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Fotografia: Joanna Correia
Publicado a: 23/03/2023

Euforia e destruição num ciclo constante.

[Estreia] HADESSA sobre “Ruína”: “Apesar desta luta com laivos de tragédia, queria passar uma mensagem de esperança”

Fotografia: Joanna Correia
Publicado a: 23/03/2023

2023 trouxe-nos uma surpresa logo no arranque. Vanessa Borges estreava-se a solo enquanto HADESSA a 6 de Janeiro e cedo a sua “Fortuna” se cruzou com a da nossa publicação, que prontamente deu conta desse seu single inaugural, já com as cartas lançadas sobre a mesa, na perspectiva de que o que estava para vir poderia muito bem ser causador de boas surpresas.

A fortuna também esteve do nosso lado e encontrámos em “Ruína” um motivo ainda mais urgente para a trazermos de volta a estas páginas, agora em modo de ante-estreia, com este segundo avanço do seu primeiro álbum a merecer rodagem exclusiva no Rimas e Batidas um dia antes de chegar às demais plataformas de streaming, amanhã.

Novamente com Momma T ao seu lado, enquanto produtora, esta mais recente amostra do longa-duração Fortuna conta ainda com percussão de Sérgio Nascimento e coros de Alina Sousa e Sofia Lisboa — Sérgio Milhano (da PontoZurca) foi o responsável pela gravação, mistura e masterização da canção que dança de mãos dadas com a tragédia, mas que não faz dela um bicho de sete cabeças.

Embalados no momento, aproveitámos a ocasião para endereçar algumas questões a HADESSA, tentando antecipar o que se pode esperar desse disco que tem na agenda para uma edição a 26 de Maio.



Escolheste o ano de 2023 para arrancar nas edições enquanto HADESSA, mas a ideia com que fiquei, mal escutei o primeiro single, é a de que não és propriamente uma novata nestas lides. Quando é que a música entra na tua vida? Já tinhas integrado outros projectos?

Não consigo lembrar-me do momento em que a música entra na minha vida, sinto que assim que nasci entrei na música. Ninguém da minha família está ligado à música, mas a minha mãe e a minha avó cantavam muito, e dizem de mim, tal como naquela música dos ABBA, que eu cantava antes de saber falar. Comecei a escrever letras para músicas que já existiam, com 6 ou 7 anos, como faziam os Onda Choc. Depois comecei a aprender guitarra aos 9 e a compor com 15. Uma das canções que escrevi com 15 anos integra este trabalho, levou 20 anos para ver a luz do dia. Fiz parte de um grupo de música popular que recolhia músicas da vila de Riachos e as arranjava. Em 2004 comecei a cantar com a Alina Sousa, num projeto de originais chamado Chão da Feira, editámos o EP Das Tripas Coração em 2015. Sempre olhei para a música como um património comunitário e colaborativo e tinha muita vergonha em assumir-me com um projeto a solo, mas hoje sei que é possível conceber uma ideia e levá-la a cabo do princípio ao fim, em nome próprio, mas com a participação de muita gente que faz boa música.

Passaram dois meses desde que te estreaste com “Fortuna”. Como é que tem sido a recepção desse single por parte do público? Há algum elogio mais original ou fora-da-caixa que já te tenham dado?

A reação ao “Fortuna” foi muito interessante. Quis lançar esse single primeiro porque não só dá nome ao disco de estreia, como também se assemelha a um prólogo da história que conto no disco. Fazia-me sentido, dentro do meu caos interior permanente, ter essa sensação de segurança, de começar pelo princípio, apontando os caminhos a que o disco vai levar. Pareceu-me que a reação das pessoas que ouviram foi de surpresa e intriga, quer me conhecessem ou não de outros carnavais. De estranheza e curiosidade. Acredito que fiz algo nunca feito com este single: unir spirtuals, trip hop e guitarra portuguesa, cosê-los a fio de ouro com uma letra inspirada nas invocações das epopeias clássicas em símbolos do Antigo Testamento, envolvê-los num vídeo que tem como principais referências visuais os temas católicos da pintura barroca. No fim das contas, “Fortuna” mostra-me a mim, apresenta-me, anuncia-me, em toda a minha complexidade e contradição, e sentir que é bem recebido é um grande estímulo para continuar. Um dos elogios que achei mais interessante fazia referência à minha androginia, que é uma singularidade da minha pessoa que sempre viveu em mim mas que nunca assumi deliberadamente na minha arte, e essa referência foi recebida por mim com agrado, porque senti que além de tudo de mim, que quis mostrar com este single-prólogo, houve camadas que transpareceram sem eu as ter sublinhado. Fez-me sentir vista e compreendida.

Corri uma pesquisa por “Hadessa” na tentativa de encontrar algum significado associado a esse nome/termo, embora sem qualquer sucesso. Na minha cabeça — até pela sua fonética — diria que tem influências árabes. Consegues iluminar-me? O que é que esteve na base para a escolha deste nome artístico?

HADESSA é o nome de uma figura bíblica, uma princesa persa, de origem judia, que contra todas as regras estabelecidas, usa a sua inteligência ao assumir a sua ascendência e assim põe termo à perseguição do seu povo. Também é conhecida pelo nome Esther. O meu nome de batismo, Vanessa, foi criado pelo escritor inglês Johnathan Swift num poema dedicado a uma mulher chamada Esther. Adotei este nome, em parte por ser muito singular, mas por ser fonética e etimologicamente próximo do meu nome “civil”. Como se o nome tivesse feito um caminho e chegado a um lugar que não é o seu contrário, mas o seu espelho. Gosto da circularidade destas memórias. De resto, inspiro-me muito na Bíblia e nos escritos Gregos e Latinos, porque são basilares na cultura em que cresci, a judaico-cristã. Faço-o sempre com a devida distância e curiosidade, aproveitando o que de bom pode ensinar e filtrando e ressignificando muitas das coisas menos boas que hoje ainda perduram na nossa cultura.

A tua música foi-nos recentemente apontada como tendo Sérgio Godinho, A garota não, Ana Malhoa e Ana Moura enquanto influências. São quatro nomes muito distintos e que, se calhar, há dez anos atrás, formavam uma combinação que podia fazer torcer alguns narizes de desconfiança. Hoje em dia, essa mesma combinação tem o efeito contrário, até porque atravessamos uma era em que a pop está cada vez mais “descarada” no que toca à fusão entre géneros. Como é que observas o estado actual do cancioneiro português?

Essas são algumas das influências, mas poderia nomear muitas mais, e isso será muito audível quando o disco estiver cá fora. Destas referências admiro a ousadia do Sérgio Godinho, a calma incisiva d’ A garota não, mas também podia incluir letristas como Capicua, Fausto, Jorge Cruz. Tenho dois fados no disco, admiro a voz de muitas mulheres fadistas, e essa foi a música que cresci a ouvir, mas que sempre achei que não conseguia cantar, por medo do compromisso. Ou és fadista ou não és. Mas o exemplo da Ana Moura, ou mesmo de Mísia e Cristina Branco, à medida que fui conhecendo, inspiram-me e fazem-me acreditar ferozmente que não são as caixas onde nos colocam que nos definem. Já a Ana Malhoa é uma referência que, para mim, não tem equivalente, porque é uma artista que não só é amplamente versátil como é alguém que tem conseguido trabalhar na música de forma consistente há décadas e é o único exemplo de artista feminina que conheço a quem as circunstâncias não fizeram desistir. Cresci a ver vários homens na música a editar discos frequentemente e a consolidar carreiras consistentes e mulheres a fazer música popular da mesma maneira não existiam — a Ana Malhoa é uma excepção, e também me motiva a continuar.

Aquilo a que podes dar o nome de cancioneiro português é algo que não é igual para toda a gente, depende muito do teu contexto, das tuas experiências e da música que te povoa os dias, através da rádio ou de outras formas de descoberta. Sempre achei a música portuguesa, em português ou feita em Portugal, riquíssima, um património vasto e sempre a crescer. Tento olhar para o copo meio cheio, mas a verdade é que estou profundamente convencida de que mais coisas incríveis viriam à tona se no nosso país as políticas permitissem efetivamente usufruir da cultura e criá-la em condições, se a cultura fosse encarada como fator de elevação e não estivesse à mercê do mercantilismo, da lei do mais rentável, dos números e dos poucos euros que o público consegue dar a produtos culturais. Parece que em relação a algumas décadas atrás, há mais gente a fazer boa música mas menos gente com condições de a fazer chegar ao público. Sinto esta realidade com tristeza e revolta.

Também com base na ideia anterior, sentes que a HADESSA que hoje conseguimos escutar acaba por ser fruto dessa actual conjuntura da música portuguesa? De alguma forma, esse quadro deu-te uma força extra para seguires em frente com este projecto a solo?

Acho que a HADESSA que estou a dar a conhecer não é um fruto dessa conjuntura, mas é um ramo autónomo que pertence a esse tronco. Isto porque projeto muito o meu trabalho para o futuro e acredito que deitei abaixo muitos obstáculos, internos e externos, para chegar a este resultado. Mas esta superação teve ajuda da conjuntura, sem dúvida. Quando em 2004 cheguei à faculdade, a música que eu ouvia – a das rádios fora de Lisboa, das discotecas, das festas – era muito diferente daquilo que os meus colegas ouviam e recordo o desprezo pedante a que o meu gosto e conhecimento era vetado. O meu refúgio passou a ser a música tradicional portuguesa e as músicas do mundo. Demorei muito tempo a assumir que sim, adoro os sintetizadores da música de baile, não ironicamente, mas porque os acho mesmo bonitos. Gosto de festas populares não por mero escapismo, mas porque para tanta gente são momentos culturais incontornáveis e os artistas que lhes dão corpo são muito bons. Acho que foi em 2017, já eu tinha decidido que os palcos e os discos não eram para mim, ouvi o Adoro Bolos do Conan Osiris na rádio. Fiquei profundamente emocionada com aquela música, chorava como se tivesse sido visitada por um Arcanjo qualquer. Esse é um dos momentos de viragem na minha música, talvez o início deste ganhar de coragem para fazer a música que realmente quero e gosto.

Tens ao teu lado a Momma T quer no “Fortuna” como neste novo “Ruína”. Tem sido uma peça importante para chegares aos resultados que tinhas em mente? E podemos assumir que vai ser o teu “braço direito” nesta viagem ou andas a testar trabalhar com outros produtores e músicos em simultâneo?

A Momma T produziu todo o meu álbum. Foi um processo muito intenso e entusiasmante. Trabalhamos muito bem juntas. Ela é meticulosa e extremamente criativa. Tem uma cultura musical amplamente diferente da minha, sendo dez anos mais nova que eu. Eu escrevi e compus as músicas e para cada uma eu pintava um quadro para explicar o ambiente que eu queria. Na “Fortuna” lembro-me de dizer algo como “aliens a invadir uma igreja no Mississippi”; na “Ruína” queria uma sonoridade como a de um país inventado, com elementos de funaná, flamenco, marchas carnavalescas brasileiras do início do século XX. Seria muito engraçado poder falar do processo de cada canção e das referências que dei à Momma T, que foram desde cânticos cristãos europeus, música dos balcãs, pop-rock da década de 2000, até inspirações que tive dos últimos discos de Stromae e Billie Eilish… Tenho muita vontade de continuar a explorar com ela novas sonoridades, até porque é alguém que me ajuda a desbloquear certos preconceitos contra mim própria, e em múltiplas ocasiões me fez ver que as tantas ideias que eu achava demasiado estranhas ou desadequadas eram justamente o que fazia a minha música tão especial. Mas quero muito fazer mais colaborações, tanto com outros produtores como com outros músicos. Adorava criar com Branko, benji price, Meta_, Sónia Trópicos, e L-CAPITAN, que entra no meu disco com a guitarra portuguesa e que criou aquela linha instrumental que ouvimos em “Fortuna”.

Entre esperança e desespero, este teu novo single convida-nos ainda mais à dança. O que te influenciou na criação desta canção?

Quando comecei a conceber o álbum Fortuna, a ideia era ser um disco muito exuberante e opulento, que glorificasse os prazeres da vida e exacerbasse um certo estado de espírito eufórico, insaciavelmente sedento de estímulos, de experiências. Mas antes de conseguir conduzir todo o trabalho nesse sentido, comecei a sentir-me de outra maneira. O meu cérebro não consegue produzir alguns ingredientes necessários ao equilíbrio do humor e, por isso, oscilo facilmente entre estados de espírito muito acelerados e outros profundamente depressivos. Então, a “Ruína” nasceu num desses episódios do pólo negativo. Começo por falar das duas forças que vivem em mim e da sua luta permanente, e no refrão revelo a qual delas naquele momento me vejo a sucumbir. Inicialmente não era uma música dançável, era algo tristíssimo, lembrava o “Szomorú Vasárnap”, uma obra húngara deprimente e lúgubre. Mas nesse mesmo momento de tristeza, por mais que não visse saída, lembrei-me das centenas de outros momentos semelhantes que vivenciei e de como me senti melhor no momento em que percebi que a dor, por mais profunda que seja, é passageira. Apesar desta luta com laivos de tragédia, queria passar uma mensagem de esperança, além das referências que existem na letra. Assim transformei-a numa canção que podemos dançar sozinhos, em par, em grupo, abanar o diabo preso às costas como na canção de Florence + The Machine. Não digo que dê vida aos mortos, mas nos últimos tempos tem sido a canção a que me agarro quando começo a cair — e resulta.

Com este tema cá fora, ficas ainda mais perto da edição do teu primeiro disco. Há uma temática que seja transversal a todo o álbum? Já há um título e uma data de edição definidos? Há algum convidado que tenhas desafiado a embarcar contigo nesta viagem?

O disco é um longa-duração com 11 músicas, e terá o nome do primeiro single, Fortuna. Está disponível dia 26 de maio. Tive o prazer de contar com músicos que admiro e respeito muito, além da Momma T na produção e execução de algumas guitarras e baixos, tive o Sérgio Nascimento na percussão, a Sara Cruz emprestou a voz aos coros de uma canção e tocou guitarra em três temas. A Alina Sousa e a Sofia Brilhante Lisboa são amigas de longa data com quem canto muito, então chamei-as para fazer os coros, tive ainda a Diana Santos no clarinete e o Sérgio Fiuza no contrabaixo, ambos em apenas um dos temas, um jazz cheeky e piafesco. Chamei o L-Capitan para a guitarra portuguesa em 3 temas (só um deles é efetivamente um fado). A convidada de honra do meu disco entra num tema chamado “Força Motriz”, é a voz da banda portuguesa que mais marcou o desenho da minha identidade musical: a Maria Antónia Mendes, d’A Naifa.

O disco é uma obra completa, que faz sentido ser escutada do princípio ao fim. No percurso da sua concepção, deixou de ser apenas sobre a Euforia e passou a ser também sobre Destruição. Se “Fortuna” é o prólogo, “Ruína” é o epílogo, embora neste processo tenha escrito mais algumas coisas que podem vir a intergrar o Fortuna numa edição física. O que se passa no meio destes momentos está ligado à ideia do controlo, da liberdade, do livre arbítrio. É uma reflexão sobre até que ponto podemos aceitar o que não controlamos, quando é que começamos a tentar mudar aquilo que não conseguimos aceitar e quando é que abrir mão do controlo pode ser também uma forma de empoderamento. Se calhar é mesmo sobre fado e destino, o que está nas nossas mãos e o que não está.

Eu tenho um sonho recorrente, desde miúda. Estou num elevador. Carrego num botão e não saio onde queria, vou sempre parar a outro lado. Por vezes, o elevador deixa de andar na vertical e passa a andar em todos os sentidos, e eu não sei para onde vai. Outras vezes, o elevador é muito grande e começa a subir ou a descer muito rápido e eu não tenho onde me agarrar. O disco reflete esta ansiedade e incerteza de onde a vida, as pessoas e as experiências me levam, muitas vezes de forma desenfreada, outras de forma tão contida que os dias parecem todos iguais. O fim do disco, com a música “Ruína” aponta uma luz ao fundo do túnel, mas era muito necessário, para mim, dar-me a conhecer, principalmente na minha forma mais sombria, suja e em bruto, como na música “Subida aos céus – Eternelle” que A Naifa canta: “Quero ser amada pela morte e pelos meus ossos de luar”.


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