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Publicado a: 06/10/2015

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[TEXTO] Rui Miguel Abreu

 

Ruas de concreto, sirenes de polícia, malls e liquor stores, shotgun houses de ambos os lados da rua (a América que chora mais um massacre é a mesma América que baptizou um estilo arquitectónico com a palavra “caçadeira”: isto porque essas pequenas casas que se encontram nalguns subúrbios americanos têm uma planta particular – pode disparar-se uma caçadeira pela porta da frente e o tiro sairá pela porta de trás…), homies e rides artilhadas, smartphones e swag threads. Não se atrevam a carregar no play e a deixar Fetty Wap inundar-vos os ouvidos com o seu açúcar auto-tunado sem antes se sintonizarem com o mundo de onde ele vem. Façam-no e as recompensas serão claras.

Fetty Wap é o tipo que usa todas as cicatrizes da sua vida com orgulho: o subúrbio de Paterson, Nova Jérsia, o olho que perdeu em criança para um glaucoma, a droga que cozinhava para sobreviver, os seus inseparáveis Remy Boyz 1738 (referência clara ao cognac Rémy Martin 1738). E este é o universo que explora em Fetty Wap, a impressionante estreia que sucede ao estrondo de proporções épicas de “Trap Queen”. Já lá iremos.

(Coisa extremamente curiosa, ouvir o álbum de estreia de Fetty Wap poderá permitir-nos a todos perceber muito melhor um artista como NGA: a mesma devoção incondicional à sua Força Suprema, aos seus Dope Boyz; o mesmo amor assumido às marcas da superação – o dinheiro, os carros; a mesma fidelidade à geografia particular que marca as suas vidas – a Linha de Sintra neste caso; e a mesma capacidade de trabalhar sobre beats digitalmente cortantes cozinhados em quartos de subúrbio rodeados por ruas de concreto, sirenes de polícia, centros comerciais… estão a ver o mesmo filme? Paterson, Nova Jérsia, Q, Linha de Sintra…)


 


O disco de Fetty Wap contraria o que seriam expectativas mais do que justificadas depois do impacto de “Trap Queen”: nada de produtores de renome, nem um convidado do lado mais estrelado do firmamento hip hop. Em Fevereiro último, Fetty Wap participou no Roc City Classic Show de Kanye West e, durante a sua interpretação efusiva de “Trap Queen”, Yeezy, Jay-Z e Beyoncé não pararam de dançar. E Rihanna declarou o quanto adorava “Trap Queen” à i-D. Drake até gravou um verso para “My Way” que nem sequer aparece no álbum. Qualquer uma destas estrelas teria certamente aceite entrar em Fetty Wap a troco da simples oportunidade de sentir de perto o artigo genuíno e assim voltar a religar às ruas quem habita nas penthouses. Porque Fetty Wap é, de facto, o artigo genuínio: produto das tais ruas de concreto que não costumam ser terreno fértil para sonhos crescerem. Mas mais de 250 milhões de plays no YouTube, outros tantos streams no SoundCloud e quatro singles em simultâneo no Top 10 de Hip Hop da Billboard são a prova cabal de que, como dizia Tupac, as rosas podem de facto nascer no concreto. E que nem tudo é orquestrado no reino da pop onde muita gente é de facto cega e quem tem apenas um olho pode ser rei.

“Trap Queen”. Este tema é incrível. E isto é a essência da música pop: equilíbrio delicado de balanço e de açúcar melodioso, com as palavras certas para o “singalong funcionar”. Não é um hit de Verão, é um clássico geracional que daqui a 10 anos ou 20 anos continuará a fazer tanto sentido no sound system de uma festa como hoje ainda o fazem clássicos como, sei lá, “Still Dre” ou “In Da Club”. História de um romance cor-de-rosa numa realidade cinzenta, a “Trap Queen” de Fetty Wap foi a namorada a quem ele ensinou a fazer crack. Hoje já não estão juntos, mas o êxito de vendas em que o tema se transformou permitiu que Fetty Wap se oferecesse para pagar as propinas universitárias à sua ex-dama. Como é que ainda há quem não acredite no amor?

Depois há o tema: brilho cromado digital no preset do sintetizador, tarolas afiadas e cortantes, graves redondos e fundos e por cima de tudo a voz de Fetty Wap adornada pelo auto-tune, melodiosa: “Married to the money, introduced her to my stove / Showed her how to whip it, now she remixin’ for low”. O tema termina e é impossível não pressionar o repeat. Gratificação instantânea. E Fetty Wap ainda teve o desplante de colocar o tema a abrir o seu primeiro álbum, como se dissesse: “vamos já tirar esta do caminho, que tenho aqui mais do mesmo calibre”. E a verdade é que tem mesmo: são 20 faixas sem distracções: só Monty, um dos Remy Boys de Fetty, marca presença generosa no álbum, participando em 9 temas, mas mais como uma sombra de Fetty Wap do que uma real mais-valia. Certamente será um irmão de sangue a quem Fetty Wap terá prometido uma fatia do seu próprio sucesso. E depois há outras bombas como “My Way”, “Boomin’” ou “Trap Luv” e “Again”: tarolas trap, pianos drill, auto-tune, melodias irresistíveis.

As palavras? Fetty Wap não é um poeta, não é um Kendrick Lamar, nem sequer um Drake. Os anos 60 também não se fizeram só de Dylans… Fetty Wap é um miúdo das ruas (24 anos), educado em frente à Playstation, com os ouvidos treinados pela aparelhagem do carro, e o olho que lhe resta nunca deve ter vislumbrado muito para lá das luzes de Manhattan, que fica a 40 minutos de comboio de Paterson, mas bem podia ficar noutro planeta não tivesse “Trap Queen” explodido da forma que explodiu: sem promoção, sem campanhas de marketing, sem vídeo, sem nada. Um tema no SoundCloud mas que parece traduzir na perfeição o som que uma geração inteira carrega na cabeça. Fetty Wap, o álbum, multiplica isso por 20. E faz história. E agora, o futuro poderá trazer-lhe glórias ainda maiores ou não. Nada como esperar pelos próximos capítulos da história enquanto se deixa “Trap Queen” em loop no computador.

 

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