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Fotografia: Mário Filipe Pires & Nuno Pinto Fernandes
Publicado a: 30/07/2022

Tradições sonoras lusitanas e castelhanas.

FMM Sines’22 – 29 de Julho: As emoções à flor da pele de Fado Bicha e Niño de Elche

Fotografia: Mário Filipe Pires & Nuno Pinto Fernandes
Publicado a: 30/07/2022

As neblinas matinais a surgirem do mar marcaram o passo das primeiras horas de Sines nesta sexta-feira (29). A brisa, agradável à pele, escondia os raios de sol quente, revelando aragens de ameno saudável a servirem de alimento às energias (bem) necessárias para ultrapassar o dia. Afinal, o cansaço (infelizmente) já começa a pesar em mente e corpo, mesmo que o prazer e a excitação de ver novos concertos, conhecer novos nomes, se mantenha em alta.

Passemos, então, ao que realmente importa, e desloquemo-nos para o interior do castelo de Sines para descobrir o que o terceiro dia da nossa passagem pela edição de 2022 do Festival Músicas do Mundo tinha para nos surpreender. Se o dia, contudo, era ameno, pelas pouco depois das 18h certamente aqueceu. A razão é muito simples de apontar: o concerto de Fado Bicha a abrir as hostilidades desta sexta-feira no interior do Castelo.

Dúvidas já poucas restam da criatividade artística – afinal, OCUPAÇÃO, o seu disco de estreia, é um álbum magnânimo na sua qualidade – e da importância que Lila Fadista e João Caçador têm no universo da música portuguesa. O duo que, em palco no FMM, se apresentou em formato de trio (Labaq veio dar uma mãozinha), continua a oferecer “abanões” ao sistema patriarcal vigente (no fado e em Portugal), a expandir os horizontes de muita gente com o seu “artivismo” e a dar visibilidade às estórias da comunidade queer que, de outra forma, não teriam oportunidade de serem contadas. 

Admitimos: é complicado não se ficar emocionado com o caminho que Fado Bicha tem traçado e que, imaginamos nós, continuará a traçar. Perante um Castelo essencialmente lotado, os Fado Bicha não só fizeram a festa com a inclusividade que os carateriza, criando um safe space para todas as pessoas poderem exibir a sua identidade e os seus dotes de dança sem qualquer julgamento desnecessário, como deram um excelente concerto marcado pela sua forte componente de consciencialização e ativismo. No fim de contas, tudo isto também são pensamentos a olhar para o coletivo como resposta, não é?

Trazendo OCUPAÇÃO para apresentar, o espetáculo de Fado Bicha no FMM girou muito em torno do seu primeiro disco. Contudo, antes de entrarmos nesse universo muito próprio, os Fado Bicha lembraram que, afinal de contas, respiram fado e a sua história, mesmo que queiram criar futuros mais inclusivos para a canção tradicional portuguesa. A sua versão de “Não Digas Mal Dele”, canção de Amália Rodrigues, abre o concerto, marcada pelos acordes suaves de guitarra elétrica tocada por João Caçador e pela voz de Lila, carregando a dor e o orgulho de milhares de queers portugueses, da história (e de hoje), que foram (e vão) enfrentando a sociedade patriarcal como podem. Repita-se: emocionante? Sem margem de dúvida.

Daí, os Fado Bicha prosseguiram a explorar o seu catálogo mais a fundo. Primeiro, visitaram OCUPAÇÃO para relembrar a importância do 25 de abril com “Povo Pequenino”, recebida com muitos passos de dança por parte do público, e logo a seguir, homenagearam o ator Bruno Candé, assassinado há dois anos num crime racista, com uma versão recheada de várias emoções de “Lisboa, Não Sejas Racista”. Tal como Lila Fadista bem lembrou antes da faixa, ainda temos muito a fazer, enquanto povo e sociedade portuguesa, para descolonizar pensamentos e currículos de forma que se aprenda a verdadeira história de quem tanto sofreu às mãos do colonialismo branco e de sistemas patriarcais que, nas entrelinhas, continuam vigentes ainda hoje. Se é para dizer as coisas, que seja assim: com coragem e sem papas na língua.

Muito do sucesso que podemos atribuir ao concerto de Fado Bicha no FMM provém muito da forma como o espetáculo foi organizado. A troca entre faixas mais emocionais e canções mais bem-humoradas foi permitindo jogar com a consciência dos assuntos a tratar entre faixas. “O Namorico do André” certamente elevou espíritos e morais com o pedido para “Abanem a raba!” de Lila, mas rapidamente voltamos ao universo de introspeção com “Fado Alice”, uma canção a gritar Alfama na sua sonoridade, mas uma Alfama do futuro, inclusiva para todes. As palmas em ovação a surgir no final desta interpretação foram bem merecidas.

O espetáculo dos Fado Bicha continuou com um duplo imaginar do que poderia ser uma realidade para alguém queer na história do fado português que, relembramos, além de suposições, tem mesmo muito poucos intervenientes abertamente pertencentes à comunidade. Primeiro, a sua rendição de “O rapaz da camisola verde”, composição de Pedro Homem de Mello, foi de arrepiar (ainda estamos a pensar no clímax desta versão…), enquanto “Lila Fadista” manteve os nervos à flor da pele em mais um momento de pura catarse emocional para quem ali se encontrava presente. 

Se o ambiente se encontrava ligeiramente pesado, mas mesmo assim, de festa e orgulho, o próximo tema tocado pelos Fado Bicha foi um dos mais árduos de ouvir – no melhor sentido da coisa – nesta tarde em Sines. “Fado do ciúme”, mais uma faixa de OCUPAÇÃO, ganhou uma intensidade ruidosa em cima de palco, própria para o seu tema de relações e amores tóxicos, colmatada com uma performance vocal de Lila Fadista que, à semelhança do resto do espetáculo, não teve nenhuma falha. 

Para se elevar espíritos, os Fado Bicha deixaram para o final três das suas melhores canções. Primeiro, transformaram o Castelo num verdadeiro arraial com “Crónica do maxo discreto” – estamos certos de que, onde quer que esteja, António Variações se terá emocionado a ouvir o seu legado musical a influenciar coisas assim bonitas. De seguida, invocaram o seu mais recente teledisco, “ESTOURADA”, num momento que tornou folia eletrónica em ativismo contra a tauromaquia (mais uma vez, do lado certo da história), antes de abandonarem o palco perante grandes aplausos do público. Se o final definitivo podia ter sido aqui? Podia. Mas se o orgulho é para relembrar em festa total, os Fado Bicha regressam para encore com “Marcha do Orgulho”, a fechar com chave de ouro um dos concertos mais bonitos que o grupo já teve a honra de dar. Da nossa parte, só podemos estar felizes de termos presenciado mais este bonito capítulo a ser escrito na história de Fado Bicha – que se escrevam ainda mais no futuro.

Dado por terminado o espetáculo de Fado Bicha, tomámos a decisão consciente de descansarmos a raba e as pernas durante o próximo par de horas para termos energia plena (ou a que ainda nos resta, vá) para nos lançarmos sob o concerto de Niño de Elche. O artista multidisciplinar espanhol, que bem conhecemos das suas duas colaborações com C. Tangana, trouxe ao FMM um espetáculo que correspondeu às nossas expectativas e que nos conseguiu ainda impressionar pelo constante fator surpresa empregue ao longo do seu concerto. 

O significado da palavra “eclético” não é suficiente para descrever a discografia de Niño de Elche. Podemos encontrar momentos próximos do flamenco tradicional na sua discografia, redefinições modernas do estilo que mais o caracteriza enquanto cantor e coisas que vão desde momentos mais rock e dançáveis até a mais bela música erudita. Portanto, o que une estes universos? Um punho de ativismo e consciência política, antifascista e feminista, presença constante na música do artista, não importa qual o estilo que esteja a explorar no momento.

Sendo assim, o concerto de Niño de Elche na edição de 2022 do FMM deambulou um pouco por todo o tipo de explorações sonoras. Foi precisamente o som de um drone incessante, tocado em sintonia pelo guitarrista e pela pessoa responsável pelas teclas e programação adicionais durante o concerto, a abrir o espetáculo. Quando Niño entrou em palco para adicionar vocalizações ao momento, percebemos que iríamos estar perante um dos concertos mais singulares do FMM de 2022, ainda antes das sequências e padrões se desemaranharem na intensidade de “Flor-Canto”, faixa que fecha Colombiana, álbum de 2019 onde o artista explorou a relação do flamenco com a América Latina.

O jogo entre intensidade e emoção carnal marcou muito do concerto de Niño de Elche e manteve-se bem vivo durante o seu próximo car de canções. “Informe para Costa Rica”, faixa retirada de Voces del Extremo, revelou a arrojaria do artista em desconstruir as suas próprias criações em cima de um palco, enquanto “Tangos de la Ayahuasca” atirou-nos para uma conceção pós-moderna do estilo que dá nome à faixa, numa mistura entre bairro e cosmopolita onde barreiras entre géneros musicais são quebradas para aumentar a componente emotiva da coisa.

Mas se é mesmo para falar de emoção à flor da pele –o hot topic desta sexta-feira no FMM –, a versão ao vivo de “Deep Song de Tim Buckley (Lorca)”, faixa que faz parte do excelente Antología del Cante Flamenco Heterodoxo, revelou-se como um momento mágico. A sua atmosfera noir foi-se transformado em ansiosa beleza, terminando com ataques viscerais consecutivos perante o seu microfone contra o chão do palco, partindo-o no final, num momento digno de qualquer artista que se diga punk e saiba como a atitude punk se deve manifestar em cima de um palco – sem se querer inserir em qualquer caixinha diabólica de estilos pré-concebidos e com vontade da sua música puder incutir uma revolução a qualquer momento.

Depois da troca de instrumento (microfone) a ser realizada com sucesso, Niño e os seus acompanhantes em palco procederam a tocar duas canções que podemos ver como as mais próximas do flamenco dito tradicional do seu set. Com direito a acompanhamento extra de guitarra clássica do próprio artista, “Fandangos y Canciones del Exilio” e “Caña por Pasodable de Rafael Romero El Gallina”, ambas também de Antología del Cante Flamenco Heterodoxo, foram tocadas com uma tristeza inerte e emoção forte – afinal, quanto valerão as cordas vocais de Niño de Elche, alguém sabe? – fazendo o público deambular e, na realidade, prepara-se para o que aí vinha para fechar o concerto.

Em 2021, Niño de Elche lançou La Exclusión, um disco contendo quatro peças, cada um com quase 20 minutos, perdidas no universo da música experimental entre o drone, a eletrónica, o próprio flamenco, e a música ambiente. Ora, para terminar um concerto, fez-se ouvir no Castelo “Europa”, uma das peças do longa-duração, que pode muito bem dizer-se capaz de ter virado o castelo de Sines de pantanas para o ar. Que raio ali se passou? Não sabemos bem explicar, mas sabemos o seguinte: gostamos mesmo muito e ficamos de sorriso alargado de ver o FMM a continuar a contribuir para a educação cultural das massas para novas sonoridades, novas explorações e novas fontes criativas. Que continue a ser assim daqui para a frente.

O Festival Músicas do Mundo termina este sábado (30), com atuações de nomes como Omara Portuondo, Pedro Mafama ou Seun Keuti & Egypt 80, entre outros.

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