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Texto: ReB Team
Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 23/11/2023

Gotejos musicalmente valiosos.

Faixa-a-faixa: Lágrimas de Pérola, de Peculiar, explicado pelo próprio

Texto: ReB Team
Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 23/11/2023

De Faro até Lisboa, João Nicolau Quintela trouxe consigo muitas memórias na bagagem, conforme revelava ao Rimas e Batidas numa primeira entrevista a propósito da estreia de “Chora”. Memórias essas que teve de saber gerir ao longo da fase em que lhe era imposta a evolução de menino para homem, um processo que nem sempre é fácil no actual contexto da nossa sociedade, em que ser-se do sexo masculino pode, de facto, acartar alguns privilégios, mas não é isento de uma adicional dose de pressão aos olhos de quem nos rodeia.

Foi entre as saudades de casa e as dores de crescimento que o artista que assina enquanto Peculiar verteu as suas Lágrimas de Pérola, um EP de estreia que, por mais sofrido que seja, só pode deixar boas recordações quando nos metermos a fazer balanços de 2023. Com influências de Zeca Afonso, Carlos Paredes ou Madredeus, este disco aborda a tradição da canção portuguesa sob a perspectiva de quem já tem entranhada dentro de si toda a estética da cultura beat, misturando sensibilidade ao nível da escrita com a pujança dos graves e capaz de fazer dançar mesmo quando a toada do tema invoca a tristeza.

Sobre este seu trabalho, criado com a ajuda de b-mywingz na produção, Peculiar diz ao ReB:

“Este EP acompanha o meu processo de crescimento desde que parti de Faro para vir para Lisboa estudar música e fazer o meu caminho enquanto artista. O processo de crescimento é e deve ser doloroso e desconfortável, pois só assim é possível ele acontecer. O nome deriva do facto de as Pérolas, objetos únicos de grande beleza, serem formadas do desconforto e da dor. O mesmo desconforto e dor envolvidos na transformação de um menino em homem que lhe provocam as Lágrimas. No entanto, na sociedade atual, eu sinto que crescer enquanto rapaz para homem de forma saudável e livre é difícil, devido às várias barreiras impostas e às expectativas que existem. Não possuímos liberdade para sentir, para falhar, para ser vulneráveis, para sofrer e principalmente, no fundo, para sermos nós próprios. Fez-me sentido então que o meu primeiro trabalho, onde senti que encontrei a minha voz em termos musicais, refletisse as minhas experiências e a minha realidade no momento. Este projeto resulta assim numa narrativa metafórica sobre todo este meu processo e sobre a forma como me sinto. Espero principalmente através destas músicas poder comunicar e trazer conforto a outras pessoas que se revejam na minha história.”

Depois de se ter feito soar no Tokyo, em Lisboa, Lágrimas de Pérola segue agora viagem até à terra que viu nasceu o seu autor, Faro, onde será alvo de uma apresentação ao vivo no IPDJ já este sábado, dia 25 de Novembro. Antes de subir ao palco algarvio, Peculiar fez chegar ao Rimas e Batidas um guia que nos ajuda a navegar de forma mais orientada ao longo das 4 faixas que integram seu primeiro curta-duração.


[“Escura Noite“]

“É uma conversa entre a mãe e o menino, na qual refletimos sobre os medos da maternidade e a dificuldade em deixar as crianças seguirem o seu rumo. Fiz esta música quando vim morar para Lisboa. A minha mãe ligava-me várias vezes com medo que me acontecesse algo quando eu ia sair à noite ou no meu dia-a-dia. No geral, custava-lhe o facto de estar longe e não poder cuidar de mim. Foi algo complicado, principalmente no início, lidar com a solidão, aprender a cuidar de mim, desde tarefas domésticas até algo tão simples como ir ao médico. No entanto, sinto que foi necessário para o meu crescimento passar por esses momentos e por essas dores e angústias. E no final do dia eu sabia sempre que, caso precisasse, teria sempre os meus pais a um telefonema de distância para me apoiarem e ajudarem no que pudessem. Crescer é um processo difícil e doloroso tanto para os filhos como para os pais, mas sinto que o importante no meio desta viagem é sentirmo-nos apoiados pela nossa família, que não nos coloquem barreiras ao ser. Isto é essencial para sermos nós próprios e sei que sem os meus pais eu não teria conseguido fazer o caminho que fiz até agora.”


[“Lua”]

“Em ‘Lua’ o menino sofre pela primeira vez um desgosto amoroso que o leva a naufragar. ‘Lua’ vai de encontro ao novo movimento musical que se tem vindo a vincar no panorama musical português. Com origens no tradicionalismo musical de inspiração lírica portuguesa, das cordas de Zeca Afonso à voz de Amália, passando por Madredeus e Carlos Paredes, navega até ao modernismo e diversidade musical de ROSALÍA, Stromae e Tyler, The Creator. Peculiar conta a história da dualidade da lua, numa analogia sobre relações e percepções, que na escuridão se mostra, atrai e seduz, e que na luz se desfaz e desencanta. A faixa aborda explicitamente a sexualidade numa vontade de desconstrução de preconceitos através de uma letra poética e sombria.”


[“Chora”]

“Em ‘Chora‘, estando destroçado, há um reflexão sobre masculinidade e a relação com as emoções. Sempre senti uma grande pressão por parte da sociedade e dos exemplos à minha volta para me comportar de uma determinada forma, para poder ser um ‘homem’. Brincar com bonecas e com raparigas, não jogar futebol, ser mais carinhoso, ler livros e ouvir fado não se enquadravam nesses comportamentos e dificultaram muito a minha inclusão no meio dos rapazes. Cresci, tornei-me um homem e vim a conhecer outros homens que também choram, também precisam de afeto e que, principalmente, apesar de também terem medo, mostram o que sentem. Esta música serve para questionar o que significa ser homem e para criar o meu próprio espaço dentro desta definição. Chorar não é uma fraqueza, porque a força para mim está na admissão do erro.”


[“Chover”]

“Finalmente a última música, ‘Chover, uma canção de emancipação onde o menino, farto de viver sobre as regras e os arquétipos da sociedade sobre masculinidade, rompe com os mesmos e afirma a sua diferença e independência, definindo ele o seu próprio caminho. Ao longo deste percurso, vários foram os momentos em que me senti perdido e em que comecei a duvidar da minha escolha de acreditar em mim próprio e construir o meu próprio caminho. É solitário, arriscado e extenuante ser eu mesmo, mas a conclusão a que chego é sempre a mesma: vale a pena. É nesta música que consolido a confiança e crença no meu percurso. A exaltação do meu ego não provém de arrogância, mas sim da superação dos meus obstáculos e da confiança nas minhas capacidades. É a conclusão de um parágrafo da minha viagem, onde elimino a dúvida, que me leva a considerar caminhos predefinidos e opiniões alheias, e me comprometo à certeza e à crença do meu próprio caminho. É a emancipação do meu ser, um desafio aos deuses, através da realização de que ‘não me falta água para viver’, porque eu sou a autoridade máxima na minha vida e apenas eu tenho a capacidade de controlar o meu destino, mais nada nem ninguém, porque ‘sou eu que a faço chover.’”

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