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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 29/05/2023

O produtor e músico brasileiro prepara-se para dar três concertos em Portugal.

Guilherme Kastrup: “A inteligência artificial não vai acabar com a criatividade”

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 29/05/2023

Alguns meses depois da sua última visita a Portugal, quando participou no WOMEX (altura em que o Rimas e Batidas o entrevistou), o produtor e músico brasileiro Guilherme Kastrup regressou nas últimas semanas ao nosso país para dar um workshop no Porto e apresentar-se ao vivo numa série de concertos integrados numa pequena digressão europeia. A 2 de Junho toca com a banda Ayom no Festival Pé na Terra, na Fuseta, no Algarve; no dia 14 atua no Bota Anjos, em Lisboa; e no dia 16 é a vez de a Costa da Caparica o receber. 

É sobretudo um especialista em percussão e bateria, embora tenha conhecimentos avançados sobre múltiplas dimensões da produção musical. O seu currículo é vasto. Já trabalhou com músicos como Elza Soares, Ney Matogrosso, Adriana Calcanhotto, Arnaldo Antunes, Zeca Baleiro, PAUS ou Selma Uamusse, entre tantos outros. Ganhou mesmo um Grammy latino pelo trabalho que fez em A Mulher do Fim do Mundo, disco aclamado de Elza Soares. A solo, é o autor dos discos Kastrupismo (2013) e Ponto de Mutação (2018), entre outros projetos colaborativos.

O Rimas e Batidas voltou a falar com Guilherme Kastrup a propósito do seu regresso a Portugal para uma troca de impressões via Zoom sobre produção acústica e digital, o papel da inteligência artificial na música ou a “fascinante” reinvenção da tradição portuguesa que está a ser levada a cabo por novos artistas (com quem o produtor brasileiro irá colaborar).



Vai atuar no Algarve, em Lisboa e na Costa da Caparica. Que concertos serão estes e com que formação?

Em Lisboa e na Costa da Caparica será um concerto com o meu quarteto, músicos brasileiros extraordinários. É o Henrique Albino nos sopros, o Tom Maciel que morava em Lisboa e agora reside em Berlim, e a Victoria dos Santos que é uma percussionista e cantora excepcional. Estes shows vão ter a participação especialíssima da Surama, cantora pernambucana extraordinária. E no show do Bota Anjos, em Lisboa, vai haver uma participação do Edgar Valente, dos Criatura e Bandua; enquanto na Costa da Caparica haverá uma participação da Ana Lua Caiano. Gosto sempre de fazer estes intercâmbios de artistas, já há muito tempo que faço esse trabalho. Com o Edgar estou a trabalhar no álbum deles e admiro muito o trabalho dele, e a Ana Lua Caiano conheci da última vez que vim a Lisboa, no WOMEX. Foi um dos shows que mais me impressionou. Assim como ela tem uma cabeça contemporânea e moderna, mas ao mesmo tempo muito ligada à tradição portuguesa e das suas raízes, achei encantador a forma como ela aborda isso e resolvi fazer esse convite. No Algarve vou tocar no show da banda Ayom, estou a produzir o álbum deles. Vim passar esta temporada a Lisboa também para uma série de trabalhos de produção e aproveitámos para fazer estas conexões e intercâmbios. Vamos atuar no festival da Fuseta e depois vou fazer o meu show a solo, a abrir para eles, em Barcelona.

O alinhamento das atuações vai basear-se muito nos discos do Guilherme?

Sim. Este show que estou a trazer cá é uma mistura do repertório dos meus dois trabalhos, o Kastrupismo e o Ponto de Mutação

Estava a referir estas conexões com outros artistas, e obviamente ao longo da sua carreira já trabalhou com centenas e centenas de músicos. Mas continua a entusiasmar-se sempre que descobre um talento novo, algo refrescante? 

Esse princípio tem uma sedução especial. Conseguir identificar o talento, conseguir somar o meu trabalho e ajudar um pouco no processo de descolagem dos artistas, para mim é algo muito sedutor. Eu trabalhei com muitos artistas nos seus primeiros e segundos álbuns e gosto muito disso. 

É a fase em que os próprios músicos muitas vezes ainda se estão a descobrir e a formar enquanto artistas.

É verdade, e acho que o meu trabalho de produção de certa forma contribui bastante para esse encaminhamento. É um tipo de troca que para mim é muito satisfatória. 

E já que começámos por falar dos concertos: do que é que gosta no palco que não encontra no estúdio? O que o faz querer ir para os palcos quando é acima de tudo um artista de estúdio?

É a troca com o público, sem dúvida. É uma troca de energia ao vivo que o estúdio não tem… O estúdio é o lugar de construção, da calma para pensar em ideias, construir e desconstruir, remontar, é muito gostoso o trabalho de estúdio. Mas quando chegas para te apresentares no palco e mostras aquela música e sentes a reação e o retorno enérgico do público, é ali que a música se concretiza de uma forma mais intensa e verdadeira. Para mim é uma coisa emocionalmente muito importante.

Acabam por ser duas facetas complementares.

Totalmente, uma ajuda a outra. Porque no trabalho de estúdio vamos elaborando e desenvolvendo ideias, e isso ajuda quando vamos para o palco. Essa comunicação e organização está mais bem desenvolvida. Mas é com o público que temos o feedback do que é que funciona ou não, inclusive para percebermos o que vamos fazer no estúdio. Vai fazer-nos criar ao sentir o que funcionou mais instintivamente nessa troca com o público. 

Como é habitual, também vai dar um workshop em Portugal [realizou-se no final de maio]. Li que vai mostrar, por exemplo, as sessões de discos que fez com a Elza Soares. Como funciona esse workshop?

É um grande aulão, uma aula um pouco extensa, com cinco horas de duração. Às vezes faço este curso de uma forma um pouco mais extensiva durante a semana, com vários dias de aulas, como é muita matéria e informação. Desta vez o meu tempo está um pouco mais apertado por conta dos meus outros compromissos e resolvi fazer este formato de uma grande aula. Tem duas partes: uma mais teórica, sobre produção musical, mas que também fala do conceito de arte, como eu entendo o que é a música. Falo sobre acústica mas também sobre a magia que é a organização dos sons que se transformam num sistema de comunicação emocional. E depois tenho uma parte um pouco mais prática, que é a de abrir sessões já montadas e mostrar como é que eu penso o processo de edição e organização. Trago algumas sessões de A Mulher do Fim do Mundo, da Elza Soares, que teve muito impacto em Portugal e fizemos aqui grandes concertos, que tiveram uma atenção muito especial. É sempre uma curiosidade. As pessoas gostam muito de ouvir as coisas em separado, a voz da Elza em separado. Como é a gravação, como é que os instrumentos funcionam separadamente, como é que se deu esse processo de organização desde a criação à finalização…



E suponho que haja dúvidas muito variadas, com questões muito específicas e técnicas mas também outras mais genéricas por parte das pessoas que vão às aulas. E obviamente tem essa experiência porque dá aulas há muitos anos. Quais são os principais interesses e dúvidas das pessoas que costumam ir a aulas de produção?

É muito diversificado. Há alunos que têm curiosidades um pouco mais técnicas, como é que tecnicamente resolvo certas coisas, mas também há uma curiosidade um pouco mais artística e conceptual. É por isso que gosto de abordar estes dois temas fazendo a conexão, procurando mostrar como é que faço a ligação entre um conceito artístico e a realização técnica e prática. Essa ponte é muito importante na função da produção musical. Como é que se consegue construir essa casa… Faço sempre uma comparação entre o processo de produção musical com a arquitetura. Porque existe uma ideia, monta-se um projeto, desenha-se, elabora-se e depois constrói-se a casa, organizando os processos, os trabalhadores, os orçamentos e tudo o que é necessário para concretizar aquela ideia artística de forma concreta.

Obviamente, ao longo dos anos, e desde que o Guilherme começou a sua carreira, houve uma grande evolução tecnológica que permitiu uma série de mudanças na música e os próprios géneros também evoluíram muito à conta disso. Queria perguntar se existe hoje uma maior preocupação e valorização com a produção musical ou se, por outro lado, como fazer música se tornou mais fácil ao longo dos anos? Ou seja, uma pessoa com um computador hoje consegue compor e gravar, mesmo que seja algo amador, obviamente a música democratizou-se nesse sentido. Permitiu o acesso a pessoas que dantes não poderiam fazer música. Mas também existem muitas coisas que são lançadas hoje em dia que até podem ter muito sucesso mas não têm tanta qualidade e cuidado com a produção musical. Qual é a sua perspectiva?

Você usou uma expressão que é perfeita: a democratização. O que houve de mais forte e poderoso foi realmente essa democratização do acesso aos meios de produção musical. E acho isso muito, muito positivo. É lógico que, com essa democratização, hoje em dia existe uma enxurrada de produtos musicais. Sou de uma geração em que a produção musical era mais restrita aos grandes estúdios, às grandes editoras. Era caríssimo poder ter equipamentos e acesso a esses meios. Normalmente era preciso passar pelo filtro das grandes editoras. Esse filtro era de um padrão de qualidade, mas ao mesmo tempo também era um filtro que deixou muita gente de fora. De certeza que, ao longo dos anos, muita gente boa, que teria grandes possibilidades de se tornarem grandes artistas e fazerem grandes discos, não tiveram acesso a essas oportunidades por conta desse filtro. Hoje em dia temos uma grande quantidade de coisas a acontecer. E quando existe muita coisa, vai haver muita coisa boa e muita coisa que não tem tanta qualidade. Mas é um processo democrático. Talvez a gente demore mais um pouquinho historicamente para conseguir com que o filtro da história decante essa enorme produção para que a gente veja o que despontou, porque acredito muito que aquilo que tem qualidade fica. Musicalmente, as coisas que têm muita força vão ficando com o tempo, enquanto as outras que têm menos força vão naturalmente diluir-se. Mas acho muito positivo essa democratização. E nestes cursos que faço vou bastante por essa qualidade. Faço um curso baseado no programa de gravação que uso, o Pro Tools, mas ao mesmo tempo faço questão que não fique restrito a isso. É um curso virado para quem usa qualquer tipo de programa de música, em qualquer estágio de produção. Há grandes discos feitos em computadores, em quartos de hotéis e com um microfone. Dou muito valor a isso, é muito importante que as pessoas não tenham medo de se jogar nos processos criativos por conta das deficiências técnicas. Tento estimular o máximo possível a criação.

E hoje a quantidade de possibilidades musicais que podem ser criadas por qualquer pessoa é muito maior do que quando o acesso era filtrado pelas grandes editoras. O que também tem a ver com a evolução tecnológica são os cruzamentos entre produção acústica e digital, e o próprio Guilherme tem essa experiência. Sente que a música passa cada vez mais por aí, por esses cruzamentos em tentar encontrar o melhor dos dois mundos?

Totalmente. Estamos agora numa segunda fase. A música eletrónica passou pelo processo das gravações analógicas que também estabeleciam estéticas. Quando a música digital surgiu e as possibilidades da digitalização da música, para os pads de edição e manipulação de sons, de samples, foi como se a moeda da música tivesse virado. Toda a gente passou a produzir de uma determinada maneira e isso determinou uma outra estética, ali nos anos 90 e início dos anos 2000. Depois, houve um certo cansaço com a música extremamente digital e um retorno mais saudosista… Com muitas pessoas a querer usar equipamentos analógicos, a querer gravar em fita, a querer misturar essas sonoridades dos anos 70, pré-música digital, com o digital de hoje. E acho que os recursos depois começaram a misturar-se de forma bem saudável, de tentar resgatar o que havia de melhor não só nos equipamentos mas também nos processos… Por exemplo, a música era gravada com os músicos a tocar todos juntos, que é algo que faz uma diferença grande na expressão artística. E misturar isso com os processos digitais com facilidade, sem que se pretenda ter uma estética totalmente digitalizada, ligada à correção, de uma busca pela perfeição, seja da afinação, etc… Acho que hoje temos uma boa mistura.

E esse interesse pelo analógico até se nota no consumo. As vendas do vinil aumentaram, por exemplo. E noutras áreas, existe muita gente que hoje faz fotografia analógica e mesmo no cinema. Outra questão que também tem sido muito falada é o tema da inteligência artificial na indústria da música. Existe muita gente que diz que pode ser uma ameaça à própria música, outros defendem que pode ser uma ferramenta que até pode ser utilizada em benefício dos compositores e produtores… Tem uma opinião sobre este tema?

É um grande tema e agora está toda a gente um pouco temerosa com isso, porque parece que estamos a entrar num filme de ficção científica. Sinto que, sempre que surge tecnologia nova, o ser humano tem uma busca por isso mas ao mesmo tempo tem uma apreensão. Ao longo da história vimos isso acontecer algumas vezes. Quando surgiu, por exemplo, a máquina fotográfica, as pessoas diziam que iria eliminar a pintura. E na verdade a fotografia não eliminou a pintura, as gravações não eliminaram a música ao vivo, mas transformam. É lógico que a pintura deixou de ser tão ultrarrealista. Por conta da fotografia, teve que achar outros caminhos criativos. A criatividade é algo da natureza do ser humano, não vai acabar com a inteligência artificial. A gente precisa da criatividade para nos expressarmos no mundo. Sinto que isso nunca vai acabar, que é uma força que não há tecnologia que supere. A criatividade irá sempre, que nem um rio, encontrar outro caminho para se expressar e acontecer. E como consumidores de arte, todos nós precisamos disso sejam artes plásticas ou cinema para podermos estar vivos. Também buscamos uma criatividade inovadora que nos leve por novos caminhos emocionais. Tenho mais receio de a inteligência artificial provocar grandes ondas de desemprego, de massificação de condução do pensamento humano, uma certa hipnose em relação aos meios digitais… Isso para mim é mais assustador.

Tendo em conta tudo aquilo que já fez, o que gostava de explorar na música que ainda não explorou?

É uma boa pergunta. Há sempre uma necessidade de novos encontros. Mesmo com artistas que já fiz muitas coisas, há uma necessidade de novas emoções. Por exemplo, trabalhei muito tempo com o Arnaldo Antunes. Mas nunca produzi um álbum inteiro dele, então tenho a vontade de me aventurar e produzir. Tenho muita vontade de produzir novos encontros, com artistas de gerações diferentes, isso é muito sedutor. Como a gente fez com a Elza, uma artista de outra geração poder encontrar artistas de uma geração mais contemporânea… Sou muito apaixonado por esses encontros.

E vai ter agora uma série de encontros com músicos portugueses nestes concertos. Da sua perspectiva, que não é português mas ainda assim conhece bem a realidade do país e já trabalhou com músicos portugueses, o que é que lhe interessa mais na música portuguesa de hoje em dia? Como é que olha para ela?

Ter visto a Ana Lua Caiano e os Criatura no ano passado… É quase como se me desse uma nova esperança. Quando vejo que há artistas que se estão a voltar para as suas tradições, isso para mim é muito fascinante. A música popular portuguesa é fascinante e rica. E isso não acontece só em Portugal. Pelo mundo inteiro há um processo de globalização que tende a ser muito massacrador das culturas locais. Então, toda essa indústria, os streamings, vão sendo condutores do pensamento de forma a diminuir o interesse dos jovens pelas próprias tradições locais, em detrimento da música da indústria massificada. Enquanto vejo artistas como eles, a voltar-se para as suas próprias raízes, a buscar conhecimento e a manter viva a sua tradição, e ao mesmo tempo não fazendo o que foi feito, mas alimentando-se do que foi feito e propondo coisas novas, inovadoras, que carregam dentro de si uma força da tradição… Isso para mim é muito emocionante. E dá-me a possibilidade de conhecer essa tradição. Mesmo tendo recebido muito da música portuguesa através do processo de colonização do Brasil, quando venho para cá e consigo enxergar a música tradicional com outros olhos, acho isso muito bonito.

Está a trabalhar num novo disco?

Já comecei a elaborar, talvez para o ano que vem. Tenho muita coisa na área da produção e é algo que me alimenta muito artisticamente, então demoro mesmo nos meus processos artísticos. Mas agora já é tempo, já está na hora [risos].


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