Noite final do Rescaldo, na quarta sala utilizada em outras tantas noites de acção. Derradeiro palco da presente edição no Teatro do Bairro Alto, para dar lugar aos concertos mais aguardados. Dose dupla para dois primeiros encontros, estreias absolutas, mesmo entre as próprias protagonistas. O fascínio da experimentação da partilha em palco, de passar a barreira do desconhecido, do desbravar dos primeiros toques entre as mãos, primeiro das duas e depois dos três. Marta Warelis (piano) e Sofia Borges (percussão) e depois o trio enigmático de Lula Pena, António Poppe e Carlos Santos. O Rescaldo de volta ao protagonismo como espaço de criação primeva, no despontar da ideia, a acender o rastilho, para que surja mais adiante o lugar para rescaldo. A mente inquieta e sonhadora de quem a programar arrisca as centelhas.
Marta Warellis vem coleccionando prestações memoráveis e alimentando a cada vez mais breves vindas a palcos lusos. Nos meses mais recentes teve passagem pelo Jazz em Agosto da Gulbenkian, no ciclo Conundrum de Pedro Melo Alves na ZDB que aqui reportámos. E por se tornar um dos pianos mais imprescindíveis do momento a escutar, tem agendado um regresso à ZDB em quarteto com Luís Vicente, Camila Nebbia e Melo Alves. Este frenesim é totalmente justificado, Warelis é ao piano a música que mais se quer escutar e partilhar. Sofia Borges, cúmplice na combinatória deste palco, é de rara aparição, cometa sonoro que a cada passagem torna a ocasião uma oportunidade quase irrepetível, sem se saber qual a próxima vez.
São duas percussionistas num placo sem fim, entendendo o piano como instrumento de percussão e sobretudo como Warelis faz abusado uso das teclas. Borges é-o por inerência, rodeada de uma brilhante bateria que resplandece no olhar e ao ouvir-se, adornada por miríade de objectos ressoantes. A tarola é um palco dentro do palco em que se encontram. Nela têm expressão sonora e encontram a dimensão propagada os timbres de cantoneiras metálicas entre outros objectos à rédea solta. Warelis e Borges nada ensaiaram, nada a mais que os requisitos para que os primeiros sons dos seus diálogos sejam os mesmos que escutamos e vemos acontecer. Ascendem em vórtice, há rodopios sonoros com Warelis em assombrosos ataques ao teclado, de enorme precisão, eloquente. Borges vem ao encontro e acelera o remoinho, com habilidade e força motriz. À razão de mãos e pés, em que o esquerdo tem uma acção preponderante nos pedais conexos à bateria e que disparam efeitos sonoros de requintes indispensáveis, vozes ocasionais que se juntam ao coro percutivo. O piano de cauda tem tampo aberto e é mais que uma saída do espectro vibrante das cordas, é a entrada de Warelis ao mais profundo interior sonoro. Apetrecha e armadilha as cordas, prepara o piano, passa a outra sintonia harmónica. Após a ascensão, é como se o que ouvimos esteja fora de alcance gravítico terrestre, são outras forças, pares acção-reacção entre corpos distintos e que adicionam efeitos. Já nisto Borges acrescenta complexidade ao empregar tamboretes de guita como baquetas ao seu baterismo. Estes idiofones são os Den-den daiko no Japão, os Bolang gu da China ou os Damaru da Índia, e são aqui utensílios fractais, a replicar as partes elementares no todo completo. Desenhando processos sonoros recorrentes. A omnipresente Borges concede os decisivos espaços a Warelis. Sente-se a condescendência do momento. A pianista tornada vibradora de cordas. Os ameríndios montavam de forma inapta presos às crinas dos cavalos, a toda a brida, assim faz, em destemida intensidade, Warelis uso de crinas nas cordas do piano. A tensão das cerdas dispensa o arco, é ao invés a do seu interior. São interações construindo um solo preponderante e inolvidável de efeito transcendente, capaz de retomar para vibrar a onda sonora que acabou de produzir desde as cordas do piano. É a onda energética visível, que Borges sente de olhos fechados. Voltam a encontrar-se de mãos dadas lá no lugar onde desenham a linha de horizonte num céu-terra feito de sons a pairar até ao último espectro do brilho transitório. Ficará para a memória do Rescaldo este encontro de magas e musas músicas.
O outro primeiro encontro anunciado dá a conhecer Lula Pena, António Poppe e Carlos Santos a empurrarem um piano palco adentro. Tudo sobre rodas, mas nota-se o trabalho que dá trazer o instrumento ao centro da acção, nada a direito, sucedem-se teimosos desvios da rota idealizada pelo trio. Tem personalidade este piano de parede. Escancarado, notam-se-lhe as entranhas, cordas à vista. Sobre ele como albardas outros dispositivos, coisas electrónicas, emaranho de cabos suspensos. E há poesia dita, pelo chão em papeis e na ponta da língua de Poppe. Ouve-se como resmungues, queixumes doces como que por terem ali sido chamados e se queiram justificar. É uma Pena sem guitarra, surpreendente para muitos, mas a carga poética misteriosa está toda no lugar, nada a perder. Ouve-se tilintar desde as teclas e arpejos nas cordas do piano. Adensada trama no desvendar do propósito de tudo aquilo para ali trazido. De cor e salteado enumeram-se os filos que compreendem o reino animal em redor, como que a convocar todos ao presente sem excepção. Pena afilia-se na dimensão poética e conduz os tempos verbais com a voz inebriante que sabemos de cor e de olhos fechados. Protege-se ainda assim, palco inusitado, o piano serve de simultâneo refúgio. De Poppe saem Camões, Herberto, e ele próprio. Saem outras vozes até, noutras línguas indecifráveis. E há roupagens que se desprendem dos mecanismos trazidos por Santos, num rito que se levanta em cascatas desde o cimo do piano, feito altar-mor desta celebração. Lugar efémero e que perdura na dimensão da vontade de acontecer e receber, segura-se no levitar, ondula com teia tecida à brisa, ainda vergada ao peso das gotas de orvalho da noite húmida. Há húmus em redor da construção sonora que conforta ao toque de encanto que se pressente à distancia de um olhar cúmplice. O conforto permanece no lugar subtil da memória do vivido, no limiar do puramente imaginado, no limbo da existência, a poesia musicada num sussurro ser. E tal com as esferas saíram, que nem peças sem encaixe daquele piano, para os cantos do palco, também deixámos o espaço do efémero dispostos à combustão do fogo-fátuo num Rescaldo.