pouco mais do que um metrónomo e umas linhas de guitarra — linhas essas que se vão electrificar, serrilhar em carne viva, após uma intermissão no playback: “WAKE THE FUCK UP!”, grita uma de muitas vozes que integram a costura do espectáculo. 

Eis que vem a soluçante “quem diriaiaia”, dos lábios desse artista, que entretanto trocou a veste roxa pelo cinzento de uma manga cava e calções — talvez para não dar tanto nas vistas enquanto, respeitosamente, explode com aquela merda toda. Pena termos de o ver de um ponto fixo, sentados, sem podermos participar do turbilhão. Um dia(iaia)…

“Quando estou a actuar, tenho sempre um alter-ego. Pelo menos, é o que me dizem os meus amigos. Quando estou com eles, sou uma pessoa e, quando vou ao palco, sou outra completamente diferente”. O mundo recusa desapossar-se do seu complexo Sasha Fierce, sem chance de convalescer — por acaso, no caso de Herlander, isso é mentira. Permuta entre um estado de paroxismo, um modo mais vibey – que nos introduz a inéditos que incorporam o único êxito dos City High, ou cujas batidas palmilhadas lembram Lil Mama e JoJo/Bow Wow –, e a postura vulnerável em que se apoia mais do que o esperado. 

Sons mais crus, pós-Blonde, para desgraçar os romances fictícios de quem sabia ao que vinha e apenas se faz de novas. A capella, improvisa um tributo ao actor e eterno Bruno Candé, na véspera do primeiro aniversário do seu assassinato (não nos esqueçamos: um homem negro que foi assassinado por ser um homem negro). Um beat plástico e retorcido, à “Ponyboy”, precede a violência em directo de “Gisela”, “de olho vermelho e remela”. É a história do toxicodependente Manny, a personagem baseada em gente verídica, que ganhará forma total no primeiro álbum de Herlander (edição prevista para Setembro ou Outubro).

Quando mostrou “Gisela” aos amigos, o fundamental era um ritmo básico (que Herlander tamborila na mesa) subjacente à citação de Serrano. A produção desagradava-o, mas quem a ouvia pedia rapidez na entrega; volvidos dois anos, percebeu o que fazer. “Eu sabia que não podia mudar a música, porque já a tinha [interpretado ao vivo] antes. A minha única solução era adicionar”. Ao contrário do famoso exercício de subtração, o preciso contrário: a glória da cacofonia, trompetes e percussão rija, Masterplan e Herlander. “Eu gosto de ver a reacção das pessoas. Por exemplo, a minha família a ver e perguntar: ‘Tu andas a cheirar coca?’ Pelo recinto d’A Porta, o calmo público d’A Porta deixou-se assombrar: todas as bocas acusam “O pai dela/ O pai dela”.

Não acaba aí a lenda desse infame (e transgeracional) vídeo em que Gisela Serrano e Sandra Leão, concorrentes desse saudoso reality show, se digladiam. No final, já separadas pela produção, Serrano deixa uma ameaça ao ecrã: “Pensa que ela é quem? Entra a matar, desfaço-a. Vai desta para melhor. Vai para o bem de São José.”. Nunca soubemos exactamente o que é o bem de São José, mas imaginamos o que seja o bem de São Herlander. E se Gisela Serrano não gostar da brincadeira? “Posso dar-lhe todos os royalties, que são tipo 2 euros.”


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