pub

Fotografia: Márcia Lessa
Publicado a: 08/07/2023

A portugalidade trazida para a equação do festival madeirense.

Funchal Jazz’23 — Dia 2: de Paredes a Amália numa noite em tons de azul

Fotografia: Márcia Lessa
Publicado a: 08/07/2023

De evocações dos verdes anos em que Carlos Paredes tocou em cordas de aço aos nocturnos sombreados fadistas em que Amália cantou com cordas vocais de ouro, houve muito para se aplaudir no programa do Funchal Jazz apresentado ontem à noite.

Uma nota prévia às considerações desses dois concertos: sem que algum estudo formal se tenha feito, uma empírica circulação pelo meio do público sugere que este se faz, sobretudo, de portugueses e portuguesas, não se encontrando tantos turistas estrangeiros quanto seria de esperar após um passeio diurno pelas ruas da cidade. Poderá, claro, ser mera coincidência, mas essa foi a sensação com que se ficou e que merece registo.

Ao sexteto de Bernardo Moreira couberam as honras de abertura da noite. O colectivo estava visivelmente satisfeito por poder apresentar o registo Entre Paredes a uma tão dilatada plateia (ficou-se com a ideia de que poderia estar mais gente do que na noite anterior) e isso sentiu-se na desenvoltura do set e até na generosa comunicação do líder, que não se coibiu de falar sobre a música, sobre as ligações a Coimbra, sobre os mestres Carlos Paredes e José Afonso, sobre as suas composições e até sobre os seus companheiros de viagem.

Sobre esse álbum, Entre Paredes, escreveu-se por aqui. E nesse texto, enalteceu-se a equipa montada por Bernardo Moreira para o disco e respectiva digressão. Faz sentido recuperar essas palavras:

“A ladear Moreira estão o baterista Joel Silva, o guitarrista Mário Delgado, o pianista Ricardo Dias, o saxofonista Tomás Marques e o trompetista João Moreira. E se as composições existem preservadas no âmbar da nossa memória colectiva, os arranjos esses são filigrana nova, entrançados harmónicos originais que, de facto, fazem bem mais do que propor uma toada jazzy ou loungey para o imponente melodismo de Paredes. Nos uníssonos pontuais dos sopros, Moreira parece querer desenhar uma outra forma de expor os temas que nasciam dos longos dedos do mestre, sempre curvado sobre o seu instrumento, sempre capaz de insuflar o sopro da sua própria respiração naquela vibração tão nobre das suas cordas de aço. Cada músico aqui é também, evidentemente, solista capaz, todos sintonizados com o lado mais lírico da obra do homem dos movimentos perpétuos. E se cada um parte para esta aventura de se posicionar Entre Paredes, como o título sugere, assumindo plenamente que está a entrar em ‘edifício’ artístico alheio, também não há da parte de nenhum deles pejo algum em escancarar as portas e as janelas para permitir a entrada de uma nova luz”.

Estas “paredes” do título da obra ontem apresentada no Funchal não são apenas uma referência ao apelido do mestre guitarrista, como o líder do ensemble fez questão de frisar, mas também à própria cidade de Coimbra, onde o criador de “Verdes Anos” tinha as suas raízes, de onde era o patriarca da família Moreira e onde viveu José Afonso, outra marcante figura também evocada no concerto com uma versão tocante de “A Morte Saiu à Rua”.

O espectáculo do Sexteto de Bernardo Moreira baseou-se então no álbum dado à estampa pela JACC em 2021, começando com a incrível “Mudar de Vida”, tocando no “Canto de Amor”, na composição que Bernardo Moreira confessou ao público estar entre as suas favoritas, “António Marinheiro”, passando também pela inevitável “Verdes Anos”, por “Serenata no Tejo”, pela já mencionada peça de Zeca e ainda pela composição do pianista Ricardo Dias, “Navio Triste”.

E houve pormenores deliciosos: o drone gerado pela taça tibetana gentilmente friccionada pelo baterista Joel Silva em “Canto de Amor”, que se mostrou em excelente forma, seguro mas livre, com um pulso suficientemente solto para que o tempo rítmico soasse mais poético que metronómico, como quando solou com uma baqueta numa mão e o shaker na outra; ou a respiração que as gravações históricas de Carlos Paredes não escondem representadas na forma como João Moreira insuflou ar, vida e paixão no seu trompete bastante processado, são dois bons exemplos. Todos os músicos solaram com nítido saber, ainda que nunca de forma expansiva, como se quisessem dizer que tudo o que importa já existe nas peças originais. Dias e Marques mostraram-se tão elegantes quanto os demais, com ambos a registarem belíssimos solos na peça de José Afonso, e o líder foi farol da viagem com o seu contrabaixo pleno de melodia, cheio de uma óbvia paixão, com uma performance que puxou pela nobreza da madeira do seu instrumento.



O segundo concerto da noite deu-nos a possibilidade — felizmente não tão rara quanto isso — de testemunharmos uma estrela em plena ascensão — Samara Joy. Secundada pelos excelentes Luther Allison no piano, Mikey Migliore no contrabaixo e Evan Sherman na bateria, a artista recentemente agraciada com dois Grammys — incluindo um na importante categoria “Best New Artist”, distinção raramente concedida a gente do jazz — não se encostou ao estatuto que conquistou com o seu talento e trabalhou para arrebatar a audiência embora, diga-se, o desfecho de tal embate estivesse já definido à partida.

Samara Joy não se afasta da tradição que começou, como nos disse, apenas a estudar com afinco quando chegou à universidade, aos 18 anos, há mera meia década, mas isso não significa que não tome riscos: fez isso quando ofereceu uma vénia a Astrud Gilberto na sua interpretação do clássico de Tom Jobim “Chega de Saudade” — quer na forma como agarra o português do Brasil quer na sua inclusão das palavras da versão em inglês, “No More Blues”, Samara mostrou-se elegante, cheia de vivacidade, empolgando a plateia com uma amplitude vocal generosa que lhe permite alternar entre registos mais contralto ou mais soprano, mas sempre com a alma de quem aprendeu a puxar pelos pulmões no coro da igreja.

Em peças como “Worry Later”, a partir de composição de Thelonious Monk, que começou acapella, e em standards como “Stardust” ou “Nostalgia” de Fats Navarro, para a qual escreveu uma letra sofisticadíssima, em “Tight” de Betty Carter, na “Guess Who I Saw Today” popularizada por Nancy Wilson e tão bem rematada com uma citação a “Lately” de Stevie Wonder, ou no poema que escreveu para a composição com que Charlie Mingus deixou uma vénia a Charlie Parker, “Reincarnation of a Love Bird”, Samara deixou claro porque tem agora dois Grammys a adornarem a lareira lá de casa: ela pode ter, como referiu, chegado ao jazz apenas aos 18 anos, mas o que aconteceu, de facto, foi que descobriu que tinha desde sempre o jazz dentro de si. Sem se alongar no scat, ela mostrou que uma das suas marcas de estilo é pegar nas frases e desmontar as palavras até serem só sílabas que se prestam à sua particular forma de swingar, e isso, claro, arrancou sempre justificados aplausos à plateia.

A banda que acompanhou é feita de experientes músicos, como é claro, e embora cada um pudesse exibir a sua classe de forma discreta, nenhum teve espaço para amplos solos. O que se compreende, porque o holofote está sobre Samara Joy, que ainda assim nunca se mostrou em topo de pedestal. No final do concerto, depois de uma enérgica ponta final com um dinâmico jump blues, voltou ao palco com Amália na voz e deu-nos uma primeira amostra da sua visão de “Fado Nocturno”, dando a entender por onde poderá evoluir o seu repertório no futuro. Ela faz, obviamente, tensões de voltar, e nos camarins, após o concerto, até nos questionou sobre que outros temas de Amália são amados pelos portugueses. Se da próxima vez que Samara se apresentar entre nós ela cantar “Foi Deus” ou “Barco Negro”, já sabem onde foi buscar a ideia…

A fila que no final da noite se apresentou para a sua banca de discos era sinal de que Samara Joy tocou mesmo o público. E o que aconteceu no Funchal facilmente sucederá noutros locais. A sua aparição a desoras, juntamente com os seus músicos, na jam session do Qasbah, também nos diz que ela sabe que tem que ir à luta e manter-se próxima dos palcos onde o que importa é o que se dá quando o resto do mundo está distraído e só quem acredita no momento continua a trabalhar. E ela lá esteve, ao lado de Ricardo Toscano ou Perico Sambeat. Com o mesmo vestido, mas sem os saltos altos. Não foi preciso.


pub

Últimos da categoria: Reportagem

RBTV

Últimos artigos