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Fotografia: Tim Saccenti
Publicado a: 11/03/2022

A esperança em quem faz das rimas coração.

Fly Anakin: “Podia estar a viver em qualquer parte do mundo porque sinto que a minha carreira só depende da Internet”

Fotografia: Tim Saccenti
Publicado a: 11/03/2022

O final da década passada trouxe o rap alternativo, independente e de cariz DIY novamente à tona. Os regressos a uma vida artística mais activa de Earl Sweatshirt, Roc Marciano, The Alchemist, Evidence ou DJ Muggs contrastavam com o surgimento de novas vozes, como as dos Armand Hammer, Griselda, Navy Blue ou Pink Siifu e tornavam a cultura underground do hip hop norte-americano mais rica do que nunca.

Um dos nomes que fez parte do rol desta revolução, mas que tardou um pouco mais a dar nas vistas, foi o de Fly Anakin. Nascido Frank Walton, o rapper de Richmond, Virgínia, é a estrela que mais cintila no colectivo Mutant Academy, do qual fazem também parte Ohbliv, Big Kahuna OG ou Graymatter.

Apesar das dezenas de trabalhos que editou e de se ter estabelecido como um herói urbano da cidade onde cresceu, o reconhecimento vindo do exterior tardava em chegar-lhe. Em 2019, um evento mudou tudo. Fly Anakin integrou o alinhamento para uma festa que decorreu em Brooklyn, baptizada Black Be Tha God, juntamente com Pink Siifu e Maxo, e na plateia estava Dan Horitz, A&R da Lex Records, que estava numa demanda para encontrar novos talentos para o selo discográfico que, em 2001, nasceu no seio da Warp Records para abrigar as sonoridades mais fora da caixa que estavam a surgir no hip hop.

O contrato com a Lex foi assinado quase imediatamente, mas foram necessários três anos, com uma pandemia pelo meio a atrapalhar ainda mais as coisas, até que o rapper se estreasse pela label nas devidas condições. Durante esse período, nunca baixou os braços: manteve-se como um dos nomes mais assíduos nas edições da Mutant Academy, lançou os LPs At the End Of the Day, Pixote ou The 8’s (2014​-​2018) e ainda uniu esforços com Pink Siifu para uma aventura que resultou em dois brilhantes discos, FlySiifu’s e $mokebreak, ambos já sob a alçada da Lex Records.

Esta sexta-feira lança aquele que, por motivos técnicos, considera ser o seu álbum de estreia. “O primeiro da sua espécie” e já com sucessão à vista, conforme apontou ao Rimas e Batidas numa chamada através do Zoom. Em quase meia hora de conversa, levámos Fly Anakin a recordar os primeiros passos enquanto MC, a explicar em que moldes foi esculpido o seu mais recente trabalho e, claro, a tirar a limpo o que anda a preparar juntamente com Madlib, o nome mais sonante a surgir na ficha técnica de Frank.



Eu gostava de voltar um pouco atrás e começar por perceber um pouco melhor do teu trajecto. Como é que se deu a tua ligação ao rap?

Eu acabei por me tornar amigo deste gajo, o Henny L.O., e nós andámos juntos a actuar em eventos locais. Showcases e cenas desse género. Nessa altura, acho que as únicas pessoas que eu andava a ouvir eram o Nickelus F e o Ohbliv. Também os conheci nessa fase. Começámos a dar os nossos showcases, uma cena muito humilde. Sabes os Divine Council? Eles também surgiram nesse mesmo meio. Lembro-me de nos cruzarmos nos mesmos espectáculos. Essa foi uma altura muito interessante na cena de Richmond. Havia muita coisa fixe a acontecer. Estavam a surgir pequenos circuitos de rap e trap. Richmond era um lugar realmente interessante para mim, nessa altura em que eu comecei a ligar-me mais à música. Mas as coisas já não são assim. Richmond tornou-se no oposto disso.

Durante essa tua fase introdutória, há alguém que tenha marcado mais? Lembras-te de ter tido algum “herói” ou existia alguém que vias mais como um exemplo daquilo que tu querias para ti?

O meu primeiro herói musical foi o meu irmão mais velho. Ele rimou durante uns tempos. Não seguiu a cena com tanto afinco como nós, mas ele é o meu primeiro herói porque foi ele quem me começou a meter a par de merdas muito loucas. O meu tio também. Eu, provavelmente, não ouvia a música que ouvia se não fosse por eles os dois.

Tinha alguma curiosidade em perceber de onde veio a ideia do nome para o teu alter-ego. Na “Sean Price” levantaste um pouco o véu dessa história ao revelar que o nome surgiu durante uma rixa de bar.

Isso é uma metáfora. O que eu escrevi nesse tema — “got my alias from a bar fight” — significa, basicamente, que o meu nome surgiu de uma canção. Tem esse duplo sentido, de poder ser interpretado como uma “luta num bar”. Mas não. É mesmo uma “luta de barras”.

O meu raciocínio não acompanhou, na altura [risos]. Essa é uma dica fixe!

É a forma que eu tenho de manter o ouvinte interessado em decifrar as coisas [risos]. Mas o meu nome nasce literalmente de um tema. Há um gajo chamado Trademark Da Skydiver, que tem esta faixa [“Dead Fool”] em que rima, “Anakin handling words like a flying author”. Eu peguei em duas palavras dessa barra e usei-as, porque naquela altura eu estava desesperadamente à procura de um nome de artista novo. O meu outro nome era uma merda [risos]. Inspirei-me aí.

A tua carreira já leva uma certa longevidade e a prova disso mesmo é que, quando te descobri pela primeira vez — através do álbum At the End of the Day, há um par de anos — tu já tinhas bastante material editado antes e eras uma figura de culto na cena, ao ponto de teres o teu próprio mural pintado na cidade onde cresceste. A partir desse momento, a tua cotação não mais parou de subir. O que dirias que se alterou na tua vida entretanto?

É o estar limitado que muda tudo. De repente, eu tive a oportunidade para arrancar com a minha primeira digressão, em 2020, mas o COVID puxou-me para trás. Hoje, se calhar até penso que isso me veio ajudar. Nem sei… Acho que mudou o meu hustle. Fez-me ter mais garra na forma como envolvo com as coisas. Acho que me fez ponderar mais sobre as coisas. Fez-me dar mais valor a certos pormenores. Hoje, eu dou todos os meus passos com uma intenção. Penso mais na minha música e na forma como eu construo os meus projectos.



Ainda moras em Richmond?

Não, man. Agora estou em Atlanta.

Ok. Imaginava-te mais em Los Angeles. Sempre tive esta ideia que é lá que a malta vinda de circuitos mais alternativos acaba por se cruzar toda.

Agora que falas nisso… Eu já fazia rap, à vontade, há uns 10 anos quando fui pela primeira vez a L.A.. E mesmo quando fui a L.A., as pessoas que eu precisava de conhecer já as conhecia. Quando lá fui, já sabia onde ir. Acho que tudo o que aconteceu comigo foi graças à Internet. Acho que podia estar a viver em qualquer parte do mundo, porque sinto que a minha carreira só depende da Internet. Como tu disseste, eu já estava fixe a uma dada altura. Pessoas de diferentes cidades já procuravam por mim. Eu só não tinha agentes ou representantes do meu lado que me tratassem dessas merdas. Hoje, eu estou mais preparado. Tenho a minha própria equipa. A minha cena rebentou a partir de Richmond mas eu sinto que eu podia ter estado em qualquer parte do mundo, que as coisas aconteciam na mesma. Não sinto que precise de estar num sítio específico. Basta estar onde eu me sinta inspirado.

No teu perfil no Spotify, dás muito ênfase à cena DIY. Sentes que esta é a altura perfeita para se ser independente enquanto artista?

Sem dúvida. Especialmente quando sabes que tens um produto irrefutável e sabes como monetizá-lo. Ser um artista independente ainda é uma das melhores opções nos dias de hoje. Mas não acho que tentar explorar o outro lado, o das grandes editoras, seja mau. Em última instância, acho que a capacidade de tu te conseguires estabelecer por ti próprio é muito importante. Tal como tu dizias, é importante teres aquele teu culto. É importante conquistares essas pessoas que te vão empurrar, quer tu acredites, quer não.

Além da tua carreira a solo, estás também envolvido nos Mutant Academy. O que é isto ao certo? Um grupo de rap? Um grupo de amigos? Uma editora?

Até para mim é difícil de caracterizar. Umas vezes somos um colectivo, outras vezes vemo-nos como editora… Às vezes somos só um grupo de amigos que faz uns temas juntos. Temos muita cena a acontecer e todos temos as nossas próprias carreiras e álbuns. Às vezes temos de meter as cenas de Mutant Academy em espera para não atrapalhar as outras coisas. Eu sou da opinião de que, se cada um de nós se estiver a dar bem no seu percurso a solo, então os Mutant Academy vão estar a safar-se. Mutant Academy morre connosco, essencialmente. Se nós não estamos a fazer música, Mutant Academy não existe. Estamos neste momento a planear o lançamento de uma mixtape, para breve. Temos como objectivo expandirmo-nos bastante este ano. Queremos lançar mais qualquer coisa em grupo, porque é algo que já não fazemos há algum tempo. Tem acontecido tanta cena a solo… Isto está muito caótico, de momento [risos].

Parte desse caos reflecte-se nisto: estares à conversa com um jornalista português a propósito de um álbum que vais lançar por uma editora independente de renome do Reino Unido. Como é que chegaste à Lex Records?

Houve um espectáculo em Nova Iorque chamado Black Be Tha God, em que eu participei, mais o Siifu e o Maxo. O Dan, da Lex Records, estava lá e estava à caça de talentos. Eles gostou da nossa actuação e convidou-nos para a editora. E isto foi em 2019. Por isso, tenho este disco na calha há já algum tempo. Até então nunca tinha lidado com nenhuma editora. Resolvi experimentar porque, sei lá… Eu já tinha tentado de tudo antes. Foi muito tempo a fazer as coisas por mim próprio. Agora quero começar a delegar algumas dessas coisas a outras pessoas.



E este teu álbum é uma consequência do bom trabalho que fizeste com o Pink Siifu no FlySiifu’s e no $mokebreak? Ou já estava planeado editares por eles a solo mesmo antes desses projectos terem visto a luz do dia?

Eu já tinha assinado por eles como artista a solo ainda antes do FlySiifu’s ter saído. Nós assinámos enquanto grupo já depois de eu lá estar. Acho que eles quiseram apostar nos projectos com o Siifu para me darem tempo para fazer o álbum. Eu comecei a trabalhar nisso logo quando eles me assinaram, em 2019, e terminei-o em 2020. Como o FlySiifu’s também já estava pronto, decidimos focar-nos nisso primeiro. Mas os discos foram feitos mais ou menos durante a mesma altura. O Frank ficou, provavelmente, terminado entre os lançamentos do FlySiifu’s e o $mokebreak. Houve ali um compasso de espera porque estive a aguardar pelas participações desse disco.

Em termos de sonoridade: vês diferenças naquilo que apresentas com o Frank em comparação com o que tinhas feito com o Pink Siifu?

Tanto o $mokebreak como o FlySiifu’s têm muitos dos nossos elementos. Eu sinto que os nossos espíritos moram realmente nesses dois projectos, porque eu tenho quase a certeza de que tu até consegues identificar quais são os beats que foram escolhidos por mim. Se os comparares aos que escolhi para este álbum, vais ver que eles estão precisamente dentro do mesmo universo. Esse universo é… É onde eu vivo, honestamente. Aquele som jazzy que tu consegues encontrar dentro do hip hop… É uma cena que já ando a fazer há tanto tempo, que se torna difícil de não o fazer. É também dessa forma que eu olho para este álbum: ele está muito bom, mas representa um capítulo antigo na minha vida e não é, por isso, a cena mais refrescante que já fiz até hoje.

Eu ia perguntar-te sobre a escolha do título, Frank, mas quando entraste em chamada comigo reparei que é mesmo o teu primeiro nome [risos]. Achas que este é um projecto mais pessoal do que os anteriores?

Talvez se possa dizer isso. No fundo, acho que sou só eu a ser eu. Não tinha outra forma de nomear este álbum. Nada mais me estava a fazer sentido.

E depois de tantas edições, o que te fez apontar para este álbum como sendo o teu álbum de estreia?

Este é o meu primeiro álbum de estúdio. São termos técnicos… O meu primeiro álbum é o At The End of the Day. Os outros, anteriores, eram mixtapes ou projectos colaborativos, de alguma forma. Foi no At the End of the Day que eu fiz pela primeira vez aquela cena de estar a escolher beats de vários produtores com mais cuidado. Foi misturado mas não foi masterizado. Daí também eu não o ver bem como um “álbum oficial”. O Frank é o primeiro da sua espécie. Já foi masterizado, já sai por uma editora… Ele é, tecnicamente, o meu primeiro álbum de estúdio. Na verdade, ele já é o meu 20º ou 30º álbum [risos]. Mas eu estou a olhar para ele como sendo o meu álbum de estreia.

Falaste no pormenor da masterização. Em termos criativos, houve alguma particularidade que o possa também distinguir dos demais?

Acho que a cena mais diferente que fiz foi ao nível da produção. Eu andei a recolher beats de malta com quem ainda não tinha trabalhado. Tens o exemplo do Like, que só entra no álbum porque, uma vez, apareceu no estúdio para uma sessão de FlySiifu’s e lá a tocar uma data de beats para nós. A mesma coisa aconteceu com o Lastnamedavid. Ele não estava previsto para entrar no disco mas eu fui ter com ele a L.A. e ele esteve a mostrar-me beats. Eu adoro essa merda. Então acabou por ter dois beats no álbum. Acho que o único nome que eu fiz mesmo questão que estivesse comigo neste álbum foi o Foisey, mais numa de fazer uma espécie de ponte para aquele que vai ser o meu próximo álbum. Eu ando a tentar não negligenciar este álbum, porque estou mesmo a adorar o próximo. Muito mais do que este, para te ser honesto. Mas as pessoas merecem ouvir este também. Mas sim, este foi o projecto no qual eu fui além de Mutant Academy. Ele soa a Mutant Academy mas não foi feito exclusivamente por membros de Mutant Academy. Soltei-me desse conceito. “Se este beat me está a soar bem, eu vou já guardá-lo numa pasta. Se ele entrar no álbum, entrou. Não vou pensar demasiado nisso”. Posso dizer-te que foram umas 5 ou 10 faixas que tive de deixar fora do álbum. Hei-de soltar um EP, intitulado Anakin & Friend, que vai conter muitas sobras deste álbum.



É o beat que dita os teus versos ou escreves primeiro e escolhes a batida certa depois?

Eu faço os meus versos especificamente à medida do beat. É assim que habitualmente acontece. Por vezes, escrevo umas cenas antes e acontece ter de ir à procura de um beat para aquilo. E se eu não gostar do beat, não vou a lado nenhum. Já se eu gostar do beat, podes crer que não vou demorar muito tempo a terminar a faixa.

Sentes que há um contraste geracional considerável neste trabalho?

Não quero estar a ofender ninguém com mais de 30 anos, mas a verdade é que os cotas curtem aquilo que eu faço. Não sei porquê, mas curtem. O Madlib e o Evidence são dois dos cotas que fazem parte da minha vida e eles tratam-me como se eu fosse um irmão mais novo. Eu curto da cena deles e eles curtem ainda mais da minha cena. Eu nunca imaginei… Sei lá. Eu até podia imaginar que algum dia viria a trabalhar com estes gajos, mas ao ponto de eles me colocarem neste pedestal? Eu tenho 27 anos. Não sinto que esteja a fazer música direccionada para eles, de todo, mas eles ligaram-se à minha cena. Essa é a beleza da música: tu nunca sabes quem vai estar a apanhar aquilo que tu lanças. Demograficamente, o meu público sempre foi muito maduro. A malta que vem aos meus concertos sempre foi composta por malta com 25 ou mais anos. Por outro lado, eu tento fazer o possível para que os putos me possam compreender. Mas chegar até eles já é algo que me ultrapassa [risos].

Achas que, de um modo geral, existe hoje uma maior harmonia entre gerações? Há 10 anos, não vias com tanta frequência os artistas mais velhos a colaborar com os que estavam a surgir nessa altura.

Tenho de contrapor isso. O Alchemist, por exemplo, criou os seus próprios acampamentos de produção, para aí desde 2012. Por lá passaram o Action Bronson, o Mac Miller, o Earl Sweatshirt, ScHoolboy Q… Todos esses gajos eram extremamente novos na altura e todos eles iam a casa do Alchemist fazer música. Essa até foi uma das coisas que me inspiraram na minha trajectória.

Há uns anos houve uma fotografia de ti com o Madlib que fez correr alguma tinta. Passados alguns anos, há um resultado da vossa colaboração que está finalmente cá fora, neste caso o “No Dough”. Há mais para vir desta parceria?

Essa foto foi tirada quanto estávamos a trabalhar, para aí em 2019. Temos estado em contacto e gostava de lançar mais coisas em breve. Mas vou dizer-te que não temos tantas coisas quanto as que eu gostava. Gostava de ter 100 temas feitos com ele e nós ainda não fizemos 100 temas [risos]. É muito engraçado ver como um gajo deste tipo, que faz tantos beats, trabalha. O beat da “No Dough”, por exemplo. Eu não fazia a mínima ideia de que esse beat já tinha sido lançado. Eu sei quem é o Madlib mas eu não consegui ouvir tudo aquilo que ele lançou. São muitas beat tapes, muitas colaborações… Quando eu recebi os beats dele, andava a ouvir aquilo e escolhi os que mais gostava. Depois é que percebi que alguns eram novos e outros não, já tinham sido usados [risos]. Há um aspecto negativo quando se trabalha com o Madlib. Tens de saber o que fazer, ser calculista e falar com o Egon [risos]. Tens de perguntar ao Egon se determinado beat já foi ou não usado. Ele disse-me que o beat do “No Dough” ainda não tinha saído e eu fiquei, “cool!”. Quando lancei o som, o pessoal começou logo com o “eu conheço este beat. Este beat é velho!” Pensei, “vocês são mesmo cabrões” [risos]. Outro aspecto negativo que vem com o Madlib: os fãs dele são uma merda. Sem desrespeitar ninguém — mas, ao mesmo tempo, desrespeitando — eles são a razão pela qual nós temos de dar o litro e lançar ainda mais merdas. Eles não param de nos importunar. Juro! [risos]


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