Caminhar ao alto da Pedra d’Hera — “rocha do imaginário da memória local” — pode bem ser uma motivação para sentir mais profundo, o todo em redor que a vista alcança — redentora paisagem da Cova da Beira, este lugar. Descendo do antigo Castro do Monte de S. Brás, a vista adensa-se e o deslumbre vem da luz, por entre o bosque de castanheiros ramificados e aprumados na feição de castinçais. Depois sucedem-se os socalcos de cerejais — não foi aqui que Tchekhov escreveu a dramaturgia que lhe corresponde, mas pode muito bem ter sido num cenário de inspiração semelhante. Esta paisagem tem texturas e relevos que vão da macro à micro-escala, num ás. Há na vegetação autóctone enraizamentos profundos, que conferem emoção só de ver de perto — vê-se mais além. Amiúde surgem as abróteas em flor, esguias e oscilantes. Ouve-se em azafama seres que rastejam e percorrem outros caminhos. A surpresa revela-se a cada olhar e ponto de escuta.
À noite, A Moagem – Cidade do Engenho e das Artes continua a ser o lugar de escuta neste segundo dia de Festival Profound Whatever. Neste momento, a paisagem da profundidade da Cova da Beira, aqui no Fundão a 16 de Maio, sente-se num espaço acústico proto-Verão. Aves nocturnas, insectos canoros e anfíbios mapeiam o território. Aqui, bem mais perto, outros músicos se juntam pela primeira vez para prolongar este lugar de escuta e alcance. A noite de concertos traz duas formações nos campos da música improvisada — dispostos à criação em tempo (bem) real.
O trio de trabalho acústico formado por Joana Guerra em violoncelo, José Lencastre no saxofone alto e João Valinho em bateria e acessórios. Apresentam-se como nova formação, juntando músicos que têm trazido aos campos criativos elementos de relevo. Lembramos a propósito o telúrico registo Chão Vermelho de Guerra, Odd Objects dos Sonic Tender de Valinho (com Aguiar e Carreiro) e Inner Voices de Lencastre. Alguns exemplos como que pistas alinhadas para conjurar este trio diante de nós. Um trio encaixado entre os inactivos mecanismos de moagem, ao abrigo dos engenhos da extinta laboração feita agora Museu do Centeio. Estas terras são solar desse cereal, searas idas que aqui se imaginam nesta música. O toque de madeira da envolvente, entre as madres, barrotes e soalho, denota som da passagem e liga-se em harmonias dos instrumentos da mesma família: a madeira do violoncelo e a palheta como alma que inscreve o saxofone nesse naipe dos sons, e as baquetas da bateria. Poder-se-á referir a este trio como de sabor emadeirado — como um néctar que estagiou em barricas de carvalho. Só que na medida das suas música é um aroma fresco e nada envelhecido o que se alcança em seguida.
Guerra começa um ostinato, traz uma ideia de melodia nesse padrão rítmico e convida Valinho a tricotear a tarola num leve fazer. Lencastre não tarda a fazer mover as chaves. O mecanismo está de volta — move-se na medida da música. Surgem micro-impulsos vindos do saxofone — rebentamentos dóceis servindo de bolsas que perfumam o espaço acústico. Valinho toca como o vemos tocar em outros contextos, traz o seu lugar de fala: lima e espátula nos bordos dos metais que mantém tensão nas peles são hábeis ferramentas nas suas mãos além das baquetas com ou sem bolas de feltro. Surge uma alquimia saborosíssima entre o palhetismo de Lencastre e o tímbalo propagado de Valinho. Junta-se Guerra na voz que é exacerbada e discreta em simultâneo — propaga-se um grito mudo. Agúdos a ecoar no violoncelo e explosões súbitas e controladas na bateria são o preenchimento de um corredor que se imagina para acomodar a escuta sem constranger — a música quer-se livre. Valinho traz chocalhos e num pequeno gongo de mão convida à escuta da melodia condutora de Lencastre. Antes do perdurado e saboroso silêncio do trio e seres em escuta, houve lugar em partes, destacada a peça de sopro do saxofone — feito instrumento por separado em que se fez dueto vocal com Guerra em uníssonos de mestria.
Regressam sem sair dali — pausa de continuidade. E foi entrar num tempo em catarse que se começou por construir vindo de um violoncelo em pizzicato juntando saxofone e bateria em sincopes de elevado entrosamento — em crescente. Veio o decréscimo sustentado, feito de um ritmo nos pratos e tímbalo — moroso e assistindo às suspensões acústicas do saxofone e violoncelo como num só instrumento. Terão improvisado, porventura, uma das melhores prestações do até aqui vivido.
De volta ao auditório d’A Moagem para o palco ser preenchido pelo septeto constituído por João Clemente (guitarra), Catarina Silva (trompa), João Mortágua (saxofone), Vasco Fazendeiro (percussão), Kresten Osgood (bateria), João Hasselberg (contrabaixo) e Nuno Santos Dias (Waldorf). A formação mais alargada deste festival toma lugar em meia lua — dando espaço de liberdade a meio. A contrário deste mesmo palco no dia anterior, embora com mais músicos na sua caixa, há muito mais espaço agora disponível. E o concerto desta inédita junção depressa se revela de enorme espaço, em muito de escuta e partilha entre os músicos presentes. O conjurador de tudo isto — da ideia de festival (embora este ano seja Nuno Jesus na direcção artística) e do aglutinar de músicos — dá o mote ao septeto. A guitarra de Clemente em desprendida cadência. Segue-lhe o rasto a trompa — em harmonia de Catarina Silva. Ela que é a primeira música a ter duplo lugar de palco nesta edição. Hasselberg liga os transistores e traz o exterior a este interior profundo. Abdicava-se de saber, mesmo que por breves instantes, as notícias dessa “via-sacra” (também conhecida de campanha eleitoral) do “político como masoquista” — como ontem mesmo António Guerreiro escrevia na crónica (recomenda-se) semanal do Ípsilon. Mas sim, esse transistor a emitir sobre as linhas de baixo traz um espectro de interesse acrescido ao colectivo — sigamos antes nesta interioridade. Mortágua, como lhe é apanágio, traz diversão em doses generosas, tanto no seu alto como no soprano curvo — acompanha-o na instrumentação desafiante. Kersten Osgood faz de mimo, e saindo do seu dispositivo de bateria decomposta, parte para o tal espaço comum. Aí representa um jogral que munido de prato e dedal de costura percute em chamamento a assistência. Está-se perante um exorcismo sonoro. Hasselberg virá mais adiante deixar entre a plateia dois leitores portáteis de endless tapes, gravadas na outra das vindas de Osgood ao espaço comum — em delírios vocais, algo como um gritar para dentro. Há um teatro dos sons a ter lugar! Há muito espaço para o inesperado. Música que se ouve a ela própria, muito espaço a permitir isso. Entre as persuasões das taças invertidas de Fazendeiro e o surreais notas vindas do teclado Waldorf de Santos Dias se fizeram mais diálogos a sete — sempre com tudo em aberto. Eis que se implanta um vórtice, que os leva em intensidade num ímpeto de tarola ao cutelo sobre as pernas estendidas de Osgood, tocada em dupla face. Um techno de cariz orgânico dispondo de uma mini-orquestra ao seu serviço. Cresceram e sumiram-se dali a pouco. Fica escutado que tiveram as mãos cheias de música que depois viram fugir — entre os dedos, num ápice de diversão conjunta.
Cá fora uma linguagem num power trio estava programada com Dead Language, com Amaro na guitarra eléctrica e voz, Nuno Jesus no baixo e Itamar na alba bateria. Têm um álbum homónimo lançado no inicio de 2024 e que traz a sua música para perto dos campos das densas distorções, com ecos de uma bateria frenética por um lado, e com outro flanco feito de harpejos polirrítmicos. Nada contra nem a favor dum contar como foi. Nos meandros da música livre há também a liberdade de espaço para ir sonhar com o que a escuta alcançou até aí. Deve ter sido longa a catarse feita de descargas sónicas em generosas doses de decibéis. Assim se espera, quando a tenda de festival prossegue montada, havendo quem se junte — para a reportagem do ReB, o dia tinha ficado já antes selado com os dois concertos anteriores.
Hoje — sábado dia 17 — o programa faz-se longo. Começa pela tarde (15h) para a série “Íntimas Miniaturas”: David Lourenço (guitarra clássica) e Paulo Silva (guitarra de Coimbra); solo de Kresten Osgood (bateria), duos com Leonel Mendrix (guitarra) + Joel Madeira (contrabaixo), Ana Albino + Rodrigo Lima (guitarras) e solo de João Mortágua (saxofone). Nuno Jesus volta a subir a palco em trio com Gonçalo Alves na bateria e Rodrigo Pinheiro no teclado Waldorf. O segmento nocturno arranca (21h30) ao “L U M E” com Gonçalo Parreirão e Inês Barreiros. José Lencastre com João Hasselberg e Kresten Osgood tomam o palco logo de seguida. O programa que encerra entre portas com o sexteto constituído por Ana Albino (guitarra), Joana Guerra (violoncelo), João Lucas (contrabaixo), João Mortágua (saxofone) e João Valinho (bateria). Prolonga-se depois às 00h45 no exterior d’A Moagem com ETKAR.