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Fotografia: Bárbara Martons
Publicado a: 14/05/2025

Cantomilo é nome de lugar e passou a ser também de disco.

Estela Alexandre Orquestra no Teatro José Lúcio da Silva: uma certeza a desaguar numa salvação

Fotografia: Bárbara Martons
Publicado a: 14/05/2025

A estreia de uma obra, quando é também a revelação de uma nova compositora, reveste-se de grande expectativa. É do domínio do campo novo — tudo (ou quase) a se revelar. Esse é o ponto de partida verdadeiramente empolgante para a pianista, compositora e orquestradora Estela Alexandre. Com a estreia do disco Cantomilo, faz inscrever uma obra de grande envergadura. Mais até que o número de músicos empregue como recurso para existir, pelo arrojo composicional. 

Foi o teatro da sua terra natal — Teatro José Lúcio da Silva — que recebeu o momento da apresentação em palco da sua primeira obra. Leiria, final de tarde de domingo, dia 11 de Maio, ficará inscrito na suas melhores memórias de vida e também nas de alguns dos presentes, estamos em crer. 

Estela revelou em entrevista ao Rimas e Batidas, dias antes da estreia em palco, que tudo partiu de uma certa inquietação, em que “a urgência era a de fazer música e essa foi a grande motivação”. Esse é o impulso vital de um acto criativo, quando há que exteriorizar o que se é interiormente. E para quem se lança na grande envergadura de compor música para orquestra, tem que ter muito presente que serão muitos e muitas mais no processo. Depressa no concerto confessa que os 25 músicos em palco “foram todos escolhidos a dedo”. É por isso que sabe de cor o nome de cada um dos presentes. Uma prodigiosa orquestra que leva o seu nome. Composta por 15 sopros, em três naipes. Nas madeiras há 4 saxofones: Bernardo Tinoco, Tomás Marques, Tomás Boto e Álvaro Pinto. Paulo Bernardino em clarinete baixo. Nos metais dos trombones, entre baixos e tenores, tocados por Daniel Dias, Hugo Caldeira, Andreia Santos e Nuno Henriques. E ainda os fliscornes ou trompas de flugel: Luís Cunha, Hugo Silva, Francisco Sá e João Pedro Dias. A toda essa armada de vozes juntam-se no conjunto uns trompetes de tons mais aveludados, dotados de um timbre que confere à partida um requinte distintivo a esta música. Há ainda uma portentosa secção rítmica composta por Bernardo Moreira e Emanuel Inácio nos contrabaixos, Diogo Alexandre na bateria, André Fernandes em guitarra eléctrica, Miguel Meirinhos em piano, Duarte Ventura em vibrafone e Iúri Oliveira nas multi-percussões. Aliando-se aos demais estão Sara Afonso e os solistas convidados João Moreira (fliscorne) e Bernardo Romão (guitarra portuguesa). Na direcção de orquestra está Estela Alexandre. Palco cheio para uma música que se servirá em igual volumetria quer na genialidade dos novos temas, quer nas orquestrações e novas roupagens apresentadas.

O alinhamento do concerto é apropriado ao dia, fazendo mote ao estarem ali. Esta música tem na natureza e nas paisagem locais uma fonte de inspiração que procura descrever através dos sons. Se bem que a grande tela do teatro permanecerá em branco durante o concerto, nela se poderiam ver projectadas algumas das paisagens leirienses — imaginam-se. É como se em vez de ver a orquestra se ouvisse uma ampla banda sonora num filme sobre vida selvagem. É isso mesmo que revela “Senhora do Monte”, tema que ilustra nos sons a vista e a dimensão da paisagem partindo desse local nas Cortes (de Leiria). Encontra-se o primeiro arrebatamento de um solo expondo toda a volúpia do fliscorne vindo do naipe dos metais. Um golpe de asa, com subtileza e sedução. Mas é com a orquestração ao tema “Coisas”, de Ornatos Violeta, que a Orquestra mostra o seu pendor de cadência e melodia cheio de intencionalidade. Houve nele um Tinoco pleno de entrega em solo na frente. 

Depois desse primeiro tema, houve esse outro primeiro entre os primeiros dos temas compostos por Estela. Foi com “Olhos Verdes” que começou a desenhar-se o lirismo de encanto do piano de Meirinhos, recurvando-se amiúde sobre a música. Juntando-se tema adiante Iúri e o contrabaixo à voz de Sara, em uníssonos fonemas, até que a rompante adição das tonalidades graves das madeiras, em especial do clarinete baixo e trombone baixo, traz força telúrica em dose elevadíssima. E por que se aproximam do solo, surge alinhado em palco “Terra e Água”, convocando à boca de cena o primeiro solista convidado — João Moreira em fliscorne. Era a tarde destes metais brilharem mais entre as resplandecentes tonalidades. Uma composição a remeter para a linha de confronto entre esse dois meios (terrestre e aquático), em que a voz tricota e interliga fazendo pontes para que se caminhe sempre à beirinha do fascínio da paisagem descrita. Uma transcendência trazida para perto pela unicidade entre o sopro solista e o canto dos sons, entre o voo de imaginado de uma ave marinha a circundar.

Antecedendo o “Momento” de Estela houve um dos momentos mais emotivos de todo o concerto com um nada estranho “Strange Fruit”. Esse tema que traz carga imensa com ele, como nos revelava Estela em entrevista, surge com intenção de “pequena homenagem a alguns massacres e injustiças raciais que temos vindo a assistir”. É servido de forma marcante, com a tina de água de Iúri Oliveira a ser o lugar da acção, onde entra toda a carga sónica de chocalhos em banhos de imersão a servir chão às vozes disparadas vinda de uma gravação. Como evocando Billie Holiday e Nina Simone em simultâneo, mas de outros timbres, noutros novos registos, numas vozes desenham cânones, sussurros e denuncias poéticas. Deu para verter lágrimas pela emoção da musicalidade alcançada sem que se dispa disso mesmo a dimensão social e o lugar de protesto que o tema contém. Seguiu-se o “Momento” de Estela,  em que as surdinas se fizeram ouvir — e bem — nos trombones e houve um solo de guitarra quase indomada. Pelo meio, muita cadência sincopada da orquestra. 

Em ano comemorativo do centenário de Carlos Paredes, há o arranjo ligando esparsos motivos de canções do mestre, entre barcarolas e laivos de “Verdes Anos” num tema com “Dedicatória”, nem mais. Para esse desempenho contou-se com a guitarra portuguesa de Bernardo Romão e um saxofone soprano que se fez notável. A evocação do passado volta a ser motivo de interesse com “Memória”, do qual Estela se encarrega de explicar como sendo baseado no processo de fabrico das memórias, desde o mais fresco e nítido ao mais difuso e nebuloso. É por isso que a música que se ouve nos leva para perto do rio, entre ramagens de chilreios e espelhos de água. A voz de Sara, aliada ao vibrafone de Ventura, fez magia acontecer e tornou-se facilitadora desses arquivos mais difíceis de alcançar e traduzir, e onde o trombone tenor como solista estirou a linha do tempo da melhor maneira. 

Final previsto do concerto adiado pela forte presença de uma plateia em ovação. Estela volta sem orquestra e ocupa-se da sua primordial música, em dueto consigo mesma — voz e piano. “Vivemos tempos estranhos, e a música salva-nos” confessa em voz alta. Convoca a sua orquestra a reunir-se novamente para um merecido final. “Aurora”, como essa que se repete em cada dia e abre a possibilidade do novo, do acontecer, de ser desta. Aqui no seio desta orquestra surgem forças conjugadas para este tema, entre um clarinete baixo e a flauta transversal, entre um trio clássico de jazz piano-bateria-contrabaixo que desagua em motivos de grande beleza ao piano. Acredite-se que, embora esteticamente pouco comparáveis esta Estela Alexandra Orquestra, anda perto da carga emocional que se escutou quando Floating Points fez juntar as suas composições à London Symphony Orchestra, contando com o mestre Pharoah Sanders em Promises. De Estela Alexandre conta-se como certeza, para além de uma promessa de vir a tornar-se uma flagrante grande compositora. A primeira prova fica dada, outra mais virão, seguramente.


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