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Fotografia: Xipipa
Publicado a: 21/07/2020

O cantautor apresentou, finalmente, o seu mais recente álbum, Revezo, em Lisboa.

Filipe Sambado no CCB: o moderno cancioneiro de intervenção

Fotografia: Xipipa
Publicado a: 21/07/2020

Há um gélido silêncio que se abate sobre o palco, ao mesmo tempo que no céu um avião rasga as nuvens em direcção a parte incerta, oriundo do recentemente rebaptizado Humberto Delgado. O público sustém a respiração e espera que Filipe Sambado dê continuidade a um concerto que começara com um propositado sossego e elevada proximidade. Para trás ficaram “Este Fardo”, tema que deu protagonismo aos sintetizadores que romperam decididamente os altifalantes e ao desfile de palmas do refrão que se fez sentir no preciso tempo; “Telhados de Vidro”, que deu a uma bateria até então tímida o devido espaço para se exprimir; “Deixem Lá”, muito celebrada, com o músico a investir nuns passos de ballet já no final, momento em que a flauta comunicou numa frase destacada do restante ensemble; “Subo a Montanha”, que convida o sintetizador a vestir um arnês e a subir, saliente, o terreno de acentuado declive; e “Imagina”, que se deixa embeber em acordes soltos de piano e fantasmagóricas melodias de flauta.

Foi um arranque na fronteira da perfeição, com Filipe Sambado e a sua banda a darem corpo a canções de Vida Salgada, Filipe Sambado & Os Acampanhantes de Luxo e Revezo, sendo este último disco o grande mote para o concerto que juntou várias dezenas de pessoas na Praça CCB, irmamente e ordeiramente repartidas por blocos de cortiça dispostos em leque e a respeitarem as normas de segurança e distância impostas por toda esta conjuntura COVID-19. O uso de máscara é obrigatório, ainda que se trate de um espaço ao ar livre, longe da clausura do Pequeno e Grande Auditório – e toda gente parece respeitar esta nova normalidade, sem questionar ou até infringir a regra. Para garantir a visibilidade sem comprometer o afastamento entre pessoas, o palco é disposto numa configuração de 180 graus, com as laterais a serem devidamente sonorizadas, de forma a que nada se perca nesta entrega de informação. No interior da estrutura com pilares de alumínio, Sambado faz-se acompanhar de bateria, baixo, duas guitarras, flauta, teclados, sintetizadores, coros e pela sua namorada, Cecília Henriques, que se mostrou incansável no apoio ao músico, quer nas coreografias que esboçou sentada no estrado que deu suporte ao coro, quer na interpretação de “É tão Bom”, dueto que atiraria o concerto para um muito requisitado encore. Esse desaguar, mais adiante.

Para já, o silêncio, momento em que Filipe Sambado, de calções curtos e um casaco fino de tecido transparente a cobrir-lhe o tronco desnudo, sobre o qual se vislumbra um simples colar que contracena com um par de ténis brancos e umas vistosas meias a condizer, aproveitou para socorrer-se da sua viola nesta que será uma recta com vincados contornos de música popular portuguesa. Demora algum tempo a colocar o instrumento a tiracolo e a afiná-lo, aproveitando para informar que, havendo verba para tal, esta seria a responsabilidade de um roadie, profissão de ouro nestas lides da música ao vivo. Mas as palavras que se seguem ainda conseguem ser mais arrepiantes do que o próprio silêncio: “Existe um tecido de gente que sustenta estes concertos, e essas pessoas têm passado mal”, referindo-se a toda a família de técnicos, roadies, stage managers e elementos da produção, entre outros, que neste momento vêem a sua actividade económica a atingir mínimos históricos e atravessam extremas dificuldades. As palavras do músico português mereceram um caloroso e solidário aplauso por parte dos presentes.

De guitarra afinada e coração quente, Filipe Sambado atira-se a “Paçoquinha pra Novela”, belíssima canção que versa sobre esses maravilhosos domingos em que duas almas gémeas partilham ócio e juras de amor, enroscadas no sofá, de comando na mão, baldes de pipocas e doces. Interrompe-se o ritual para outras sagradas práticas e regressa-se ao sofá para cumprir este que deveria ser um infinito loop, na esperança que segunda-feira seja uma longínqua e desfocada miragem, daquelas que parecem afastar-se não obstante a aproximação. Um intenso e apaixonante momento de voz e viola, que terá levado muitas destas pessoas a reestruturar o seu programa de domingo. A banda regressa a palco no final da música, altura em que o guitarrista de serviço troca as cordas do seu instrumento pelas peles de um bombo popular. Segue-se “Dono da Bola”, numa toada próxima do tradicional “Malhão”, e, paredes meias, “Bitola”, com a flauta a acompanhar milimetricamente a repetição da frase “não pares com essa merda não”.

Filipe Sambado reparte as suas origens entre Elvas, Lagos e Lisboa, três coordenadas de um Portugal bastante distinto. Um mais rural e também pastoril, bem representado nos assentos de cortiça que circundam o palco; outro essencialmente (e às vezes injustamente, quando é só isso que se vê) ligado ao turismo e às práticas estivais, que se sente na temperatura amena, apesar das frescas rajadas de vento, e ainda outro conectado à metrópole, inserido nas paredes do Centro Cultural de Belém e rematado pelas águas do rio atravessadas pela muito concorrida ponte que nestes dias de sol infernal se tem tornado numa verdadeira tormenta para quem a desafia. Tudo isto se coaduna com a música de Filipe Sambado que, por vezes, chama esse lado mais popular, onde tradições minhotas e transmontanas se cruzam com uma voz que frequentemente traz à memória as de José Afonso e José Mário Branco, e, por outras, inunda-se de sintetizadores e baixos de peito cheio, como servirá de exemplo “Tanga” e a sua longa introdução correspondida com os movimentos de Cecília Henriques. Há todo um lado de intervenção que desenha um moderno cancioneiro, como em “Dá Jeitinho”, onde o verso sobre a “casa na Graça com quarto para turista para evitar desgraça” se debruça sobre a preocupante problemática da gentrificação. É subtil, dissolvido no próprio serpentear de Sambado em palco, que a dada altura nos adianta que se mexe “como se estivesse com uma vassoura nas mãos”, mas está muito presente e disponível para quem se der ao trabalho de esmiuçar e interpretar.

“A próxima é muito conhecida”, informa o músico antes de soltar as primeiras notas de “Gerbera Amarela do Sul”, a canção que foi a sua catapulta para este mais recente patamar de visibilidade. Ao ouvirmos a sua tão bem articulada letra e o magnífico arranjo entre bombos populares, cordas e teclados, é impossível não nos questionarmos o porquê desta música não ter vencido o Festival da Canção – injustiças há muitas, mas esta é de levar as mãos à cabeça. Com a faceta popular ainda muito presente, Sambado introduz “Mais Uma” no alinhamento, transpirando uma velhinha “Venham Mais Cinco”. Lá mais à frente, a referência a um dos maiores cantores e compositores portugueses repete-se em “Tusa Mole” — afinal de contas, estamos a a falar de alguém cuja inspiração vai muito além do facto de ter vivido nas imediações da Meia Praia evocada na conhecida música de José Afonso.

Para o final há “Vida Salgada”, com Cecília Henriques a ensaiar novos passos de dança, “Jóia da Rotina”, dedicada a um dos elementos do coro que fora recentemente mãe, “Só Beijinhos”, muito celebrada pelos presentes, e “É tão Bom”, cantada em coro com a sua alma gémea, num magnífico dueto que só pecou por não ter beneficiado de mais contacto visual e interacção entre Henriques e Sambado. No encore, o músico serviu “Ass Ambado”, só com viola e voz, despedindo-se assim daquela que foi a primeira apresentação em Lisboa do seu mais recente álbum, cujo título se inspira numa técnica agrícola que previne a rotação de gado para garantir a regeneração do pasto. A forma com o Filipe Sambado organizou o seu concerto, oscilando entre vários pontos da sua carreira, deixando outros a descansar e repartindo inteligentemente os seus singles, são a prova de que esta é uma técnica latente de alguém que já há muito trata os palcos na primeira pessoa. Para cima de bom.

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