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Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 04/09/2021

O jazz em primeiro plano.

Notas Azuis #66: Rodrigo Amado Motion Trio & Alexander von Schlippenbach / Sexteto Bernardo Moreira

Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 04/09/2021

Na coluna Notas Azuis vai abordar-se jazz, música livre, música improvisada de todas as eras e nacionalidades, editada em todos os formatos.



[Rodrigo Amado Motion Trio & Alexander von Schlippenbach] The Field / NoBusiness

Pensa-se no tempo como uma torre ou uma linha, uma sucessão contínua de micro-instantes que se estendem até ao infinito, algo que, visto deste presente, recua até ao big bang e avança, inexorável, em direcção ao mais longínquo e inimaginável futuro. Mas, e se em vez de nos apoiarmos nessa ideia linear, encarássemos o tempo como um vasto campo em que todos esses micro-instantes existem em simultâneo, os que já sucederam e os que ainda estão para acontecer?

De certa maneira, essa é a proposta que o Motion Trio do saxofonista tenor Rodrigo Amado – com os habituais parceiros Miguel Mira no violoncelo e Gabriel Ferrandini na bateria – nos apresenta neste The Field, extraordinária obra em que é convidado de honra o veterano pianista Alexander von Schlippenbach, figura fundacional do free jazz europeu. 

Nas fantásticas notas assinadas por Stuart Broomer, o líder Amado explica que este disco, gravado em 2019 no Vinius Jazz Festival, meros meses antes da rotação da Terra se ter alterado e o “tempo” que até aí conhecíamos ter sido suspenso, aconteceu num momento especial na vida do trio: “De repente vimo-nos a colaborar com um dos nossos ídolos de sempre. Há anos que, regularmente, escutávamos os trios e quartetos do Alex e sentíamos que ele tinha esta rara qualidade de transdução de elementos da tradição, de música de raiz, para uma nova linguagem, simultaneamente orgânica e extremamente moderna. Isto era exactamente o que nós procurávamos para a nossa própria música. Por outro lado, este encontro, em Outubro de 2019, também representou uma forte celebração da música do Motion Trio. Já não estávamos tão activos nessa altura como costumávamos estar”, explica o saxofonista. “O Gabriel tinha avançado em força com os seus próprios projectos e eu tinha começado a colaborar intensamente com outros músicos. Por isso, quando demos por nós em Vinius, a prepararmo-nos para partilharmos o palco com o Alex, estávamos extáticos. Havia esta extraordinária e intensa energia no ar.”

Talvez por terem chegado ao tal campo: aquele em que o tempo abdica da linearidade que pensamos que o define e se apresenta total e amplo permitindo a quem nele navega o acesso simultâneo ao passado e ao futuro. No saxofone de Rodrigo e no piano de Alex estão presentes esses estilhaços do tempo, com os seus discursos a carregarem, respectivamente, ecos de um classicismo que recua aos alvores do bop e de uma dimensão harmónica que parece enraizada na tradição erudita europeia. Dessa permanente tensão surge a mais-valia desta gravação, uma peça única sem pausas que se acerca da hora de duração, mas que escutada de olhos fechados parece durar apenas um instante.

O saxofonismo de Rodrigo Amado tem na última década inspirado os mais rasgados (e justos…) elogios, mas não será displicente reconhecer que neste trabalho alcança uma espécie de pináculo, talvez porque o piano de von Schlippenbach o liberte para outro tipo de explorações, menos habituais noutros projectos – escute-se, por exemplo, como ele “desembrulha” a teia em que Alex o envolve e, por volta dos 45 minutos, se eleva num solo baladístico de solene seriedade e de melodismo translúcido, todo ele granular expressividade de tocante leveza. Também é verdade que esta gravação surgiu ao final de uma década de explorações do trio, por esta altura já bem rodado nos “embates” com outras figuras de peso – gravaram com o trombonista Jeb Bishop e com o trompetista Peter Evans… –, e por isso com um domínio sólido dessa gestão de diferentes dinâmicas: Ferrandini soa perfeitamente maduro, inteligente tanto nas livres pontuações com que vai marcando o discurso dos companheiros como nos silêncios em que mergulha; e Mira é aquela diáfana sombra que circula entre os companheiros, oferecendo-lhes um suave contorno de pulsares curiosos e imaginativos.

Entenda-se então este documento como retrato de um vasto campo de possibilidades, como prova do encontro de um trio de criadores puros com um mestre que aprendeu a dobrar as voltas do tempo. Juntos, Amado e Schlippenbach, Mira e Ferrandini, conseguem aqui a proeza de encaixarem pelo menos 100 anos de história musical em 56 minutos de intensa e generosa partilha. Algo que não se alcança todos os dias, mas que quando acontece merece a nossa plena atenção.



[Bernardo Moreira Sexteto] Entre Paredes / JACC Records

O “localismo”, no jazz, é uma das formas possíveis de escape ao peso do dogma imposto pela história que emana da América. Há várias maneiras de orientar essa “fuga”. Na Europa, uma das vias de afirmação de uma identidade própria passou não apenas pelo desembaraçar das voltas e reviravoltas da noção de swing como pela aproximação a uma determinada tradição erudita, pilares em que se apoiaram muitos gestos de intensa criatividade operados no velho continente, sobretudo dos anos 60 em diante. Outra via possível é pela procura de outros “standards”, erguendo um reportório próprio, distinto dos cancioneiros nascidos da cacofonia gerada pelas janelas abertas do Brill Building que, suposta e lendariamente, criavam a quem estava nas suas imediações a ideia de terem entrado num “beco” onde se escutava o ruído causado pela percussão de inúmeras “panelas de lata”.

Entenda-se assim, portanto, o trabalho que o contrabaixista Bernardo Moreira tem procurado fazer a partir do reportório de Carlos Paredes como parte dessa séria busca de uma outra identidade. Talvez procurando encontrar nos sons que emanam das vielas que circundam o Quebra Costas de Coimbra ou que serpenteiam no Bairro Alto de Lisboa uma alternativa a essa mítica Tin Pan Alley. Equipado com as “ferramentas” do jazz e as composições de um mestre que tendo nascido no seio de uma tradição cristalizada ousou, ainda assim, a invenção mais pura, o sexteto de Bernardo Moreira consegue aqui um assinalável triunfo. 

A ladear Moreira estão o baterista Joel Silva, o guitarrista Mário Degado, o pianista Ricardo Dias, o saxofonista Tomás Marques e o trompetista João Moreira. E se as composições existem preservadas no âmbar da nossa memória colectiva, os arranjos esses são filigrana nova, entrançados harmónicos originais que, de facto, fazem bem mais do que propor uma toada jazzy ou loungey para o imponente melodismo de Paredes. Nos uníssonos pontuais dos sopros, Moreira parece querer desenhar uma outra forma de expor os temas que nasciam dos longos dedos do mestre, sempre curvado sobre o seu instrumento, sempre capaz de insuflar o sopro da sua própria respiração naquela vibração tão nobre das suas cordas de aço. Cada músico aqui é também, evidentemente, solista capaz, todos sintonizados com o lado mais lírico da obra do homem dos movimentos perpétuos. E se cada um parte para esta aventura de se posicionar Entre Paredes, como o título sugere, assumindo plenamente que está a entrar em “edifício” artístico alheio, também não há da parte de nenhum deles pejo algum em escancarar as portas e as janelas para permitir a entrada de uma nova luz. 

Nesse sentido, a esplendorosa versão de “Verdes Anos” é sintomática desse fundo pensamento que Moreira devotou a esta tarefa ambiciosa de reimaginar a obra do mestre no contexto de uma outra linguagem, com o trompete pleno de poesia de João Moreira a sublinhar de forma tão inteligente quanto subtil as evidentes ligações entre o maior dos “standards” de Paredes e o clássico “Summertime” de Gershwin adicionando à “festa” para os nossos ouvidos algo da solenidade que Miles imprimiu à sua leitura do “Concierto de Aranjuez”.

Outra peça triunfalmente reinventada é “A Morte Saiu À Rua”, criação gigante de José Afonso, que aqui renasce no piano de Ricardo Dias, pleno de vibração e vida, depois é reafirmada no uníssono dos sopros (delicadamente sublinhados em contraponto pela guitarra) antes do alto de Tomás Marques nos oferecer um belíssimo solo a que o piano responde depois com outra lírica abordagem à comovente melodia originalmente gizada pela dor de Zeca. E depois há a bateria de Joel Silva, a mergulhar no balanço dos nossos modos populares, tão longe do swing nascido na Congo Square quanto é possível a alguém que há-de ter acordado muitas manhãs com o ribombar dos gaiteiros que percorriam as mesmas ruas onde, em tempos de má memória, a morte por vezes andava à solta.

Não há dúvidas aqui: este jazz é mesmo “nosso”.

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