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Fotografia: Gal Oppido
Publicado a: 19/10/2022

Entre a tradição que garante a raiz profunda e um pensamento contemporâneo que faz avançar para novas estéticas.

Guilherme Kastrup: “A partir d’A Mulher Do Fim Do Mundo que procuro buscar um sentido mais profundo do que o puramente estético”

Fotografia: Gal Oppido
Publicado a: 19/10/2022

Desde os anos 90 que Guilherme Kastrup opera, em palco e em estúdio, como percussionista e/ou produtor ao serviço de ilustres nomes da música brasileira como Adriana Calcanhotto, Arnaldo Antunes, Vanessa da Mata, Zeca Baleiro, ou Tom Zé, para não enumerar muitos mais. Se, no entanto, este nome apenas vos parecer sonante dentro de um período temporal mais recente, a razão é bastante simples: Kastrup foi o braço-direito de Elza Soares no impactante álbum A Mulher Do Fim Do Mundo (assim como no seu respetivo espetáculo ao vivo e na sequela discográfica Deus É Mulher). Foi ele que ajudou a reafirmar e revigorar o sentido de experimentação que já pautava o perfil artístico da recém-falecida cantora ao apresentar uma visão reimaginada do samba pelos sons da atualidade e que, lançado em 2015, num período de viragem para um clima tenso na realidade política do Brasil que se verifica até hoje, deu a voz necessária a corpos oprimidos a nível racial, de classe, de sexualidade ou de género, resultando num dos mais importantes discos lançados nos últimos anos.

Naturalmente se, para muites, tal impacto canonizou Elza Soares, também Guilherme Kastup não terá ficado alheio a este fenómeno: os deus dotes continuam a ser solicitados por diverses artistas, até mesmo deste lado do Atlântico, colaborando com os PAUS no EP LXSP (2019) e assumindo o cargo de produtor do segundo longa-duração de Selma Uamusse, Liwoningo (2020). Porém, não é apenas enquanto sidekick que se faz notar e deslumbrar: editou, até à data, dois álbuns de composições originais em nome próprio, Kastrupismo (2013) e Ponto de Mutação (2018), que, por via de instrumentais de arsenal acústico e eletrónico, faz, como em muitos dos projetos com o seu envolvimento, a ponte de ligação entre passado e futuro através da justaposição entre as sonoridades estabelecidas da música tradicional brasileira e as possibilidades em aberto construídas pela música contemporânea — é precisamente este repertório do músico sediado em São Paulo que poderemos escutar na próxima quinta-feira no WOMEX, em Lisboa, e que, embora já tenha agraciado salas lisboetas como o B.Leza ou a Crew Hassan, será apresentado ineditamente na capital pelas mãos de um quarteto solidificado, que, para além de Kastrup na bateria, percussões, MPC1000 e vozes, conta com Esdras Nogueira nos instrumentos de sopro, Tom Maciel na guitarra e Victoria dos Santos nas percussões e vozes. 



Em todos os teus projetos autorais, existe o cruzamento não apenas entre múltiplas referências sonoras como também entre músices. É, para ti, fundamental, a presença de uma essência colaborativa em todo o teu trabalho, mesmo quando te encontras na linha da frente de tal?

Ahh, fundamental, absolutamente crucial [risos], é uma forma minha de trabalhar e de criar, eu sou muito dedicado a ela, digamos assim. Eu gosto muito da colaboração e dos processos de criação coletivos, colaborativos, onde todo o mundo troca as informações, e todos os discos que eu produzo têm muito essa característica, tanto os discos que eu produzo autorais como os discos que eu produzo para outros artistas têm essa forma de criação coletiva que é muito característica da minha forma de trabalhar.

Embora apresentes um currículo prolífico que já conta com cerca de três décadas enquanto percussionista e produtor ao lado de diverses artistas brasileires notóries, foi através do teu envolvimento em A Mulher Do Fim Do Mundo que o teu nome ficou colocado no mapa. Embora seja um tópico redundante e sensível, esta questão é incontornável: vês neste disco um ponto de viragem significativo na tua carreira? Existe nela um claro pré e pós-A Mulher Do Fim Do Mundo?

Eu costumo dizer que A Mulher Do Fim Do Mundo foi uma pororoca – conhece essa palavra? É o encontro do rio com o mar, você tem uma grande correnteza de um grande rio e, quando ele encontra com o mar, são ondas que se formam nesse encontro que é uma onda gigantesca. Eu acho que A Mulher Do Fim Do Mundo tem essa característica, uma pororoca artística, e espiritual também, é um disco que foi muito importante pra todo o mundo que participou e pra muita gente ao redor, porque ele juntou esse grupo de jovens artistas com pensamento contemporâneo com a Elza, que é essa entidade que ela é, e com essa coisa de fazer um disco com os compositores compondo a partir da vida dela, com toda a vivência e experiências profundas que a Elza teve. Esse disco se tornou um disco com uma importância social também muito grande porque deu a voz à Elza a um discurso que defendia as mulheres, a negritude, os grupos LGBT — então ela se tornou uma voz importante socialmente. É um disco que tem uma importância artística muito grande, realmente é impossível a gente passar em branco, na minha carreira é um vértice artístico muito profundo… Mas ele vai além disso, é um disco que tem uma importância social muito grande, ainda mais porque ele aconteceu num momento muito importante da sociedade brasileira que é exatamente esses primeiros movimentos do golpe que levaram à ascensão do fascismo aqui no Brasil, e então esse disco se tornou uma voz muito significativa para todos nós que participaram. Esse disco já é um ponto alto na carreira e a minha vida mudou muito, mesmo depois daí: mudou pela importância que esse disco teve, pela significância, porque ele teve uma quantidade de prémios que recebeu (incluindo o GRAMMY), mas também por o quanto ele mexeu internamente comigo na minha visão de mundo, nesse contacto mais íntimo que eu tive com a Elza, não só no disco mas também dirigindo o show d’A Mulher Do Fim Do Mundo, e depois o Deus É Mulher.

Então, todos esses movimentos sociais que acabaram encostando a gente me transformaram profundamente. Quando a gente sofre uma transformação artística desse porte, tudo o que a gente faz posteriormente se reflete nisso, né? Então, com certeza artisticamente isso mudou bastante, mas também mudou a forma que as pessoas e os artistas dentro do meio me enxergam. Eu acho que também abri um leque muito mais amplo de trabalho, especialmente com as mulheres negras: a partir daí eu tenho uma série de trabalhos com mulheres negras que vieram me buscar a partir dessa referência que a Elza causou, inclusive a Selma Uamusse, que é residente aí em Portugal e me conheceu via o trabalho da Elza, a Leila Maria, com quem eu lancei o Ubuntu, que é um disco todo em homenagem a África, cantando Djavan mas com um viés africano… então, a partir daí acho que também se tornou um pouco mais claro pra mim que a minha arte, quando ela é dedicada não só ao fazer artístico e ao entretenimento, mas também ligada a um propósito social, ela ganha muito mais força para mim, e acho que isso resulta no que eu ‘tô fazendo. Essa transformação tem sido a mais significativa e visível, a partir daí tudo o que eu faço procuro buscar um sentido mais profundo do que o sentido puramente estético, procuro uma conexão sobre o que é que eu ‘tô falando, como eu ‘tô falando, e como é que isso se reflecte socialmente, qual é a contribuição que eu tenho pra dar nesse aspeto social da minha arte. 

Tens colaborado com músices ligades a grupos como Metá Metá ou Passo Torto, que partilham contigo uma linguagem estética que procura esbater as linhas entre tradição e contemporaneidade e entre instrumentação acústica e eletrónica. Será esta a construção de uma nova corrente musical brasileira?   

Esse grupo que você fala, os grupos sociais e artísticos, não se consegue delimitar uma linha clara que separa uns dos outros; existe um grupo mais amplo, mas também existe um grupo dentro de um círculo mais circunspeto que é esse grupo que fez A Mulher Do Fim Do Mundo, que é o Kiko Dinucci, o Rodrigo Campos, o Rómulo Froes e o Marcelo Cabral. Esses quatro, que também fazem parte desses núcleos de grupos como Metá Metá ou Passo Torto, realmente formataram uma estética muito própria, tanto na composição como na parte instrumental, e têm exactamente essas características que você falou muito bem, que é a ligação entre o contemporâneo e a tradição. O projecto A Mulher Do Fim Do Mundo surgiu basicamente por conta disso, porque eu estava produzindo um outro disco de um artista de São Paulo, que é o Cacá Machado, o disco era o Eslavosamba, e a gente convidou a Elza pra poder fazer parte desse álbum; nesse convite, a gente foi preparar uma música pra um show de lançamento desse álbum, a gente fez um arranjo para o “Volta Por Cima”, que é um samba clássico da Elza com uma estética de mexer com o lado da tradição e o lado do pensamento contemporâneo, que esse grupo tem muito como característica principal: todo o mundo ali veio de uma raiz do samba e de outros géneros da música tradicional brasileira, mas também têm um pensamento muito moderno, muito pra frente, e a Elza é uma personagem que é muito assim, né? Ela sempre foi uma mulher conetada ao samba porque o sabe cantar muito bem, mas ela sempre foi muito além do samba e sempre teve um pensamento muito contemporâneo. Quando ela ouviu a primeira vez o arranjo que a gente fez [para o “Volta Por Cima”], ela ficou “nossa, adorei essas guitarras no samba, a forma como vocês fizeram!”, e aquela coisa de ela ter curtido essa nossa abordagem é que deu a chama inicial pra se montar o projecto.

Eu acho que é uma característica que é muito significativa: tudo o que eu faço, tanto nos meus discos autorais, o Kastrupismo, o Ponto De Mutação, Sons De Sobrevivência, todos eles têm essa ponte entre um aprofundamento o maior possível dentro da tradição da música brasileira e o pensamento de que essa tradição é o alimento para que a árvore cresça de uma forma mais ampla pelo universo, entre a tradição que nos dá uma raiz profunda e um pensamento contemporâneo que nos joga para avançar para novas estéticas, para a gente não ficar também preso a uma tradição no sentido mais minucioso, seja em instrumentação, em fraseado, ou em linguagem própria, né? Então, acho que isso faz com que esse movimento todo se forme aí de uma forma um pouco mais ampla que esse pequeno grupo, acho que a gente pode incluir outros tantos compositores e músicos que ‘tão fazendo música dessa forma como a gente tá fazendo, aqui em São Paulo, mas também no Rio de Janeiro e em outros lugares do Brasil… Eu acho que tem um movimento mesmo, um pensamento coletivo que busca essa ligação entre a raiz e o contemporâneo, entre a tradição e o moderno. Tem bastante gente: o Douglas Germano, o próprio Cacá Machado, o Celso Sim, todos participantes nesse disco da Elza, mas também, ampliando, a Tulipa Ruiz, que é uma outra compositora e também autora de uma das músicas do Deus É Mulher, que é muito importante; todo o movimento de música que ’tá se fazendo aqui em São Paulo tem muita conexão com isso.



Em Julho de 2019, realizaste diversos eventos performativos e didácticos em Lisboa, entre os quais uma atuação colaborativa com Selma Uamusse no Lounge e um workshop de produção musical no estúdio HAUS, associado aos músicos de PAUS; pouco tempo depois, veríamos o teu carimbo associado a ambos os projetos. Estes encontros influenciaram, de alguma forma, as respetivas colaborações em estúdio?

Ah, sempre tem, né? A forma como a gente vai fazendo as nossas conexões artísticas é como um novelo de lã, uma coisa vai puxando a outra e a gente vai se encandeando. Mas a minha ligação com Portugal é muito anterior a isso tudo — eu já vou a Portugal tocar com alguns dos artistas que você citou anteriormente: Arnaldo Antunes, Chico César, Vanessa da Mata, Adriana Calcanhotto… Eu fiz inúmeros concertos em Portugal, que tem uma ligação muito grande com a música brasileira, então desde a década de 90 que eu já frequento muito Portugal, tocando, às vezes também dando cursos de percussão, de produção musical, então esses fios vão sendo puxados. Em 2019, teve toda essa ligação com a produção desse disco da Selma, passei uma temporada grande e deliciosa aí em Lisboa, criando e produzindo com ela, e aproveitando também para dar esses cursos no HAUS. Depois teve essa conexão muito bacana com os Paus, a gente produziu coisas aqui em São Paulo no estúdio da Red Bull, e depois ficámos muito amigos e isso também evoluiu para o curso no HAUS, que aliás vai acontecer novamente: eu vou aproveitar essa ida para o show em Lisboa no Womex pra poder fazer um novo curso de produção musical, dessa vez eu vou fazer um curso bem ligado a uma parte que eu gosto muito da produção musical, além de toda a conceção e a organização das etapas — a parte de edição que prepara para finalização, mixagem e masterização. Vai acontecer no HAUS logo depois do Womex, na semana de 24 a 28 (de Outubro).

Como vês a importância dessa vertente didáctica dentro do espectro que engloba todo o teu trabalho na área da música?

Eu sempre gostei muito de dar aulas, só que teve uma época no início da minha carreira que eu dei muita aula até por uma necessidade financeira, aquela coisa de início de carreira em que as aulas ajudavam a dar uma sustentação. Depois, quando a vida começou a ficar muito turbulenta com muitas turnés, às vezes acompanhando vários artistas ao mesmo tempo em suas turnés, não conseguia mais um nível de estabilidade para poder continuar dando aulas regulares. Aí, durante bastante tempo na minha carreira, deixei de dar aulas, e agora voltei a dar aulas num formato que me agrada muito, que são esses cursos com tempo determinado, às vezes uma semana ou um mês de curso, então eu consigo organizar melhor o meu tempo de vida para as turnés e para as produções com essa parte didática que é muito importante.

Acho que essa troca de informações, até como eu vejo hoje em dia a função da arte na minha vida, que é uma função social, acho que é muito importante que a gente faça com que a arte não seja só um entretenimento mas que a gente consiga promover uma melhora dentro das nossas condições sociais como um todo, tanto falando das coisas que acreditamos como transmitindo conhecimentos e, especialmente, podendo alavancar pessoas que não teriam condições de ter acesso àquele conhecimento pra poder trazê-las pra dentro de um circuito de formações. Então é uma coisa que é muito gratificante pra mim, poder transmitir, poder dar aulas, poder organizar também a forma como eu penso e como eu fui acumulando conhecimentos durante esses anos todos de carreira pra poder dar aulas – quando você vai dar aulas, você precisa se organizar muito mais, né? Eu me preparei muito para ser um instrumentista, fiz faculdade de música, conservatório da parte teórica-musical, e a parte da produção musical foi surgindo naturalmente, já dentro dos estúdios, observando grandes produtores, então nunca fiz um curso de produção musical. Quando eu comecei a me procurar dar cursos de produção musical, comecei a organizar todo esse conhecimento, e acabei aprendendo muitas coisas sobre esse processo pra poder usar isso didaticamente, e é muito instrutivo, muito gratificante e enriquecedor. 

Irás apresentar o Kastrup Quarteto no Womex ’22. Tendo já marcado presença em Portugal em diversas ocasiões a acompanhar outres artistas ou em nome próprio, esta será, porém, a primeira vez que o irás fazer liderando uma banda no seu sentido mais “formal”. O que poderemos esperar desta actuação? 

Pra mim é uma felicidade enorme porque, como a gente falou, eu já fiz muita coisa em Portugal e na Europa, inclusive coisas do meu trabalho autoral também, às vezes aproveitando idas com a Elza ou com outros artistas pra poder fazer outras coisas, mas essa vai ser a primeira vez que ’tou levando a minha banda com essa preparação que eu fiz, porque inclusive no ano de 2020, quando estourou a pandemia, ‘tava com uma turné já fechada pra fazer uma série de shows com o quarteto com esse formato aí pra Portugal, pela Alemanha e outros países da Europa; aí a coisa se cancelou toda por causa da pandemia e agora vai ser a primeira vez que vou voltar a Portugal depois da pandemia e depois desse período todo, depois desse 2019 que foi tão frutífero… Uma reconexão com o público aí em Portugal, para mim, é uma felicidade enorme, e o show que vou levar mistura repertório dos meus dois álbuns, é um show que é metade do Kastrupismo e metade do Ponto De Mutação, mistura um pouco essas estéticas, fazendo também uma coisa que eu gosto muito de fazer que é provocar com que o público entre dentro de um túnel imersivo. A minha música é uma música muito imagética, ela é feita pra se formar imagens, pra fazer com que o corpo dance, se desenvolva, mas também que a cabeça pense e se crie um filme dentro dela, então o que eu procuro fazer é criar esse túnel imagético pra que a pessoa entre, se jogue ali na pintura imagética, e saia transformada no final – então, é isso que eu espero que aconteça nesse dia 20, no Cinema São Jorge.


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