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Texto: Paulo Pena
Fotografia: Inês Silva
Publicado a: 14/10/2023

O baile continua hoje, dia 14 de Outubro, no Plano B, Porto.

Expresso Transatlântico no B.Leza: a ressaca não se cura, dança-se

Texto: Paulo Pena
Fotografia: Inês Silva
Publicado a: 14/10/2023

O que é que se passa contigo, Lisboa? Não te julgávamos tão tímida, constrangida, acanhada, numa noite destas. Ainda para mais depois do que Paredes de Coura nos desvendou: que um concerto de Expresso Transatlântico é uma autêntica festa, um espaço de libertação descomplexada, um porto seguro para fãs de música despretensiosos. Adivinhávamos-te, por isso, mais entusiasmada, mais atrevida. Bem sabemos que quinta-feira não chega ainda a fim-de-semana, e que, a julgar pelas várias caras com que te apresentaste, os trintas pedem mais uma noite de sofá e Netflix do que cerveja e Cais do Sodré em véspera de dia útil. Mas, em boa verdade, já de há algum tempo para cá que nos tens convencido de que as quintas são as novas sextas, e de que os trintas são os novo vintes. Que falta de alento é essa, então? Foi preciso dois avisos à navegação da parte dos irmãos Varela, e uma chamada de atenção de Gaspar, para a homenagem que “O Gangster” — terceira faixa de Ressaca Bailada, álbum de estreia da banda lisboeta — presta aos Dead Combo, mais propriamente ao falecido Pedro Gonçalves, para que desses, enfim, sinal de vida?

Ou então — porque, ainda que tarde, acordaste — fizeste-te apenas de difícil. Coisa que estes bons rapazes não mereciam, há que dizê-lo. Afinal, são eles próprios os mais descomplexados, despretensiosos e, acima de tudo, desinibidos em palco. Daí que tenham estranhado, primeiro, uma casa cheia e, depois, uma casa cheia (a princípio) insossa. Pois sal nas feridas e sangue na guelra é coisa que não falta nem a Sebastião e Gaspar Varela, nem a Rafael Matos. E o mesmo se poderá dizer do trio complementar ao basilar, que assistiu os três primeiros músicos neste concerto de apresentação do sucessor de Expresso Transatlântico no B.Leza. Dois deles já habituais nessa tarefa — ambos que, injustamente, não se viram mencionados por aqui aquando do testemunho da actuação no Taboão —, designadamente o sempre sorridente José Cruz ao teclado, no trompete e demais sopros, e o mui requisitado Tiago Martins no baixo, desta vez acompanhados ainda pelo  generosíssimo Iúri Oliveira enquanto terceiro elemento extra, a desdobrar-se em múltiplas formas de percussão — e em permanente diálogo translinguístico com Gaspar.

A “Primeira Rodada” foi, assim, servida ainda com alguma cerimónia, e nem um “Western à Lagareiro” chegou para pôr toda a gente à vontade. Tantas mortes se vaticinaram ao rock português, quando afinal o mal poderá estar mesmo em quem o consome. Porque, pelo menos no que toca a estes representantes da causa (nada perdida), esse rock português está vivo, de boa saúde e recomenda-se. Mas, também “porque nada tem um fim” — como os respectivos autores bem dizem —, esta canção para Dead Combo impôs um recomeço. Lisboa, a ribeirinha, inconformada com a desromantização da capital que Tó Trips e Pedro Gonçalves tanto fizeram por cristalizar, deu finalmente à costa (não Neptuno) do B.Leza, de cara lavada e com uma palavra a dizer. E com o “Azul Celeste” de “Bombália” no horizonte, embarcou nesta viagem entre o velho (para aí com umas duas décadas, como ironizava Sebastião) e o novo trabalho dos Expresso Transatlântico.

E a ironia é um bom indício do estado de espírito daquele que parece ser uma espécie de líder (se é que essa dinâmica faz sequer sentido neste sistema) da banda: Sebastião não só não se leva demasiado — nada, mesmo — a sério, como se preocupa mais em divertir-se em palco do que em encarnar a persona do tal rockeiro português desaparecido lá para os lados de Alcácer-Quibir. Mesmo quando as mãos lhe fugiam à partitura, mostrava leveza na reacção e à-vontade na resposta ao voltar a apanhar o comboio que se propôs a comandar.

Já o caso do seu irmão mais novo é bem diferente na forma e, ao mesmo tempo, praticamente igual na essência. Não há como não ver em Gaspar uma autêntica estrela rock (ou estrela fado, se quiserem) a cada gesto aparentemente inocente, genuinamente incalculado e perfeitamente enquadrado com a figura que representa em si. O prematuro guitarrista educado nas casas de fado pela bisavó Celeste Rodrigues (o que faz dele, por consequência, sobrinho-bisneto de Amália), que acompanhou Madonna pela América fora ainda no advento da maioridade, é a razão fundamental pela qual os Expresso são “transatlânticos”: porque havia todo um oceano que os separava quando as primeiras coordenadas do projecto se começaram a definir. 

O momento que protagonizou a solo depois da bombástica “Bombália” é, por isso, paradigmático dessa magnitude artística que lhe encerra: deu espectáculo a doze cordas electrizadas e a duas mãos frenéticas, sem acusar o desgaste de longos minutos a expurgar o instrumento, com as luzes baixas e silêncio na sala, que se estava a tocar o fado — com passagem obrigatória, portanto, pelos “Verdes Anos” de Carlos Paredes, meritória de uma ovação rendida ao jovem prodígio. Já para não falar da presença avassaladora que foi imprimindo ao longo de toda a actuação: com a música a sair-lhe das vísceras, esperneava-se de guitarra ao colo, bradava por mais energia da plateia, surfava por cima dos braços do público, subia às colunas do palco para rockar lá do alto e escalava a bateria de Rafael Matos para, já na recta final — depois de uma falsa despedida, denunciada de antemão pelo próprio — reforçar a pujança do ritmo imposto pelo baterista do grupo, ele que, sempre discreto, não vergou no posto ao alavancar a sua comitiva a alta velocidade por meio das baquetas.

Perfeito, só mesmo se Conan Osiris se juntasse à festa para cantar a “Barquinha”, pensávamos nós a meio caminho. Bem pensado, bem feito. Juntou-se, de facto, com a graciosidade que lhe é característica, mas desprovido do poder vocal que manifestamente lhe assiste. Foi pena tão curta passagem ter sido, em certa medida, anti-clímax, porque é precisamente “Barquinha” (ainda mais do que “Anda ao Mar”, cantada por Sequin) a canção que projecta um rio de possibilidades que correm quando se juntam (boas) vozes a esta música que tão bem vive só da instrumentalização. Aliás, o próprio momento insólito que se deu com um pedido de casamento por parte de uma espectadora (palmas para essa inversão de papéis, Catarina), atabalhoadamente proporcionado pelo homem que adora bolos (de casamento inclusive, presume-se), reflectiu a fugacidade dos ventos que viraram a “Barquinha”. E, quando finalmente nós voámos, já não havia mais que dançar. Ficou Lisboa, sozinha, virada para o mar.


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