Da depressão Martinho à Cláudia passaram-se nove meses, tempo para se dar à luz um novo disco e apresentá-lo ao mundo. Lá Vem o Sol, primeiro longa-duração editado por Filipe Karlsson em Março deste ano, prometeu bonança depois da primeira tempestade. Teimou em voltar, porém, nova tempestade no advento de um concerto que terá, no Coliseu dos Recreios, dia 4 de Dezembro, esse disco em incontornável destaque. À letra, no centro das atenções.
Com todo um reportório invariavelmente luminoso para tocar, o cantor e compositor luso-sueco subirá de novo ao palco dessa emblemática sala de Lisboa para, desta vez, se apresentar a solo, com a companhia do costume, num concerto que serve de celebração aos primeiros cinco anos de carreira em nome próprio. E promete, mais uma vez, trazer luz a uma sala de “Bem Estar” onde — ao contrário do que nessa mesma sala reconfigurada se cantou faz por esta altura não nove meses, mas nove anos — não há-de chover. Vão pelas suas palavras.
Como tem sido a preparação para este concerto? Não é a primeira vez que tocas no Coliseu dos Recreios, mas é a primeira vez que o fazes a solo e num formato 360º.
Tem sido muito bom no geral, tem sido uma experiência diferente. Acho que preparar um espectáculo 360º tem as suas… é uma coisa completamente diferente. Estamos habituados a ver um espectáculo de frente, e em 360º há que ter em atenção que temos espectadores à volta do palco inteiro. Então, não há aquela coisa de sair do palco e há uma jiga-joga que se tem de fazer à volta do concerto inteiro — que me tem divertido muito, sinceramente.
Mesmo nos ensaios já têm posto isso em prática? Há uns anos estive num concerto dos Capitão Fausto no Coliseu dos Recreios nesse mesmo formato 360º, e lembro-me de olhar para o Tomás Wallenstein — que acaba por ter um papel equivalente ao teu, na voz e na guitarra, à frente da banda — e de o ver a gerir essa plateia circular. Também estão a ensaiar dessa forma?
Sim, sim. Normalmente nós até ensaiamos assim, porque em 360º nós não vamos estar todos virados para o público, vamos estar todos virados uns para os outros. E nesse concerto dos Capitão Fausto eles também estavam todos virados uns para os outros. É um círculo em que te viras para dentro, porque se estiveres virado para fora não consegues ver as pessoas com quem estás a tocar — e a banda precisa de se ver. E é engraçado, nós sempre ensaiámos em 360º, mesmo que seja uma sala mais pequena. Mas sim, temos ensaiado noutro sítio que também nos permite fazer essa gestão de 360º.
Olhando para trás e recordando o teu concerto no Coliseu dos Recreios por ocasião do Super Bock Em Stock’23, o que sentes que mudou não só ao nível da tua performance em palco, mas também para ti enquanto artista?
Eu acho que nesse ano onde me viste tocar lá no Super Bock Em Stock, esse era um concerto que tínhamos preparado, se não me engano, para o final do ano — que esse festival era em Novembro. E eu todos os anos preparo um concerto diferente e, claro, para este Coliseu tenho um concerto completamente diferente preparado. E sinto que uma pessoa cresce. Ganhas mais maturidade, cada vez que pisas o palco já estás mais calmo. Para mim era muito difícil conter-me; chegava ao palco e só queria mais e mais. Hoje em dia já estou mais ponderado, ou seja, divirto-me e pulo e isso tudo, mas já sou mais maduro nesse aspecto.
Mas isso é uma gestão racional? Ainda consegues aproveitar o momento?
Não, é aproveitar, só que é também conter um bocado aquele excitamento de… a coisa que eu mais gosto de fazer é entrar em palco e tocar, cantar e proporcionar esse momento às pessoas. Deixo-me sempre levar, mas também tem que haver uma parte de mim que é tipo: tem de haver uma gestão da voz, da banda, isso tudo. Mas sim, este concerto, especialmente por ser em 360º, é uma coisa completamente diferente. Temos uma setlist que… lá está, nós temos duas horas para tocar se quisermos.
O que tens planeado é tocar toda a tua discografia, mais do que focar no teu último álbum?
Sim, não vamos tocar o álbum na íntegra — isso posso dizer. Até porque tenho muito reportório, ou seja, é a celebração destes cinco anos de carreira e foi o ano em que lancei o álbum. Mas o grande ponto deste Coliseu é mesmo celebrar estes cinco anos de carreira.
Carreira a solo, porque já levas uns bons anos de carreira com os Zanibar Aliens. Como é para vocês — e sobretudo para ti — tocar em banda e com banda? Porque praticamente todos eles continuam a tocar contigo no teu projecto a solo.
Sim, é diferente. Nos ensaios acaba por ser um bocado diferente porque eu é que tenho a última decisão, mas eu gosto muito de trabalhar com eles porque nós estamos muito habituados a construir concertos juntos. Toda a gente tem um input criativo, nós funcionamos muito como uma banda nos concertos. Vamos todos para a sala de ensaio, eu digo a setlist que quero tocar e depois arranjamos as músicas. Não fazemos como muitos projectos a solo, em que os artistas vão para estúdio, produzem o concerto e depois contratam uma banda. Nós construímos o concerto de raiz numa sala de ensaio, todos. Isso para mim é muito importante, dá um factor de banda que foi onde eu cresci e sempre estive habituado a fazer as coisas dessa forma. E acho que dá uma química diferente ao vivo com a banda.
Na parte mais criativa, até porque todos eles já vão tendo as suas carreiras a solo, também têm mão?
Eu acho que acabam por ter mão no processo criativo mais do espectáculo ao vivo. Em estúdio, neste álbum, eu só trabalhei com o Velhote do Carmo, que não toca na minha banda e era o baixista dos Zanibar. Acabámos por trabalhar em duas ou três malhas deste álbum, mas da malta que costuma tocar comigo não houve quase nenhum input criativo no álbum e nas canções. Sou uma pessoa que gosta de fazer as coisas sozinho. Se alguém quiser ouvir e dar uma opinião, não tenho nada contra isso, também gosto. Mas por acaso neste disco não tiveram muito a ver.
E depois a transpor este disco e as outras canções para o palco, como eles entram nessa equação, a coisa ganha novos contornos e uma vida nova precisamente por eles também estarem envolvidos?
Sim, exacto. Acho que é mais fácil porque uma das grandes batalhas das bandas é sempre este processo de composição — pelo menos nos Zanibar era assim. Era onde havia mais resistência, ou seja, uma pessoa tinha uma opinião, outra tinha outra, as outras duas tinham uma… porque não há bem um líder, somos todos os líderes da banda, então acaba por funcionar como uma coisa democrática. Mas quando traduzimos a coisa para ao vivo acho que se perde isso tudo, e isso também foi sempre assim nos Zanibar. Perde-se isso porque o objectivo é fazer um espectáculo, que é uma coisa diferente de produzir um disco em estúdio.
Já consegues fazer um balanço destes meses de vida do álbum? Sobretudo pela forma como o lançaste, um bocado à imagem dos EP que até então tinhas lançado.
Eu estou muito feliz com o álbum que fiz. Acho que eram canções que precisavam de ver a luz do dia, numa altura onde fiz esse agrupamento de “três EPs” e os expus cá para fora como um álbum. Estou muito feliz com o resultado, acho que as pessoas têm gostado, mas para mim é sempre assim: tentar diferenciar um pouco e não fazer mais do mesmo.
O feedback do público tem ido ao encontro da ideia que querias transmitir com esse lançamento faseado?
Acho que isso também fica à interpretação de cada pessoa. Nos EPs, porque são cinco canções, acho que é mais fácil ouvir de uma ponta à outra. Agora, pedirmos a uma pessoa para ouvir dez músicas de seguida já é pedir muito attention span. Acho que as pessoas acabam inevitavelmente por escolher as suas músicas preferidas, mas também há-de haver o fã que gosta de pôr o álbum inteiro e ouvir o disco. Acho que é uma questão pessoal nesse aspecto.
Já tens quatro projectos, ou seja, já há uma pegada mais palpável da tua evolução. Não sei se estás numa fase criativa neste momento, mas sentes que daqui para a frente vais continuar a gravitar em torno desta linha entre a alegria e a melancolia?
Eu acho que nunca vou perder essa linha, apesar de querer fazer coisas diferentes. Não me vão ver a lançar um álbum de hip hop, mas eu sou a favor de explorar novas sonoridades e experimentar coisas novas. Este “Parece, Parece” [novo single de Filipe Karlsson] vai fazer parte de um trabalho e já descobri a nova sonoridade que eu quero explorar.
E já estás numa fase de desenvolvimento desse novo trabalho?
Sim, eu acho que cheguei a um momento da minha carreira e do meu trabalho criativo em que… até agora sempre tive aquela pressa e ansiedade de tratar das coisas e fazer acontecer, e agora olho para trás, como estás a dizer, para tudo o que fiz, e já consigo ter aquela calma e respirar. Consigo dar um passo atrás e perceber mesmo o que eu quero que seja o meu próximo passo. Não que os meus passos tenham sido dados de uma forma errática ou demasiado apressada. Só que agora tenho mais essa maturidade de ver as coisas mais para a frente do que no passado.
Sentes que a repetição desses processos te descansa agora com a incerteza dos próximos?
É isso, é isso. E acho que quando uma pessoa está sempre à procura da próxima coisa — e como tenho amigos artistas em nome próprio vejo muito isso a acontecer —, às vezes… Eu digo-te: as minhas canções que as pessoas mais gostam foram aquelas em que estava só eu e a minha guitarra, o meu piano, e estou tocar e a falar sobre uma coisa minha. São as que mais conectam com as pessoas. Às vezes há um bocado essa necessidade de fazer, fazer, fazer, e por vezes o melhor é ter calma e continuar a trabalhar nesses processos.
No teu processo criativo, sendo que és um artista bastante influenciado por música feita nas décadas de setenta e oitenta, o sampling faz parte da tua produção ou privilegias sempre a composição instrumental?
Não, eu gosto do sampling. Já usei, e neste álbum usei numa canção — na “Vai e Vem”, aquilo é um sample que eu fiz chop. Mas acho que tem a ver com o facto de eu gostar muito de escrever ao piano e à guitarra. Para mim é mais fácil ter os acordes e escrever assim, mas também já houve outros processos que funcionaram de outra forma. Acho que não me inibo de tentar outras formas de produzir, de criar. E acho que o sampling pode jogar muito a favor de alturas em que eu estiver à procura de outro tipo de sonoridade.
E quando recorres ao sampling, procuras coisas que teoricamente estão mais fora do teu espectro?
Sim, ou então que eu não consigo replicar, mesmo que seja na minha linha. Eu tenho um solo de saxofone num som que tenho com o Mishlawi [“Quero Ficar”], aquilo é um sample que eu fui buscar a uma música, chopado e tudo mais. Na altura quis meter lá e ficou fixe. Lá está, utilizo tudo o que achar que faça sentido e que goste.
Em relação a esta conotação aos anos setenta e oitenta, tem-se falado cada vez mais de uma fenómeno de “comercialização da nostalgia”. Sentes isso na tua própria experiência e, por outro lado, já vês também no teu público isso a acontecer por tua própria influência?
Foram décadas que marcaram muito e hoje em dia, como estavas a dizer, parece que estamos a fazer uma reciclagem disso. Estamos a ir ao passado buscar muita coisa para trazer para o presente. Mas eu não sei se isso não é sempre cíclico, de uma forma em que sempre que andarmos para a frente vamos sempre voltar atrás.
Temos é mais acesso agora.
Exacto, se calhar temos mais acesso para encontrar e ver os vídeos todos. Se calhar nos anos oitenta era mais difícil ser como nos anos cinquenta, não sei… Mas sim, eu sinto muito isso e sinto que sou um bom “cartaz” para essa era [risos]. Porque, lá está, tem a ver com a sonoridade também e com aquilo que eu represento. Venho de uma banda rock mesmo anos setenta, o meu grupo de amigos é tudo malta que faz música nessa onda. Eu acabo por ser, talvez, o que sai mais desse lado porque abracei muito o indie, mas ao mesmo tempo o indie também tem essa conotação de ir buscar muita coisa ao passado.
Fazes essa separação entre ti próprio e a persona artística?
Não, não faço. Acho que no início exagerei um bocado. Quando me lancei, houve ali um desconectar… mas nem sequer era por grande parte, foi só literalmente pelos outfits. Acho que o primeiro videoclipe que eu fiz foi da “Bem Estar”, e era eu de fato branco. Eu não ando de blazer branco todos os dias, mas no concerto já meto um blazer branco. Foi só nessa parte. Mas sinto que a influência da minha banda, que éramos aficionados pela música rock psicadélica dos anos setenta, se fores a ver fotos minhas com 18, 19 anos, já tinha um cabelo grande e ainda tinha um aspecto mais antigo do que tenho hoje. O que acabou por acontecer é que passei dos setentas para os oitentas e comecei a fazer música mais pop. Mas não faço nenhuma separação.
Falando do “Parece, Parece”, este tema vir a fazer parte de um projecto futuro é uma novidade. Em relação ao videoclipe, como foi trabalhar uma ideia mais cinematográfica com um novo realizador?
Já estava com vontade… Acho que neste disco fiz uma coisa muito à Karlsson [risos], que é do it yourself, sempre fui assim. Porque é inevitável, estas coisas custam dinheiro. E estava com uma cena de fazer o máximo número de vídeos para o álbum, e se calhar acabei por estar ali com muita coisa por fazer — e perder o fio condutor das coisas que quis fazer. Mas agora neste “Parece, Parece” foi o Tommy Loureiro que me mandou mensagem a dizer que gostava mesmo de vir a trabalhar comigo, e eu alinhei. Tivemos uma reunião, eu mostrei-lhe o som, ele apresentou-me uma ideia e juntámo-nos. E ficou incrível, acho que é dos melhores videoclips que eu tenho.
Olhando para a linha sonora e visual do “Parece, Parece”, este projecto que começa com este tema poderá vir na forma de uma banda sonora dessas célebres séries de televisão dos anos oitenta?
[Risos] Digamos que sim, é para aí…