Para João Nicolau Quintela, ser “diferente” não se trata de uma escolha ponderada nem de um plano minuciosamente traçado. Fisicamente iguais, as particularidades de cada indivíduo encontram-se nas bases e na essência que formam aquilo que a carcaça esconde — do que se absorveu em novo e que nos influencia no presente aos valores que decidimos adoptar para nos tentarmos guiar nessa viagem que é a vida. O que nos distingue é o ser espiritual que reside dentro de todos nós e isso manifesta-se nas mais variadas acções que todos os dias tomamos. Mas para quem faz arte, encontra nela o veículo perfeito para expressar essas peculiaridades. E quem o faz com especial carinho e dedicação encontra sempre forma de cravar nela um pedaço da sua identidade, não se conformando com a ideia de ter de corresponder a um determinado tipo de estética, mas sim procurando a sua própria linguagem.
Há pelo menos quatro anos a partilhar música no formato digital, Quintela foi sempre Peculiar — de nome artístico e de sonoridade. O artista oriundo de Faro editou alguns singles e um EP, Mind Blossom, que desde logo se demarcavam pela diferença. Fado, rock, hip hop, MPB, pop ou electrónica foram algumas das cadências às quais recorreu para embalar os seus versos, que tanto nos podiam ser servidos com uma produção mais completa como, por vezes, de forma mais despida, fazendo notar-se ainda mais o sentimento que as suas cordas vocais carregam.
Foi em Janeiro de 2023 que Peculiar se tornou ainda mais singular. Em “LUA”, o seu som surge já completamente polido, deixando antever um salto qualitativo que agora conseguimos confirmar em “CHORA”, canção composta e produzida por si, em colaboração com b-mywingz neste último capítulo, e ainda Michael “Mic” Ferreira enquanto engenheiro da mistura e masterização. Está tudo certo por aqui e, mais do que tentar adivinhar-lhe o futuro ou estabelecer qualquer tipo de fasquia, interessa-nos deixá-lo continuar à deriva nesse mar que é a música portuguesa, que parece que é quem mais vai sair a ganhar por ter este marinheiro a descobrir as suas próprias rotas, sem precisar de direcções alheias. Chorar? Só se for de emoção.
Realizado por Mariana Esteves, o videoclipe para o novo tema do cantautor algarvio estará em rodagem exclusiva no Rimas e Batidas até amanhã, com a edição oficial agendada para domingo, 18 de Junho. Além da estreia da peça, João Quintela, que foi ontem confirmado para o Coreto Stage do NOS Alive’23, tirou um tempo para nos falar sobre o início da sua carreira e o momento que actualmente atravessa, deixando ainda antever o lançamento de um EP este ano.
Como é que a música entra na tua vida e em que ponto da história é que o João se torna Peculiar?
A minha ligação com a música sempre surgiu de uma forma curricular, primeiro com o coro na primária e depois com a entrada no Conservatório Regional do Algarve aos 8 anos, mas sempre foi algo que me deu muito prazer. Só comecei a desenvolver um interesse mais sério aos 16 anos, quando comecei a compor e a explorar diferentes estilos musicais de forma mais aprofundada. Desde os meus 10 anos que andava preocupado sobre o que iria fazer no futuro e qual seria a minha profissão ou carreira, e foi quando comecei a compor que as peças se começaram a encaixar e comecei a ver o caminho que queria percorrer. A partir desse momento apliquei-me completamente e comecei a minha viagem musical. Foi também aí que surgiu o Peculiar, estava à procura de algo que me representasse e que mostrasse às pessoas qual era a minha mensagem e o que eu defendia. Esse algo que sempre me definiu a mim e ao meu percurso de vida foi a minha incapacidade de me enquadrar. Ser Peculiar não se trata de querermos ser diferentes, isso é apenas uma consequência. Trata-se de querermos ser quem somos: isentos, independentes e livres.
Percebi que já tinhas editado música antes, mas sinto que é a partir da “LUA” que a tua estética musical se solidifica. Também achas que esse single marca um ponto de viragem?
Sem dúvida. O meu trabalho antes da “LUA” representa muito também a minha descoberta musical, por isso é que é tão diverso a nível de estilos musicais e linguagens, foi a minha fase de exploração. No entanto, depois de lançar todos esses temas e não ter visto grande impacto por parte do público comecei-me a questionar sobre o que me faltava, e percebi que era uma identidade musical. Tive um período muito contemplativo onde procurei as minhas raízes e aquilo que me tornava eu próprio. Foi aí que me lembrei de episódios da minha infância, como as noites passadas com a minha avó Fernanda a ouvir Mariza e Amália enquanto bebíamos chá com bolachas Maria, as músicas de embalar que o meu avô Vítor e a minha mãe me cantavam que depois descobri serem do Zeca Afonso, o meu primeiro MP3 dado pelo meu avô Nuno com música clássica, jazz, Jacques Brel, Claude Nougaro, Georges Brassens, Madredeus, Fausto entre outros, e o CD dos Humanos, que era o único disco que o meu pai tinha no carro. Pode não parecer depois desta descrição, mas a minha família não é grande consumidora de música ou de arte no geral, então agarrei-me ao pouco que tinha e todas estas influências moldaram muito a minha forma de cantar e de compor. Principalmente as cantigas de intervenção, devido ao envolvimento que os todos os meus avós tiveram no 25 de Abril, o que acaba por o tornar um tema muito importante para mim. Na altura em que compus a “LUA” estava a ouvir muita MPB, e marcou-me a forma descomplexada e bela como no Brasil conseguiam abordar o tema do sexo e do prazer em português sem soar ordinários ou foleiros, coisa que não me recordava de existir em Portugal. Coloquei-me então esse desafio de fazer uma música assim e penso que todas as inspirações musicais que referi anteriormente acabaram por se refletir nesse tema.
Também notei que trabalhas com outros produtores. Actualmente, como é o processo para criar um novo tema de Peculiar? Começas por compor e depois procuras desenvolver a canção ao lado de alguém, ou também pode nascer de produções que te enviam?
A minha composição é normalmente muito conceptual, porque vejo a música como a minha forma de comunicar com os outros. Como tal, se não tiver algo de diferente e importante para dizer não me faz sentido compor. Além disso gosto que tudo o que faço seja parte de um plano maior e todas as músicas estejam conectadas. Normalmente descubro acordes que me inspiram, algo sempre mais sombrio, e começo a construir a música no Logic. Depois experimento melodias e finalmente decido sobre o que quero falar e construo a letra. Uma das pessoas fundamentais para a existência deste projeto e que desde o início acreditou em mim e me apoiou foi a b-mywingz. Conhecemo-nos no festival de curtas-metragens 48Hours, ambos tínhamos sido chamados para compor a banda sonora da curta da nossa equipa e criámos uma amizade e uma ótima química musical. Quando tenho a canção terminada e uma base da produção, sento-me com ela e começamos a construir a música em conjunto, discutindo ideias e vendo o que funciona ou não. Ela tem muita experiência a produzir e já me conhece muito bem, então sabe o que eu gosto e qual é a minha identidade sonora, e já por várias vezes, quando chego no dia seguinte, me surpreendeu elevando a música para outro patamar. Outra pessoa que também ajudou muito na produção da “LUA” e que deu a ideia inicial da melodia do refrão do “CHORA” foi o Jay Mezo, que é também um excelente compositor e produtor que conheci na minha turma da ETIC, de Criação e Produção Musical, e como moramos perto um do outro acabámos por passar muito tempo juntos e tornámo-nos amigos. Custa-me ceder o controlo do meu trabalho e da minha visão porque é realmente uma parte de mim, mas acredito sempre que, trabalhando com outras pessoas que me inspiram e que respeito, a música tem a capacidade de crescer ainda mais e, no final, esse é o meu objetivo.
“CHORA” é o teu mais recente single. Que lágrimas são estas que procuras esconder nestes versos e melodias?
Lágrimas de Pérola. Acredito que sem a dor e o desconforto do meu caminho nunca tinha descoberto nem formado as minhas peculiaridades, ou seja, aquilo que me torna eu próprio. Nunca tinha transformado as minhas fragilidades (Lágrimas) nas minhas forças (Pérolas). E o “CHORA” fala precisamente sobre isso, sobre sermos vulneráveis, sobre exprimirmos o que sentimos e sobre permitirmos aos rapazes serem indivíduos imperfeitos que falham e sofrem, mas que podem aprender com os seus erros e crescer para se tornarem homens. Sempre senti uma grande pressão por parte da sociedade e dos exemplos à minha volta para me comportar de uma determinada forma, para poder ser um “homem”. Brincar com bonecas e com raparigas, não jogar futebol, ser mais carinhoso, ler livros e ouvir fado não se enquadravam nesses comportamentos e dificultaram muito a minha inclusão no meio dos rapazes. Cresci, tornei-me um homem e vim a conhecer outros homens que também choram, também precisam de afeto e que, principalmente, apesar de também terem medo, mostram o que sentem. Esta música serve para questionar o que significa ser homem e para criar o meu próprio espaço dentro desta definição. Chorar não é uma fraqueza, porque a força para mim está na admissão do erro.
Depois disto, avizinham-se mais temas para o que ainda resta de 2023? Ou já começaste a delinear algum plano que te possa levar até à edição de um disco?
O “CHORA” e a “LUA” são apenas dois dos quatro temas do EP que irei lançar este ano. Peças de uma história que fará sentido no final. Uma história de crescimento, sobre a transformação de um rapaz em homem.