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Fotografia: Bárbara Rosa
Publicado a: 24/11/2021

Arriscar em nome da cultura.

Guire: “O Entressonho sou eu a reunir as coisas mais estranhas que tinha comigo no computador”

Fotografia: Bárbara Rosa
Publicado a: 24/11/2021

Foi em Junho de 2019 que nos cruzámos pela primeira vez com o som de Guire, ele que era um dos produtores creditados em Arritmia, projecto de apresentação de holympo, cedido antecipadamente ao ReB para uma entrevista que viria a acontecer poucos dias depois. Nessa tarde, o rapper de Cantanhede veio ao nosso encontro no Parque das Nações acompanhado de alguns dos colegas que o ajudaram a esculpir esse primeiro trabalho, todos eles ainda a descobrir este lado mais “sério” da indústria.

Hoje, com 21 anos, Guilherme Figueiredo já não é o mesmo jovem que tivemos sentado ao nosso lado naquela tarde, mas confirma todo o potencial que lhe era depositado por aqueles com quem colaborava, na altura invisível aos olhos daqueles que não privavam com ele, até porque não existia muito material editado que pudesse alimentar facilmente essa ideia. No seu discurso, há agora uma certeza absoluta de qual o caminho a seguir e isso revela-se através das canções que escolheu compilar em Entressonho, EP de estreia que saiu no mês passado pela Chinfrim Discos e que o levou a contracenar com xtinto, Bia Maria, Deadflyingthings e holympo, uma vez mais, embora com um novo arsenal na sua posse.

Apesar de silenciosos, este par de anos que passaram foram de uma aprendizagem e evolução constantes para Guire: foi um dos newcomers acolhidos pela Think Music e pela WTF n’O Game, tirou o curso de Sound Design na ETIC, produziu o frenético “Resort“, de Chico da Tina, e tem como mentor o lendário Paulo Abelho, ex-Sétima Legião e Golpe De Estado e um dos pioneiros na técnica do sampling em solo nacional.



Fala-me dos teus primeiros passos na música.

Quando era miúdo comecei a tocar cavaquinho e guitarra, assim um bocado como uma actividade qualquer para preencher tempo livre [risos]. Na altura gostei. Mas aquilo, como era tão clássico e tão estrito, acho que na altura eu ainda não tinha cabeça para levar aquilo a sério. Depois fui morar para Moçambique, entrei lá durante o meu segundo ano escolar. Só no quarto ou quinto ano é que voltei a ter aulas de guitarra. Lá comecei a levar a coisa mais a sério e comecei a ouvir música mais regularmente. Mas sempre tive aquela cena de não ligar muito. A música estava presente, eu é que não ligava muito e não investia muito tempo. Isso só aconteceu mais tarde, já cá em Lisboa. O meu irmão tinha começado a produzir música house. Um fui ter com ele ao quarto e apanhei-o a brincar com um software que eu não fazia a mínima ideia do que é que era. Pedi-lhe o programa e comecei também a brincar. Foi consequência do aborrecimento e da curiosidade. A partir daí, foi começar a falar com pessoal, tanto no Twitter como no SoundCloud. Fui-me cruzando com várias pessoas que também estavam a começar e comecei a interagir.

Ainda trabalhas com essa mesma plataforma inicial?

A plataforma chama-se FL Studio. É um software super comum. Neste momento… Este EP, por exemplo, foi produzido no FL Studio, mas eu, entretanto, já passei o meu workflow todo para o Ableton Live, que foi o que eu usei na parte da mistura do EP. Agora produzo principalmente no Ableton. A partir do momento em que comecei a aprender mais de mistura e captação, o FL tornou-se uma ferramenta que já ficou um bocado aquém.

Lembro-me de te ver n’O Game, que creio ter sido uma experiência muito especial para todos vocês que participaram.

Foi, de facto, super importante. Na altura deu-me um boost enorme. Era aquele empurrão que me faltava. Eu estava há montes de tempo a trabalhar no meu craft e, ali, tive quase que uma aprovação. Ou até mesmo uma recompensa, do tipo, “trabalhaste bem e agora estás aqui”. Senti que subi um degrau. Foi bom conhecer gente nova e estar com aquelas pessoas com quem eu já mantinha algum contacto, embora mais distante. O estar em estúdio “a sério”, não apenas para fazer música mas também a ver os outros e a estudar o processo. Foi a primeira vez que isso aconteceu. Depois, todo o networking, a exposição… Realmente, na altura tive aquela exposição e gostava de ter aproveitado para lançar um projecto. Só que não tinha nada de sólido já terminado. Na verdade, agora, nem sei se essa mesma fanbase quer ouvir aquilo que eu tenho para apresentar.

E em que momento é que tu mudas o teu registo para chegares ao que apresentaste neste EP? O Entressonho não me soa ao que já tinhas feito com o holympo ou o Chico da Tina uns anos antes.

Começou tudo na brincadeira. A minha interacção com a música não tinha nada de reflexão nem de pensamento. Eram coisas de jovem, tudo muito muito mal pensado. Na verdade, a “Resort” saiu, para aí, se não me engano, meio ano depois de ter sido feita, que foi na altura em que eu entrei na ETIC, em Sound Design. Foi quando comecei a captar e comecei a ter esta percepção, mais de técnico som e de gravação, de produtor em estúdio, aquele formato mais clássico. Aí começo a perceber a importância dos músicos e do sentimento que se consegue passar. Acho que ganhei a noção, a uma escala maior, daquilo que é música. Aquele som totalmente electrónico deixou de me estimular. Lentamente, durante o processo do curso, fui apurando o meu conhecimento técnico e foram-me surgindo oportunidades para gravar com mais músicos e gravar todas estas coisas que foram compondo este EP. No geral, para responder à tua pergunta, acho que fui eu que ganhei uma maior perspectiva do quadrado em que estava. Eu não via as barreiras da coisa. 

É, então, apenas uma consequência do teu amadurecimento enquanto artista?

Completamente. Foi tudo consequência do processo. Não houve planeamento. Foi acontecendo e estas músicas são o resultado disso.

No final da “Louco Furioso” ouve-se a Deadflyingthings a dizer “isto está como eu quero”. Isso está, de alguma forma, relacionado com essa tal evolução da tua música?

Nem por isso. Na verdade, essa música tem uma história super engraçada. Basicamente, eu e a Deadflyingthings estávamos em estúdio com uma pessoa a quem eu gosto de chamar de meu mentor. Eram, para aí, sete horas da manhã e nós continuávamos a ouvir música. Já nem sei em quantos discos é que já íamos. Estávamos a ouvir os clássicos. Ouvimos, ouvimos, ouvimos… Só que haviam vizinhos de cima, que pelos vistos estavam também acordados nas suas actividades. No dia a seguir, a Deadflyingthings ouviu-os a comentar que “o velho estava completamente louco, às sete horas da manhã a ouvir música com o volume no máximo, e o filho também”. Nesse caso, o filho era eu, que estava lá também a curtir a música. Esta música acabou por surgir num paredão, em Sines, como resultado de uma jam vocal e percussivo. Íamos dizendo muita porcaria. “O velho está louco” e, depois, eu acabei por dizer “e o filho também”. Lá começámos a desenvolver a coisa, até aquilo “estar como eu quero”. É esse o significado da coisa.

Já no press release desse single vinha a falar da importância de uma estadia em Sines. Eu só não percebi: esse período em Sines pertence apenas à história deste tema ou todo o EP foi concebido em Sines?

Muita da minha evolução pessoal partiu de estadias em Sines, como assistente de som e a montar estúdio para gravar vários artistas que passaram por lá. A “Louie” surgiu lá e foi a primeira música do disco a aparecer. Mais tarde veio a “Louco Furioso”, quando levei para lá a Deadflyingthings. Sines é super importante pelo valor emocional e por toda a aprendizagem que foi feita lá, mas o disco não foi todo feito lá. O resto foi gravado antes e depois. A “Louie”, por exemplo, foi acabada em Leiria. A “Hamartia” foi gravada e produzida em Ourém, com o Billy Verdasca e o xtinto. As estadias em Sines eram mais para refinar o projecto e rever o projecto. Mas, sim, Sines foi essencial para o meu crescimento e, por isso,  para o crescimento deste projecto, também.

Consegues apontar-me a janela temporal durante o qual isto tudo foi feito?

Lembro-me de que a “Louie” foi começada no Verão de 2020, em Setembro. Na verdade, essa nem foi a primeira música a ser feita, como te tinha dito há bocado. Isto porque a “Delir”, a primeira de todas no alinhamento, foi feita quanto eu estava no secundário. Era uma ideia que eu tinha desde o secundário, que era uma espécie de desabafo electrónico. Era algum tipo de emoção forte ali posta numa coisa qualquer. Já não sei exactamente o que é que era. Eu fui buscá-la e integrei-a aqui no meio. Não contando com isso, eu diria que o projecto demorou um ano e meio a ser feito. Mas, lá está, como não houve planeamento, eu simplesmente fui fazendo curadoria de várias faixas que eu tinha aqui. Não houve propriamente um “ok, estou a começar um projeto e vou acabá-lo”. Eu não sabia o que estava a fazer [risos]. Simplesmente parei e percebi que estas faixas tinha um tema em comum e vinham de um sítio parecido.

Há bocado falavas no “Louco Furioso” como sendo o teu mentor mas não revelaste quem é essa pessoa ao certo. Queres desvendar-me quem é? Teve algum peso nesta tua nova percepção do som?

Foi meu professor na ETIC. É o Paulo Abelho. Ele tem um historial gigante, uma cabeça enorme e tem muito conhecimento. É ele quem é referido como o “Louco Furioso”. Ele é realmente… É que eu só lanço um projecto a solo nesta altura porque já trabalhei em vários outros projectos. Antes do Entressonho eu já tinha feito um EP e meio. Acabei por perceber que essas músicas não estavam lá ainda. E ele ajudou-me muito, nesse sentido de crescer como artista. Aprendi bué com ele.

Essas coisas que deixaste para trás, é algo que morreu ali ou ainda são temas que tu consegues voltar a pegar mas já olhando através desta nova perspectiva?

Estavam dentro daquela caixa… Eram “quadrados”. No final, eu estava muito na dúvida e ele é que me disse, “epá, manda isso para o lixo”. Em princípio, se saírem, não vão sair como disco. Vão antes sair como trilhas, soundtracks, mais no sentido de cinema, que é uma vertente que eu também tenho explorado bastante, em termos de pós-produção.



É engraçado falares nessa questão do cinema. A forma como este EP está montado, cheio de camadas, remete muito para esse espectro. Isto levou muita instrumentação real, não foi?

Diria até que só tem instrumentos reais, na verdade. Não sei se foi por escolha minha. Mas acho que não, até porque sou um grande adepto do sampling e essa foi a parte que eu absorvi mais do hip hop — isso e o ritmo. Mas neste EP foi tudo gravado. Tenho desde guitarras, instrumentos tradicionais africanos, como mbiras e timbilas. O EP fecha com uma mbira, uma kalimba do Zimbabué, e chama-se “Nyunga” devido à afinação dessa mbira.  Cheguei a ter acordeões mas acabei por tirar. Tenho lá nos créditos um baixo, que na verdade é de uma guitarra modificada. Tenho montes de vozes em tudo. Um piano, flauta transversal tocada pelo Billy… Sempre tudo gravado.

Tudo gravado por ti mas nem tudo obrigatoriamente tocado por ti.

O que foram outros músicos a tocar foi tudo gravado por mim, à excepção do piano na “Louie”, que foi gravado no estúdio da Chinfrim, que é recente. O resto foi tocado por mim, assim mal e porcamente e muito bem editado [risos].

Então tu compões, tocas, produzes, cantas, captas…

Sim. E também misturei. Só a masterização é que passei para o Tony Bounce, que é um grande amigo meu e tem um ouvido do caraças. Foi também para ter aquela segunda opinião. A coisa precisa sempre de ir a uma nova dimensão e ele esteve lá para ajudar a dar aquele toque final.

E, pelo que li nos créditos, ainda tiveste tempo para fazer a capa, também. Daqui vejo uns desenhos pendurados na parede atrás de ti. São tudo coisas tuas?

Isto é um bocado como que uma documentação dos meus desenhos nos cadernos do secundário. Houve um dia em que estava a olhar para este quadro e percebi que a associação entre estes dois universos [do som e imagem] faziam sentido. A forma como parece que [na capa] tem lá uma pessoa no meio, rodeada de tanta coisa… Fez-me sentido e comecei a juntar alguns pontos. Talvez a dar ou a perceber o sentido de alguma coisa. 

Tu há bocado tinhas-me falado em Moçambique. Essa tua experiência lá… sentes que se reflecte hoje na música que fazes?

Acho que sim. Mas, lá está, foi muito inconsciente a forma como eu absorvi a cultura lá. Porque, na altura, não estava propriamente naquela fase de “vou ouvir e vou absorver isto”. As principais cenas que trouxe comigo de lá foram, assim, uma mentalidade diferente, uma ambição diferente e, se calhar, também uma perspectiva diferente. Gostava de continuar a explorar isso e de ter mais músicos com quem possa colaborar. Músicos em específico, mais do que outros produtores. Músicos que estejam comigo em estúdio e em jam para fazer mais ideias destas. Ao fim e ao cabo, não sou propriamente um músico, pelo menos no sentido tradicional.

No meio de tudo isto, trazes contigo alguns convidados para o disco, dois deles cujas sonoridades habituais até estão mais ligadas ao teu registo antigo, o xtinto e o holympo, este último com quem já tinhas até colaborado. Sentiste a necessidade de lhes passar algum tipo de directrizes sobre o que procuravas agora? Creio ser correcto afirmar que tanto um como o outro estiveram a pisar terreno desconhecido no teu EP.

Sim, completamente. Mas são tudo coisas que foram surgindo naturalmente. Este EP sou eu a reunir as coisas mais estranhas — mais “fora” — que tinha comigo no computador naquele momento. É engraçado, porque nós fizemos uma residência artística em Leiria, com o objectivo de fazer música livremente. Eu montei a minha banca, o pessoal ia passando por lá e eu ia mostrando umas cenas, sem grandes intenções. Também estavam por lá o xtinto e o holympo, tal como outros artistas e produtores. O holympo, em específico, cruzou-se com o que era a minha ideia original da “Louie” e perguntou-me se podia escrever para aquilo. Inicialmente disse-lhe que não. “Não podes, porque eu adoro isto. É o meu bebé e ninguém toca nisto” [risos]. Realmente, ele acabou por escrever ali uma música inteira com uma história incrível e super bonita. Nessa semana, acabei por conhecer também a Bia. Por acaso estava connosco nessa sessão em que o holympo estava a escrever a música e acabaram por gravar os dois. Foi um momento super bonito. Eu sinto que estava ali como espectador e que a coisa estava a fluir à minha frente. Não sei… Eu estava demasiado entusiasmado para conseguir fazer o que quer que seja. Meti a gravar mas eu estava noutra [risos]. Também nessa semana, o xtinto percebeu o que é que eu andava a fazer e o que é que tinha para oferecer em termos de sonoridade. Combinámos gravar para fazer algo de original. Ficou por acontecer. Isso só surgiu numa outra vez em que eu fui a Ourém. Ou seja, nunca houve propriamente um momento em que tenhamos dito, “ok, vamos sentar-nos aqui e fazer música para o meu EP”, ou “vamos fazer uma música estranha e fora da tua zona de conforto”. Foi, simplesmente, a forma como eu conduzi aquela sessão que nos levou ao universo que levou. Foi incrível ter o Billy no “Hamartia”, também. A música surgiu de uma ideia vocal que eu e o Billy tivemos e à qual aplicámos um harmonizador. O billy, com a flauta, levou logo aquilo para outro nível, uma cena assim de fantasia ou medieval. Do nada, despertou-nos e levou-nos para outro caminho que não estávamos à espera inicialmente.

E como surge a ligação à Chinfrim Discos?

A Chinfrim também estava presente em Leiria, na semana em que fizemos a “Louie”. Estavam lá o Gui Simões e a Bia Maria no sítio onde aconteceu a instalação artística. Na altura não falámos muito. Quando reuni as demos do disco, fui falar com ele e disse-lhe que, tendo em conta as editoras do panorama nacional, a Chinfrim era aquela pela qual mais sentido fazia lançar o meu EP. Pelo respeito que tenho por todos os músicos de lá, pelo que vejo que eles estão a tentar promover e pela variedade que têm a nível musical. Ele disse que tinha todo o interesse em ouvir. Adorou e começou a ajudar-me no processo final de toda esta coisa.

Já fazes ideia de como é que vais fazer este projecto manifestar-se em palco?

Já. Idealmente seria eu — e estou a trabalhar nisso agora — a fazer arranjos da parte electrónica, para os poder controlar ao vivo, e ter os músicos todos comigo a actuar. É um bocado ambicioso para uma primeira apresentação ao vivo [risos]. Mas, se fosse possível, gostava de ter até mais músicos em palco. Gostava de conseguir estender a música e dar-lhe um arranjo ainda mais diferente.

Mais cinematográfico.

Isso [risos]. Ter mais instrumentos, mais texturas… Mais tudo. Se for só eu a tocar, no formato de DJ e com os convidados a cantar, não tem piada. Não sei. Queria mesmo conseguir transmitir a vida que este disco tem ao vivo. Estou a trabalhar nisso. Mas o ideal era mesmo ter os músicos todos comigo.

Estás a trabalhar nisso para adiantar trabalho ou já tens alguma data fechada?

Ainda não tenho datas fechadas. Neste momento, temos uma ideia de quando é que isto vai ficar pronto para começar a ser levado para os palcos. Mas ainda falta trabalho da minha parte. Ainda não tenho essa vertente terminada.


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