[TEXTO] Gonçalo Oliveira [FOTO/CAPTAÇÃO DE VÍDEO] Sebastião Santana [EDIÇÃO DE VÍDEO] Luis Almeida
A rimar há cerca de dez anos, Fugitivo apostou todas as fichas em Cara & Coroa, o seu disco de estreia que foi editado no mês passado. De Angra do Heroísmo para todos os cantos do território português, o rapper montou uma equipa com recurso aos “locais” para compor aquele que é o seu mais ambicioso trabalho até à data. E se isso pode soar a uma qualquer limitação técnica, a verdade é que Cara & Coroa surge na linha da frente em todos os sentidos — dos vídeos de Joel Aguiar à produção de Guesswho e posterior tratamento áudio por Rodrigo Rodrigues da Soundvision, sem deixar de lado, claro, a pertinência lírica imposta nos versos de Fugitivo.
O Rimas e Batidas apanhou o rapper em Lisboa e aproveitou para trocar algumas impressões sobre o álbum de estreia, bem como perceber quais foram as maiores influências que o inspiraram a dar este salto qualitativo na carreira. No meio da confusão de uma cidade que já quase nunca dorme, sentámo-nos com Fugitivo no Centro de Documentação e Investigação do Museu Arpad Szenes – Vieira da Silva para “beber” um bocado da sua história.
Cruzei-me com o teu nome pela primeira vez no documentário AZ-RAP: Filhos do Vento e lembro-me de ter calhado numa fase em que estavas mais resguardado da música. Numa das tuas declarações por lá, explicavas que te tinhas afastado da escrita por dois anos. O que é que te motivou a fazer essa paragem?
Talvez fosse necessário dar um passo atrás para dar os tais dois em frente. Foi uma altura de introspecção e talvez alguma desmotivação quanto ao hip hop. O sentimento continua sempre mas talvez a inspiração e a vontade… Às vezes são coisas que são um bocado vulneráveis. Foi isso que se passou na altura. E, como em tudo na vida, vamo-nos um bocado abaixo e depois, quando voltamos ao de cima, vamos com tudo. Chegamos com tudo.
O Cara & Coroa foi o teu disco de estreia mas tu tens material anterior a essa fase em que te decidiste afastar por um pouco.
Tenho um EP, Sinopse, de 2012. Tenho um LP que eu não considero álbum — sei que toda a gente diz que isso é um álbum mas para mim não é — o Segundo Plano, de 2013. E tinha ainda dúzias e dúzias de sons soltos. Na altura eu estava muito activo e depois tive esse interregno. Agora voltei para ficar e com força.
Fala-me da tua história. O que te levou até chegares a esses projectos? Lembras-te do ano em que começaste a rimar?
Sim. Faz por esta altura dez anos. Foi por volta de 2008/2009. Claro que é sempre aquela dica de iniciante, na brincadeira com improvisos na rua, freestyles, umas coisas muito amadoras. Isso foi evoluindo e levando-me a um compromisso um bocadinho mais sério. Mas nunca completamente focado a 100% na música como é agora.
Tinhas alguma referência, tanto a nível nacional como internacional? Ou até mesmo regional, como acontece muitas vezes, damos por nós afeiçoarmo-nos ao rap que nos é próximo.
Na altura sim. Inspirei-me muito nos que estavam à minha volta a começar. A tal malta dos improvisos. Bebia muito dessa fonte. Quanto a nomes maiores nos Açores… Existia um mas não me identificava muito com ele. Passava-me um bocado ao lado. As minhas referências eram mais aqueles nomes cliché nacionais, Sam The Kid, Valete… Depois houve uma altura em que só ouvia hip hop americano e francês.
Desse hip hop americano e francês, houve algum nome em particular que te tenha marcado mais?
Dois dos meus rappers favoritos na altura não eram muito consensuais entre o público. Eram o Joe Budden e o Evidence, dos Dilated Peoples. A partir de 2012, mais ou menos, comecei a focar-me mais em J. Cole e Kendrick, que são os nomes cliché de agora. Por acaso, lembro-me de os ouvir numa fase ainda muito inicial para eles. Foi muito bom ter apanhado isso. Saquei as mixtapes do Cole do Pirate Bay. [risos] Também as do Drake, do Kendrick, por aí.
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Nota-se um grande salto técnico dos teus projectos anteriores para este teu álbum. Mudou alguma coisa no teu mindset quando decidiste começar a abordar este projecto?
Lá está. Mudou o compromisso. Querer as coisas quase numa de OCD. Querer um perfeccionismo ao ponto de puxar por todos. Montar uma equipa e tentar que todos dêem o seu melhor. Foi um bocado por aí neste álbum. Tanto que o álbum era para ter saído em 2017 e saiu este ano. Porque eu não estava muito contente… Eu estava contente mas não estava no ponto como eu queria para o lançar. Saíram dois singles no ano passado mas os vídeos não estavam como eu queria. Tive de dar outro passo atrás para repensar na estratégia e ter tudo com brio. A palavra-chave para isto tudo é “brio”.
Passaste a trabalhar sempre com as mesmas pessoas. O Guesswho foi aquele nome que se manteve em quase todo o disco. Como é que deste com essas pessoas? Já eram teus amigos antes de formares a equipa ou foste mesmo à procura até encontrares os profissionais que te enchessem as medidas?
Os primeiros vídeos — e isto sem estar a querer denegrir a imagem de alguém em específico — não vendiam. Não “vestiam” bem a música. Depois passei a trabalhar com o Joel Aguiar, também lá de Angra do Heroísmo, que começou a tratar da parte do vídeo como eu idealizava. O Guesswho já o conheço desde o ciclo. Por circunstâncias da vida estivemos sem falar durante alguns anos. Mal tive a ideia de partir para um álbum arranquei eu com o processo de produção. Eu produzo mas admito que não é algo que me puxe tanto com a parte de MC. Já tinha falado com o REIS, que tem um instrumental lá. Depois falei com o Guesswho e combinámos uma sessão de estúdio. De uma sessão de estúdio passaram para 70 ou 80. Há rascunhos, há instrumentais que ficaram na gaveta. Eu até lhe digo para lançar uma beat tape. Ou várias. Que ele tem muito instrumental para sair.
Foi tudo feito em estúdio ou também trocavam ideias pela Internet e trabalhava cada um no seu espaço?
Isso pode ter acontecido pontualmente. Na maioria das vezes era na sessão de estúdio que ele me produzia o beat e eu não escrevia a letra toda mas já tinha uma ideia base. Às vezes ia gravando umas dicas enquanto ele produzia o instrumental. Foi mais por aí. Um trabalho em conjunto. Costumo dizer que o álbum é tão meu como é dele.
Sei que ambicionas descolar-te daquela ideia de seres apelidado enquanto rapper dos Açores. O teu álbum já saiu há um mês. Deu para teres algum feedback deste lado do oceano?
Sim. Para te ser sincero, o feedback tem sido quase todo vindo de cá. Posso dar-te o exemplo das vendas físicas. 95% foram para Portugal Continental. 5% foram para os Açores. Claro que tenho muito orgulho em ser de onde sou. Não mudaria isso por nada. Mas também é gratificante — e é o objectivo — estar a vender e a ser exposto aqui, que é onde está o mercado. Estou muito contente por isso. É bom sinal.
E o facto de seres dos Açores faz com que abordes a escrita de uma forma diferente. Apesar de fazer parte de Portugal, cresceste rodeado de um ambiente e uma realidade diferentes do que temos no continente.
O disco tem algumas referências. Algumas até são um bocado subliminares. Acho que só digo que sou das ilhas uma vez, de forma explicita, no álbum. Mas subliminarmente encontras muitos “pózinhos” lá. E apesar de ser de lá, eu vivi aqui dois anos, depois tive uma temporada nos Estados Unidos…
Acabas por ser um produto de várias culturas.
É isso. Ficar sempre no mesmo sítio… Sejas dos Açores, Lisboa, Porto, onde for. Acho que é sempre bom sair da zona de conforto e beber de várias fontes. Isso para a música é óptimo.
Escolheste 16 faixas para integrar a versão final do álbum. Abordas temáticas que vão desde o egotrip ao amor, tens músicas em que te despes e mostras também muito do teu “eu”. Escolheste alguma linha de pensamento para juntar estes temas? Por exemplo, ao ouvi-los por ordem, da faixa 1 à faixa 16, há alguma história que tenhas criado na tua mente ao conceber o disco?
Esse foi o grande desafio de fazer um álbum. Eu sempre tive essa ideia na cabeça. Apesar de o álbum não ser conceptual, tem toques disso. Eu queria que desde a 1ª faixa até à 16ª tu entrasses numa viagem. Apesar de um som chocar completamente com outro — tens uma faixa de amor e a seguir vem uma de egotrip ou mais consciente. A seguir ao single mais comercial tens a “Mundo é Deles”, que é das mais líricas e mais complexas em termos de escrita. Até o instrumental. No início parece quase um acapella, só com um sample e o kick, e depois rebenta numa onda quase trap no final. É por aí. Tem muito choque mas eu tentei que tudo jogasse. Sónica e liricamente.
Há alguma faixa que te tenha deixado mais orgulhoso depois de a terminares? Seja por um verso que consideres que te saiu na perfeição ou um tema no qual te tenhas conseguido exprimir com melhor facilidade sobre algo.
A faixa mais vulnerável, para mim, é a “QMD”, produzida pelo Reis. Gosto muito dessa. É muito crua. Tenho algumas favoritas mas depende do mood, porque o álbum é um bocado versátil. Se eu tiver numa de egotrip e de banger talvez vá para a “Topo”. Mas a que é mais consistente é a “Vice-Versa”. Isto agora é um spoiler: o álbum era para se chamar Vice-Versa. Depois vi que já havia um rapper que estava a fazer promo de um projecto que ia ter esse nome e então mudei. Mudei para Cara & Coroa mas mantive esse som. E nesse som, como ia dar o nome ao álbum, esmerei-me completamente para explicar o conceito. Daí ter dois instrumentais na mesma faixa. Essa é talvez das minhas favoritas mesmo.
E no que diz respeito à sua história? Ou seja, há alguma faixa que tenha nascido de algum episódio em particular de quando estavas em estúdio com o Guesswho.
Acho que foi mesmo a primeira. Porque não sabíamos para o que é que íamos.
Qual é que foi?
“Álbum do Ano”. [risos] Logo aí vês a motivação. Isso do “Álbum do Ano” pode parecer que me refiro às críticas, que este ia ser o álbum do ano. Mas foi quase um grito de motivação para dentro da equipa, para mim, para o Guesswho. Esse instrumental foi feito na primeira sessão de estúdio e foi literalmente eu a mostrar-lhe os samples que eu tinha e ele a mostrar-me os dele. Havia aquele dos OutKast, da “Jazzy Belle”, que já foi flipado várias vezes, mas ele fez uma inversão naquilo e eu “ok, vamos fazer um álbum.” [risos]
Isso é uma ideia interessante. Provavelmente não tinhas ideia do que iria acontecer no resto do disco, nem sabias sequer se o Guesswho iria ser o teu parceiro no resto desta aventura. No entanto, fizeste questão de marcar esse statement logo na primeira faixa que fazes, servindo de mote para tudo o que viria a seguir. Elevaste logo a fasquia para ti próprio.
E para ele também. Apesar de me considerar humilde, eu acho que é importante ser competitivo. Ainda por cima agora, com tantos rappers, e de qualidade, temos de ser competitivos. Estou sempre a dizer isso e a tentar incutir isso na equipa, ao Guesswho, ao Joel, ao Rodrigo — que misturou e masterizou o álbum — que nós não podemos dormir porque os outros não estão a dormir. E isto não é numa de confronto. Não precisa de ser em confronto com eles, directo. Porque isso dá canal e dá buzz para os dois lados. É aquela competição do género: eu estou no sofá e há um rapper no mesmo nível que eu que está no estúdio durante oito horas. Quem é que vai ganhar no final do dia? É o gajo. Ele nessas oito horas fez dois sons e eu nada. Tento sempre lembrar-me disso. Eu estou no come up. Estou atento. Vejo as stories do pessoal nos concertos mas nunca é numa de inveja. Se eu não estiver a fazer nada e te vir a dar um concerto, eu vou escrever. Vou fazer qualquer coisa. Porque eu não posso estar parado e tenho de estar nesse palco também. É por aí.
Sobre o não estar parado, tenho vindo a formar uma ideia sobre o teu disco. Foram precisos muitos anos para que a sonoridade do hip hop em Portugal Continental chegasse onde chegou hoje — já consegue ombrear ou mesmo superar alguns dos casos da América e restante continente europeu. Aquilo que seria o mais “normal”, em princípio, seria que as ilhas ainda demorassem um pouco mais a acompanhar esse salto, até pela escassez de exemplos de renome no âmbito nacional. Tecnicamente, o Cara & Coroa está tão bom ou melhor do que algumas das coisas que se vão fazendo por Porto ou Lisboa, por exemplo.
Desde já obrigado. E sim, foi trabalho. “Beber” muito. Eu acho que um dos grandes “problemas” é que o hip hop português tem tanta qualidade, que eu posso encher uma playlist só com rappers portugueses e ouvir todas as semanas, porque vou estar a ouvir boa música. Mas ao mesmo tempo, como rapper, não é muito bom estar a ouvir a “competição”. Subconscientemente tu acabas por ir buscar uma dica ou um flow. Depois fica tudo na mesma linha. O que eu fiz foi beber muito dos EUA e França. Já me disseram que talvez tenha bebido um bocado de J. Cole. É um elogio. Como passei anos e anos com os álbuns e as mixtapes dele em repeat, é normal que tenha bebido disso. Pode ter sido por isso que subi. Esse interregno de dois anos serviu para isso também.
Estamos agora a chegar à época dos festivais de Verão. Este disco já te abriu alguma porta a nível de concertos?
Estamos a tratar disso e também à espera de convites. Como o álbum foi lançado em Abril, fica um bocado em cima dos festivais e semanas académicas. Mas já estamos a preparar concertos para depois dos festivais, com várias datas, e o objectivo é mesmo promover o álbum em Lisboa, Porto, onde for — Portugal Continental e ilhas também. Fazer vida disto.
Já o apresentaste ao vivo?
Já o apresentei em Angra do Heroísmo mas foi uma cena muito casual. Toquei dois ou três sons. Foi mais uma festa do que uma apresentação oficial. Dei foi concertos antes do disco. Estive em São Miguel no festival Tremor. Logo aí mostrei o álbum todo. Faltavam três semanas para o lançamento e quis logo apresentá-lo. Agora estamos à espera de mais e já temos algumas coisas in the works.